Um homem caminha dentro da noite.
Uma noite caminha dentro do homem. Um vento vindo do ártico assoma-se dos
sentidos quase anulados. As pálpebras pesadas. As mãos recolhidas nos bolsos do
sobretudo velho. As orelhas tapadas pelo gorro. O nariz congestionado por uma
constipação que não passa. O paladar quase esquecido do sabor de uma refeição
quente. Pelas ruas da cidade, nunca tão longas como hoje, um homem prossegue na
sua lenta e triste marcha. A vida, por vezes, resume-se à sobrevivência.
Resistir. Continuar apenas para não desistir.
As ruas passam, como efémeros
souvenirs, por este homem de olhos cristalizados e perdidos, de propósitos
abandonados. As memórias como mortos cardos. Dias passados e esbatidos, como
retratos antigos, esquecidos pelo sarcasmo do tempo. O tempo que lhe é escasso.
O rio sempre passa e o seu passo é mais lento. Os seus pés estão trocados e ele
não sabe para onde ir. Todos os rios são levados até o mar os engolir.
As fachadas tristes dos velhos
prédios estão iluminadas. As luzes eléctricas das casas estão acesas – forma
gélida de manter distante o frio e as trevas. Mas a noite permanece à janela,
debruçada no parapeito, à espera que alguém, no âmago da solidão, a cumprimente
e se apaixone pelas estrelas e pelos sonhos que a elas estão abraçados. Dentro
dessas casas, nas salas de jantar, famílias inteiras estão reunidas. As
crianças correm alvoraçadas pelos corredores, na urgência característica de
quem não compreende ainda o compasso amargo dos relógios; na avidez de
desembrulharem presentes. Sentados à mesa, os homens contam as mesmas histórias
de todos os anos e depois perguntam pelo jantar, apesar da mesa estar recheada
de doces e frutos secos. Na cozinha, as mulheres atarefadas entreajudam-se e
aborrecem-se com o bacalhau que nunca mais coze, mas sorriem porque é costume
neste dia. Enquanto isto, as luzes da árvore de natal brilham intermitentemente
e iluminam mesmas bolas e as mesmas fitas que a ornamentam desde sempre e que
dizem “Bom Natal e Feliz Ano Novo”.
O ventou acalmou agora um pouco
e, lá fora, o transeunte está prestes a chegar ao seu destino. É a primeira vez
que vem ao encontro deste lugar. Nunca se imaginou a fazer este percurso.
Chega. Detém-se na proximidade de uma enorme estrutura pré-fabricada, coberta
por um plástico impermeável branco, que, no meio da noite, se insurge como uma
miragem cálida mas excruciante. A vergonha que sente de entrar e a necessidade
de o fazer combatem entre si. Hesita. As lágrimas descobrem a saída do seu
corpo, mas só uma é capaz de lhe escapar pelo rosto parado.
Depois de se recompor, olha para
o interior daquele lar improvisado, alegoria de presépio, e apercebe-se de que
dezenas de pessoas já ceiam. Parecem alegres. Outras, organizadas numa fila que
se prolonga quase até à entrada, aguardam pela sua vez, pela sua refeição.
Enquanto isso, conversam. Matam a fome, a solidão e as angústias. Ao fundo, num
canto, um homem magro e velho, de cabelos e barbas grisalhas, vai tocando na harmónica
músicas de natal.
Finalmente decide entrar, embora
essa fosse a sua única alternativa. Junta-se à fila e aguarda. Não conversa com
ninguém. Os olhos a fixarem o chão. Chega a sua vez e a senhora que o serve,
com um sorriso vivo no rosto, pergunta-lhe, O que vai ser? Tremulamente
responde-lhe, Queria três refeições para levar para casa, se faz favor. Ainda
sorrindo, a senhora pergunta-lhe se é o primeiro ano que ali vai, enquanto vai
enchendo três tupperwares com
bacalhau, batatas, couves e cenouras cozidas; à parte, coloca numa caixa alguns
sonhos e rabanadas. O homem acena afirmativamente com a cabeça e, em seguida,
ela entrega-lhe tudo num saco plástico. Tem filhos pequenos?, insiste ainda.
Ele solta um sim quase mudo e, perante essa resposta, a senhora coloca um pai
natal de chocolate dentro do saco. Nesse momento, ele sorri também e, pela
primeira vez na sua vida, percebe que a palavra obrigado é bonita. Obrigado,
minha senhora! Muito obrigado!
Afasta-se agora da melodia viva
da harmónica e das conversas das pessoas. O mundo exterior outra vez. A noite e
o vento frio de novo. As ruas de novo, mas um novo alento também. A ânsia de
chegar a casa, de abraçar emocionado a mulher que o espera e, depois, pousar o
pai natal de chocolate, que leva na mão para não o partir, debaixo da árvore de
natal
despida
. Sentado no seu colo, depois do jantar, o seu pequeno e único filho rasgará a
folha de prata envolvente e partirá o pai natal em pedaços. Todos rirão muito
quando o pai disser, Mataste o Pai Natal!
Agora só lhe falta chegar a casa,
mas pelo caminho o som da harmónica ainda ecoa no seu pensamento, fazendo-o
pensar que a vida afinal é muito mais do que a sobrevivência. Tal como os alimentos,
também os sentimentos hão-de chegar quentes a casa.
Um homem caminha dentro da noite.
Uma noite caminha dentro do homem.