nunca
tive a oportunidade, a sorte, de responder a um questionário. é certo que com
catorze anos tinha cara de cu, usava camisas de flanela e ainda jogava ao
berlinde. mas eu tinha gostado. a sério, acreditem, eu tinha gostado.
é frequente pensar-se que as redes
sociais surgiram com a internet, assim como assim também ainda há gente que
acredita que a Eva foi criada com uma costela do Adão e com barro q.b. não
creio!
estávamos
talvez em 2005, e eu estava a entrar na fase das espinhas, já tinha buço, disso
lembro-me com especial orgulho, quando, ainda sem necessitar de internet para nada, o pessoal lá da escola começou a
interligar-se. não era necessário criar uma conta, definir uma password com
letras e números à mistura, salgalhada total, para alguém entrar em contacto
com a comunidade. bastava um caderno daqueles de capa preta: os míticos Ambar.
cada um tinha o seu servidor, o seu
próprio caderno, que podia muito bem ser confundido com um outro qualquer, de
Ciências da Natureza ou Formação Cívica. até por esse aspecto, essa boa
camuflagem entre o restante material escolar, se tratava de um método bastante
mais eficaz do que, por exemplo, o Facebook.
se a mãe, ou pai, entrasse no quarto e perguntasse ao miúdo problemático o que
estava a fazer, ele poderia dizer que estava a estudar. o caderno dava-lhe
credibilidade para tal afirmação. fora de casa, dava-lhe estatuto. tratava-se
de uma ferramenta elementar na construção da personalidade de qualquer jovem da
minha idade.
para aqueles que não sabem do que
raio estou a falar, ou para aqueles que, como eu, nunca tiveram a oportunidade
de responder ou nem de vislumbrar um questionário, eu passo a explicar do que
se tratavam. nota: eu vi vários, cheguei até a ler alguns, depois de deixar
copiar algum colega indiscriminado no teste de História. eu pedia, deixa-me ler
o teu questionário, e eles, por gratidão, iam deixando. uma vez também pedi a
uma menina para lhe ver o umbigo, mas ela não deixou. voltemos ao assunto. o
processo começava na escolha de um desses cadernos que já referi, limpo e digno
para tal efeito, não podia ter vincos, pelo menos no início. depois, quando
terminado, até poderia ter manchas de fluídos esbranquiçados semelhantes a
sabonetes líquidos. era perfeitamente normal, as últimas perguntas eram
normalmente bastante íntimas, o que fazia com que as pessoas que estavam a
responder ao questionário não resistissem a ler as respostas daqueles que as
precederam. por vezes acontecia, era normal! no tempo dos meus avôs dizia-se
que a masturbação causava cegueira. mas um povo que era forçado a estar calado,
a controlar os pensamentos e a ouvir missas em latim não se deveria importar
grande coisa em não poder enxergar a miséria perpétua que o rodeava. que se
dane, deveriam pensar os nossos antepassados. comia-te, era o que pensava
alguém, meu contemporâneo, enquanto lia as respostas dadas ao questionário por
outro alguém.
a
próxima etapa era a mais determinante de todas e consistia em escrever uma
série de perguntas logo nas primeiras páginas. as perguntas variavam entre as
cinquenta e as cem e escalavam progressivamente na sua taxa de javardice.
é claro que as perguntas de cada
questionário dependiam da pessoa que as redigia, da sua inocência, geralmente
pouca, ou da sua perversidade, geralmente retirada de filmes pornográficos
espanhóis. mas, apesar dessa matriz pessoal, as questões acabavam por ser
bastante semelhantes entre todas as dezenas de questionários que circulavam
pela minha escola. a sequência podia ser mais ou menos esta: 1) como te
chamas?; 5) qual é a tua cor preferida?; 22) qual é o teu prato favorito? 38)
és virgem? 67) e ao rabo?
e eram estas questões metafísicas
que decidiam o grupo em que cada um dos que respondiam a esses questionários eram
inseridos. existiam vários rótulos, múltiplas possibilidades: os betos, os
gunas, os populares, os punks e os nerds. era necessário responder bem! depois
haviam aqueles a que ninguém pedia que respondesse ao seu questionário, esses
já tinham rótulo e lugar fixo. podiam ir jogar ao berlinde ou ficar à baliza
nos jogos de futebol. mas eu por acaso era gordo para ter de ficar à baliza? sei
que tinha uns quilos a mais, mas sempre fui um defesa central bastante razoável.
enfim, adiante!
elaboradas que estavam as questões
era a hora de levar o caderno sagrado para a escola e emprestá-lo aos amigos,
esperar para ler as suas respostas. eles podiam demorar um ou dois dias para
devolver o caderno. responder à pergunta 38 não era fácil! inventar ou não
inventar? depois, quando essa pessoa o devolvia, ele passava para outras mãos.
este ciclo repetia-se até o caderno acabar. e esse momento era o clímax!
quando o caderno chegava ao fim,
quando já toda a gente tinha escrito que não era virgem e que gostava de
feijoada, esparguete à bolonhesa ou arroz de marisco, o dono do caderno
poder-se-ia deleitar a sorver todas aquelas informações. poderia escolher os
seus amigos para o próximo ano e poderia concluir que ouvir Shakira era o que
estava a dar. as pessoas como eu olhavam para aqueles cadernos e imaginavam
segredos, perdiam algum tempo nesse exercício, franziam as sobrancelhas durante
esses momentos e depois pensavam em chocolates ou em gomas com sabor a
coca-cola.
hoje, volvidos todos estes anos,
pergunto-me o que terá acontecido a todos esses cadernos. será que se perderam?
será que foram queimados? – esta última questão é uma enorme vantagem em
relação a qualquer outra rede social. espero que tenham sobrevivido, eles
marcaram uma geração de pessoas que esta hora estão entretidas a apreciar
fotografias dos outros em vez de se preocuparem em saber, de forma directa,
como faziam antes, se a pessoa que estão a analisar já levou por trás. creio
que nunca terei resposta a essas perguntas, assim como nunca terei a
oportunidade de responder a nenhuma daquelas perguntas numeradas e escritas a
caneta de cor azul fluorescente. houveram vezes em que ensaiei as respostas que
daria àquelas questões todas, tinha uma personalidade forjada que poderia ter
cabido muito bem no grupo dos betos. já não teria sido mau!
essas
são as respostas que nunca dei. fui obrigado a crescer sem vivenciar essa
experiência inolvidável. mas cá cheguei, já com barba, a este ponto, a este
texto com palato a chocolate e gomas de sabores variados.
Muito bom !eu cheguei a preencher esses questionários, aliás, também criei um xD
ResponderEliminarobrigado!
Eliminarse tens um, então não o queimes nem o deites fora, esses cadernos são uma espécie de dinossauros das redes sociais. =D