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domingo, 29 de janeiro de 2012

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                a manhã. as ruas a despertarem, pessoas, pessoas em carros, carros em filas, a cidade, barulhos vários. o céu quase limpo, nuvens rarefeitas paradas, leves, perante a sua imensidão, como que desistindo de algo. o asfalto a libertar vapor de água, choveu durante a noite. os cafés e os quiosques abertos, pessoas, calor. as chaves a saírem-me do casaco, retiradas pela minha mão. abro a porta do meu quarto, subi já os longos degraus até ao quarto andar. o cheiro do prédio, o cheiro das minhas roupas: a cidade, a noite.
            a tecto a pingar água e a molhar as toalhas que deixei sobre a cama antes da sair, na noite passada. dispo-me, pouso as minhas roupas na cadeira encostada a um canto. enquanto tomo banho não penso em nada, estou cansada para isso. a manhã lá fora, o Porto a despertar. a água a cobrir-me a pele, a infiltrar-se, a querer ficar e depois a pingar. pouso o chuveiro, passo a toalha pelo meu corpo e, enquanto faço isto, o tempo não existe. o espelho baço, as paredes húmidas de algo que se libertou de mim. lavo a cara, lavo os dentes: frescura. estou limpa.
            saio ainda enrolada na toalha e a luz exterior confronta os meus olhos, não a aguento, dirijo o meu corpo até à janela e desço os estores. fecho o mundo, preciso de dormir. a noite passada pesa-me nos olhos, nas pernas, nos braços, em todo o corpo, nos pensamentos e até no sono que não vem. já deveria estar habituada a este processo. pertenço à rua, à noite. como posso encontrar paz em casa, durante o dia? permaneço deitada durante algumas horas, finjo dormir. quando me levantar os meus olhos ainda estarão carregados a negro, o sol já irá alto, fugindo para Ocidente. depois será o meu corpo outra vez, a comer qualquer coisa indiscriminada, a vestir as roupas habituais, a fechar a porta de casa, a descer os longos degraus, a sair do prédio e a cruzar-me com o olhar de apetite do porteiro, a esbarrar nos comentários sussurrados das vizinhas.
            eu a caminhar pelas ruas, em direcção à rua. pelo caminho a reconhecer outros corpos. o Faustino a vir apressado, com a mulher a seu lado. os seus corpos a passarem por mim. ele a dizer:
            - boa tarde, menina Maria! – sorri, prossegue, murmura qualquer coisa com a mulher. vão reabrir a mercearia, fecham à hora do almoço, a falta de clientes permite-o.  moram mesmo aqui ao lado. ainda ontem senti o corpo do velho Faustino no meu. na cave da mercearia, com o meu corpo, paguei os produtos de toda uma semana. o seu corpo suado, o seu cheiro, o seu prazer e o meu dever lado a lado, a enfrentarem-se, a agarrarem-se. não te demores, velho! ele é bondoso, nunca demora muito, tem mais olhos do que barriga, apesar da sua constituição cheia. depois os nossos corpos a vestirem-se, ele a subir primeiro, ele a chamar-me, os meus passos. peguei nos sacos, cheguei o meu corpo perto do dele. o seu olhar nos meus seios.
- para a semana há mais, Tininho! para a semana há mais…- vesti o casaco e sai. levei as sacos a casa, coloquei alguns produtos no frigorífico, outros na despensa, outros deixei-os em cima da mesa. tomei um banho e sai de novo para a rua, fiz exactamente o mesmo percurso que estou a fazer agora.
homens, todos me passam pelo corpo, todos me sujam e, por vezes, agridem-no e ao o meu pensamento e ao meu sono que hoje não veio. nas suas mãos dinheiro, nas suas veias corre sangue grosso de frustração. ninguém conhece tão bem  esse sentimento como uma mulher da vida, como uma prostituta, não tenho pudor em rotular-me. não conheço os nomes da maioria desses homens, conheço o meu e, em noites sarcásticas, rio-me. Maria. irónico nome.
chego ao meu destino. outras mulheres, como eu, esperam a noite. durante essa espera falamos, dizemos palavras outrora feias, pegamo-nos por vezes e esperamos. as nossas roupas curtas iluminadas pelas luzes da rua, a nossa pele gasta exposta ao frio, os nossos dentes amarelos, os nossos dedos segurando cigarros contínuos. depois, depois um carro pára e escolhe uma de nós. fico por agora.
