O título deste texto pode ser
enganador.
Herberto
Hélder morreu hoje, aos 84 anos, provocando-me um enorme vazio que, a esta
altura, ainda não consigo muito bem compreender ou aceitar. Os grandes poetas
não deviam morrer. Algum engravatado, com o pouco que percebe da vida, que
decrete isso, porra! Não lhe ergam estátuas. Não associem o seu nome a escolas,
a ruas ou a praças pouco ou muito frequentadas. Poupem nas homenagens que o
próprio sempre rejeitou. Apenas não o deixem morrer, porra!
O
título deste texto pode ser enganador, repito. Não pretendo falar da
personalidade do Poeta que hoje cessou a metáfora da vida. Não tenho nada para
dizer nesse capítulo. Muito pouco é aquilo que se conhece e os seus poemas serão
sempre os melhores biógrafos. Um homem valerá sempre mais pela sua obra do que
por aquilo que outros poderão dizer a seu respeito.
Dito
isto, é à sua obra que me restrinjo. “Herberto como Pessoa”. Fernando Pessoa.
Outro grande poeta, sem glória ou fama obtida em vida, mas elevado à condição
de ídolo entorpecedor após a sua morte. Porque todos os ídolos entorpecem e
sinto-me na necessidade de esclarecer que, para mim, o Herberto não era um
ídolo.
Nunca
fui um idólatra e rejeito qualquer tipo de vassalagem intelectual. Herberto
Hélder sempre significou para mim uma fonte, um ponto de partida. O facto de
não o conseguir enquadrar numa corrente – porque um poeta não se acorrenta a
nada – sempre me fascinou. Os seus versos provêm do inconsciente, dos precipícios
que possuímos dentro do corpo e sobre os quais colocamos grades, com mãos
acobardadas, parafraseando Mário de Sá-Carneiro.
Mas
voltando a Pessoa, gostaria de esclarecer que contra ele nada tenho. Não menosprezo
a sua obra, assim como não coloco em causa a densidade do seu pensamento e do
seu carácter. Colocar Herberto no mesmo patamar não constitui nenhum
sacrilégio. A obra de Pessoa é mais profunda, mais arquitectada. A de Herberto
é mais natural, mais indomável e mágica. Porque as palavras têm magia e
Herberto Hélder aprendeu-a sozinho, como um eremita, como Zaratustra.
Tomei
contacto com a sua poesia quando tinha 17 anos. Nessa altura achava-me muito
burro por não conseguir percebê-lo. Hoje sinto apenas que fui muito ingénuo em
ter achado que a poesia é coisa que se deva entregar à percepção. Mas a culpa
não foi inteiramente minha!
Desde
cedo, na escola tentaram ensinar-me a compreender os grandes poetas. Sem grande
sucesso, diga-se. Nunca conseguiram incutir-me o gosto por essa poesia tão bem
explicadinha. Descobrir o Herberto foi, portanto, como ter um encontro de
terceiro grau com um ser proveniente de uma galáxia distante. Por não conseguir
percebê-lo, isso talvez me tenha deixado mais susceptível à hipnose que os seus
versos provocam.
Através
da sua obra descobri que as palavras são muito mais do que o seu significado.
As palavras são teclas de um piano infinito. São tintas, com as quais é possível
pintar as paisagens mais estranhas e, por isso, encantadoras. Os poemas de
Herberto Hélder são propostas de embarque para viagens sem regresso certo. São Passos em Volta do mundo dos sonhos. São
crianças tolas que vislumbram mundos novos e em torno dos quais a razão não
gravita.
Herberto
é isso e muito mais. Herberto é como Pessoa, repito. Talvez a sua obra nunca
chegue a constar nos manuais escolares – e espero, sinceramente, que não! –, porque
não é possível sintetiza-la. Os seus poemas são complicados de decorar ou
catalogar – e ainda bem que assim é! Não possui heterónimos, porque não há
necessidade disso, pois todos nós temos diferentes sujeitos dentro de um só
corpo. Também não possui nenhum volume de poesia dedicado à pátria, porque para
ele nunca existiram fronteiras.
Herberto
não tinha país. Tinha mundos vários. Só dele. Sem pessoas a mais.
Herberto
não teve tempo para partilhar a sua solidão, que a todos nos toca, com mais
ninguém.
Contudo,
neste país, teremos imenso tempo para perceber a real dimensão do seu legado.
Talvez um dia, quando esse tempo chegar, alguém me perdoe a ousadia do título
deste texto que em breve acabarei de escrever.
Mas
nada disso importa! Apenas não deixem que os poetas vos morram na lembrança,
porra! Na poesia podemos ser poligâmicos. Pessoa não se importaria. A sério que
não. Juntem, sem medo, o Herberto com o Camões, com o Teixeira de Pascoaes, com
o Fernando, com o Sá-Carneiro, com o Régio, com o Cesariny, com o António Maria
Lisboa, com o Eugénio de Andrade, entre outros. Não se fiquem pelo Pessoa até
vos cessar a líbido.
A
poesia não se quer fiel, mas transgressora.
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