meia-noite.
as pessoas disseram: é o dia dos teus anos. sorriram enquanto disseram isto e
eu, por bem, sorri também. vinte e um, fazes vinte e um, não é?, perguntam
alguns. é. faço vinte e um.
passou
já tanto tempo desde o primeiro dia de que me recordo de existir. penso que
teria cerca de quatro anos. não recordo nada anterior a isso. gostava de voltar
a um tempo anterior ao que me lembro, a esse no qual eu ainda não existia
conscientemente. porém, eu existia, tão puro. o tempo teve que passar. o tempo
nunca olhou para trás mesmo sabendo que o meu passo é lento.
aos
cinco, já parece um homenzinho, assim me diziam. lembro-me, sobretudo através
de fotografias, das minhas feições muito magras e do meu cabelo, encaracolado,
muito comprido. aos cinco, era comandante de navios que navegavam no tanque lá
de casa sob tempestades incríveis, causadas pelas minhas mãos e era o
astronauta que se perdia no Planeta dos Dinossauros, embora aos cinco não soubesse
ainda dizer dinossauros. aos cinco, lembro-me do meu Avô, já doente, sentado no
sofá da sala, naquele mais próximo da lareira. enquanto isso eu via os meus
desenhos animados. nunca tive grandes conversas com o meu Avô, ou se as tive
não as lembro agora. eu era ainda uma criança e o Dragon Ball era mais
importante. hoje sinto falta dessas conversas que a vida não me permitiu ter
com o meu Avô. olho em redor. procuro.
aos
seis entrei para a escola. aos sete o meu avô morreu. aos oito e aos nove não
recordo nada de especial, exceptuando ter conhecido o meu melhor amigo, o Luís,
e também me recordo das boas notas que tirava na escola e que enchiam os olhos
dos meus pais de orgulho. eu gostava da escola, acreditava que, se desse o meu
melhor, um dia firmaria os meus pés no Planeta dos Dinossauros. nessa altura já
sabia dizer dinossauros. hoje sei que esse planeta não existe.
aos
dez fiz a minha primeira, e única, comunhão. coisa importante. lembro-me que
não consegui adormecer na noite que antecedeu esse dia. essa foi a primeira vez
que li para uma plateia. nunca gostei de falar perante o olhar de muitos. aos
dez tinha vários amigos que hoje não reconheceria, se por eles passasse na rua.
aos
onze, aos doze e aos treze continuei a tirar boas notas e a criar expectativas
nos outros, fardos pesados que se aglomeravam à minha volta. o tempo continuou
a passar. aos catorze gostei pela primeira vez de uma rapariga, mas nunca lho
disse. era muito tímido, talvez ainda o seja mas prefiro apelidar-me de
reservado, e era o beto que não dizia palavrões e tirava sempre boas notas. comecei
a ganhar ódio às boas notas. comecei a dizer palavrões. comecei a namorar.
quando
entrei para o secundário já era um aluno medíocre, não porque não conseguisse
compreender aquilo que tinha para estudar, mas sim porque nem pegava nos livros
que devia estudar. embora, verdade seja dita, nunca tenha sabido o que era
verdadeiramente estudar, mesmo no tempo dos excelentes e dos satisfaz bastante.
acho que ainda hoje não sei o que é estudar.
aos
quinze comecei a ler e a escrever poesia. hoje não consigo acreditar naquilo
que escrevi nesses dias. nessa época vivia em Espanha. ainda consigo percorrer,
sem me perder, toda a cidade de Pamplona. não me orgulho de muito do que se
passou, mas não digo que pretenderia apagar esses tempos, se pudesse. gostaria
de pedir desculpa por algumas atitudes que tive, se ainda valesse a pena
fazê-lo. não vale. ainda percorro todas aquelas ruas.
quando
regressei a Portugal, vivi sozinho, já desfazia a barba por esses dias: tinha
dezassete anos. pensava que podia fazer tudo, pois tinha uma justificação
universal, tinha rancor ao destino em que hoje não acredito. foi por esta
altura que conheci os amigos que ainda hoje guardo. conheci os meus Irmãos.
éramos sete: eu, o Bolacha, o Tone, o Conho, o Mike, o Sousa e o Mesquita. somos
sete ainda hoje, à meia-noite.
aos
dezoito tinha o conforto de uma relação estável, quase adulta. agradeço a essa
pessoa tudo aquilo que me deu e nunca soube retribuir. gostava que hoje
estivesse aqui, no momento em que estou a escrever esta frase. não gostava que
visse o estado em que estou enquanto escrevi todas as frases até, pelo menos, este
momento. olho em redor. procuro. somos sete, e isso tem de chegar.
aos
dezanove descobri que sou um merdas. chovia no dia em que descobri isso. ela
sentou-se à minha frente, e todos os quinze minutos que duravam a minha viagem
de metro os meus olhos estiveram como que presos. era ela. era ela. não a
conhecia, mas sabia que era ela. és um merdas!, pensava para mim. não a
conheces, vou conhecê-la, mas nem sabes o seu nome, vou saber, pode não dar
certo, vai dar. não deu. ainda hoje vivo nos meus dezanove anos, ainda hoje
escuto as mesmas palavras que ela me disse e altero aquilo que lhe disse. olho
em redor. procuro. sou um merdas! somos sete, e isso tem de chegar.
aos
vinte entrei para a faculdade. faço aquilo que gosto: escrevo, de forma um
pouco mais sóbria do que este amontoado de palavras. visto preto, penso a negro, tento escrever luz. a poesia não foi arrumada,
continua comigo, e a cada passo que dou ela muda o seu significado. mas será
sempre ela, de uma forma ou de outra, tal como seremos sempre sete.
hoje
conheço novas pessoas que acredito que vou recordar daqui a outros vinte e um
anos. o Bruno, a Bia, o Manecas, a Juca, o Eduardo. todos os dias os conheço
melhor e não me canso. o riso contagiante do Bruno, a espontaneidade da Bia, as
piadas do Manecas, os abraços da Juca, a descontracção e rigor conjugados do
Eduardo…não me canso. tal como não me canso dos meus irmãos, tal como não me
canso de me repetir, de me repetir. somos sete, um sete bem gordo, pois nele
cabe também o Luís, o meu irmão primeiro, a Pipa, companheira de cafés e
versos, e a Joana, a minha Joana que me pedia, quando éramos crianças, para
imitar a voz de uma personagem de uns desenhos animados que agora não recordo o
nome. daqui a vinte e um anos este sete será ainda mais gordo, se a minha
apetência natural para perder pessoas não se manifestar em demasia.
hoje
estamos todos reunidos. eles dizem, parabéns, e eu respondo, obrigado. não
dizemos muito mais. eu sei e eles sabem. alguém conta piadas novas a um canto
da mesa e, no outro, alguém conta histórias antigas e pergunta-me, lembras-te
disto? lembro.
hoje
fiz vinte e um anos, hoje escrevi este texto não sei bem por que motivo, talvez
para não me esquecer das coisas que o tempo levará da minha memória. vinte e um
anos passam de diversas formas. por vezes passam depressa e outras vezes
demasiado devagar. mas passam sempre, com ou sem nós. neste texto não mencionei
algumas situações, algumas pessoas, propositadamente guardadas na minha
lembrança. motivo: o tempo está a passar e eu tenho que seguir o seu rasto.
tic-tac-tic-tac-tic-tac.
à
meia-noite somos sete, estamos quase todos.
oh toto =D um pequeno relato da tua vida... és o meu escritor preferido.
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