            neste início de noite ainda não sujei o meu nome. penso na noite passada. quando ele chegou eu estava longe de o reconhecer. o seu corpo mudou, a sua voz mudou, apenas o seu nome, que quebrando a minha ética profissional – ri-me enquanto escrevi estas palavras – lhe perguntei no final, permaneceu imutável. fomos miúdos e brincámos juntos, fomos adolescentes e sonhámos juntos, sonhámos tantas vezes com o dia em que os nossos corpos se conheceriam, prometemos tanto e acreditámos tanto em nós, ignorando o universo maior.  foi tudo tão distinto até à noite de ontem.
            tive a sensação de que me reconheceu, mas não perguntou o meu nome. hoje, possivelmente, casado, tem filhos, trabalha, é respeitado. mas na noite de ontem, naquele período de tempo alongado por todos os meus pensamentos a que se juntaram talvez os dele, nada disso importou. no fim, dinheiro na sua mão. aceitei, claro! isto não é um romance. sorrimos. sai do carro, as luzes da rua de novo, as outras mulheres esperando. ouvi o meu nome na voz dele. tremi. olhei.
            - até um dia destes, Maria!
            hoje, ainda não tinha saído desta rua desprovida de moralismos, o meu nome ainda estava apresentável. de repente um carro pára, um homem olha-me. aproximo-me, lanço algumas palavras que são aceites. entro no carro. não é ele, não era suposto ser. esqueço o meu nome. não sou personagem de nenhum romance.
           


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

do Planeta dos Dinossauros à meia-noite de hoje



meia-noite. as pessoas disseram: é o dia dos teus anos. sorriram enquanto disseram isto e eu, por bem, sorri também. vinte e um, fazes vinte e um, não é?, perguntam alguns. é. faço vinte e um.
passou já tanto tempo desde o primeiro dia de que me recordo de existir. penso que teria cerca de quatro anos. não recordo nada anterior a isso. gostava de voltar a um tempo anterior ao que me lembro, a esse no qual eu ainda não existia conscientemente. porém, eu existia, tão puro. o tempo teve que passar. o tempo nunca olhou para trás mesmo sabendo que o meu passo é lento.
aos cinco, já parece um homenzinho, assim me diziam. lembro-me, sobretudo através de fotografias, das minhas feições muito magras e do meu cabelo, encaracolado, muito comprido. aos cinco, era comandante de navios que navegavam no tanque lá de casa sob tempestades incríveis, causadas pelas minhas mãos e era o astronauta que se perdia no Planeta dos Dinossauros, embora aos cinco não soubesse ainda dizer dinossauros. aos cinco, lembro-me do meu Avô, já doente, sentado no sofá da sala, naquele mais próximo da lareira. enquanto isso eu via os meus desenhos animados. nunca tive grandes conversas com o meu Avô, ou se as tive não as lembro agora. eu era ainda uma criança e o Dragon Ball era mais importante. hoje sinto falta dessas conversas que a vida não me permitiu ter com o meu Avô. olho em redor. procuro.
aos seis entrei para a escola. aos sete o meu avô morreu. aos oito e aos nove não recordo nada de especial, exceptuando ter conhecido o meu melhor amigo, o Luís, e também me recordo das boas notas que tirava na escola e que enchiam os olhos dos meus pais de orgulho. eu gostava da escola, acreditava que, se desse o meu melhor, um dia firmaria os meus pés no Planeta dos Dinossauros. nessa altura já sabia dizer dinossauros. hoje sei que esse planeta não existe.
aos dez fiz a minha primeira, e única, comunhão. coisa importante. lembro-me que não consegui adormecer na noite que antecedeu esse dia. essa foi a primeira vez que li para uma plateia. nunca gostei de falar perante o olhar de muitos. aos dez tinha vários amigos que hoje não reconheceria, se por eles passasse na rua.
aos onze, aos doze e aos treze continuei a tirar boas notas e a criar expectativas nos outros, fardos pesados que se aglomeravam à minha volta. o tempo continuou a passar. aos catorze gostei pela primeira vez de uma rapariga, mas nunca lho disse. era muito tímido, talvez ainda o seja mas prefiro apelidar-me de reservado, e era o beto que não dizia palavrões e tirava sempre boas notas. comecei a ganhar ódio às boas notas. comecei a dizer palavrões. comecei a namorar.
quando entrei para o secundário já era um aluno medíocre, não porque não conseguisse compreender aquilo que tinha para estudar, mas sim porque nem pegava nos livros que devia estudar. embora, verdade seja dita, nunca tenha sabido o que era verdadeiramente estudar, mesmo no tempo dos excelentes e dos satisfaz bastante. acho que ainda hoje não sei o que é estudar.
aos quinze comecei a ler e a escrever poesia. hoje não consigo acreditar naquilo que escrevi nesses dias. nessa época vivia em Espanha. ainda consigo percorrer, sem me perder, toda a cidade de Pamplona. não me orgulho de muito do que se passou, mas não digo que pretenderia apagar esses tempos, se pudesse. gostaria de pedir desculpa por algumas atitudes que tive, se ainda valesse a pena fazê-lo. não vale. ainda percorro todas aquelas ruas.
quando regressei a Portugal, vivi sozinho, já desfazia a barba por esses dias: tinha dezassete anos. pensava que podia fazer tudo, pois tinha uma justificação universal, tinha rancor ao destino em que hoje não acredito. foi por esta altura que conheci os amigos que ainda hoje guardo. conheci os meus Irmãos. éramos sete: eu, o Bolacha, o Tone, o Conho, o Mike, o Sousa e o Mesquita. somos sete ainda hoje, à meia-noite.
aos dezoito tinha o conforto de uma relação estável, quase adulta. agradeço a essa pessoa tudo aquilo que me deu e nunca soube retribuir. gostava que hoje estivesse aqui, no momento em que estou a escrever esta frase. não gostava que visse o estado em que estou enquanto escrevi todas as frases até, pelo menos, este momento. olho em redor. procuro. somos sete, e isso tem de chegar.
aos dezanove descobri que sou um merdas. chovia no dia em que descobri isso. ela sentou-se à minha frente, e todos os quinze minutos que duravam a minha viagem de metro os meus olhos estiveram como que presos. era ela. era ela. não a conhecia, mas sabia que era ela. és um merdas!, pensava para mim. não a conheces, vou conhecê-la, mas nem sabes o seu nome, vou saber, pode não dar certo, vai dar. não deu. ainda hoje vivo nos meus dezanove anos, ainda hoje escuto as mesmas palavras que ela me disse e altero aquilo que lhe disse. olho em redor. procuro. sou um merdas! somos sete, e isso tem de chegar.
aos vinte entrei para a faculdade. faço aquilo que gosto: escrevo, de forma um pouco mais sóbria do que este amontoado de palavras. visto preto, penso a negro, tento escrever luz. a poesia não foi arrumada, continua comigo, e a cada passo que dou ela muda o seu significado. mas será sempre ela, de uma forma ou de outra, tal como seremos sempre sete.
hoje conheço novas pessoas que acredito que vou recordar daqui a outros vinte e um anos. o Bruno, a Bia, o Manecas, a Juca, o Eduardo. todos os dias os conheço melhor e não me canso. o riso contagiante do Bruno, a espontaneidade da Bia, as piadas do Manecas, os abraços da Juca, a descontracção e rigor conjugados do Eduardo…não me canso. tal como não me canso dos meus irmãos, tal como não me canso de me repetir, de me repetir. somos sete, um sete bem gordo, pois nele cabe também o Luís, o meu irmão primeiro, a Pipa, companheira de cafés e versos, e a Joana, a minha Joana que me pedia, quando éramos crianças, para imitar a voz de uma personagem de uns desenhos animados que agora não recordo o nome. daqui a vinte e um anos este sete será ainda mais gordo, se a minha apetência natural para perder pessoas não se manifestar em demasia.
hoje estamos todos reunidos. eles dizem, parabéns, e eu respondo, obrigado. não dizemos muito mais. eu sei e eles sabem. alguém conta piadas novas a um canto da mesa e, no outro, alguém conta histórias antigas e pergunta-me, lembras-te disto? lembro.
hoje fiz vinte e um anos, hoje escrevi este texto não sei bem por que motivo, talvez para não me esquecer das coisas que o tempo levará da minha memória. vinte e um anos passam de diversas formas. por vezes passam depressa e outras vezes demasiado devagar. mas passam sempre, com ou sem nós. neste texto não mencionei algumas situações, algumas pessoas, propositadamente guardadas na minha lembrança. motivo: o tempo está a passar e eu tenho que seguir o seu rasto. tic-tac-tic-tac-tic-tac.
à meia-noite somos sete, estamos quase todos.