Sete passos para a verdade
humana
I
Penso: o universo é uma obra cubista - de Picasso ou Braque, não importa! A
realidade é, per se, uma mera questão de
perspectiva. Uma verdade, não importa qual, é sempre um decreto comummente
aceite por uma sociedade organizada; é uma convenção estabelecida pela forma
como olhamos ou como pensamos. No entanto, serão os nossos sentidos - o olhar
em particular - sensores exactos? Não sei!...
Uma verdade pode abranger toda a humanidade ou apenas uma civilização
local. A realidade é maleável e a retórica sabe esculpi-la. Se mudarmos as
nossas palavras, mudamos o mundo, mudamos a verdade. A equação é simples. A
incógnita somos nós. E todos somos diferentes. Obtemos múltiplos resultados.
Habitamos, assim, por consequência, distintos mundos.
Acredito na força dos factos, mas todas as conclusões deles extraídas são
sempre subjectivas. Então, posto isto, a boa retórica é aquela que nos embala,
acalma a existência e nos abranda o batimento cardíaco. Todos gostamos de um
bom conto ao adormecer. «E foram felizes para sempre!...» A retórica é a
aliança onírica que se molda ao tamanho de qualquer dedo, apontado em prol de
qualquer propósito.
II
No discurso dos
pensadores gregos Sócrates e Górgias, existe uma plena consciência do poder
persuasivo e encantador da palavra. Ambos têm a plena noção de que em muitos
assuntos não é possível apurar uma verdade omnipotente. Mas enquanto que para
Sócrates o discurso que não se fundamenta na verdade e se centra, sobretudo, na
opinião só poderá dar frutos envenenados a quem dele se alimentar, para Górgias
o discurso é um «corpo diminuto e quase imperceptível que leva a cabo acções divinas.»
Górgias concebe a retórica como uma arte, como um encantamento dos deuses, que,
tal como a Poesia, se serve de alguns artifícios, como a melodia e o ritmo,
para dessa forma conseguir activar determinados sentimentos nos receptores da
mensagem. Por sua vez, Sócrates, também ele, reconhecia que não basta conhecer
a realidade; é também necessário saber usar a palavra com engenho. Ele próprio
reconhece que o orador sente a necessidade de conhecer quantas formas tem a
alma, para, dessa, forma, tornar o seu discurso mais eficaz.
No
fundo, julgo que o principal ponto em que diferem estes dois pensadores é nas
suas definições de arte. Sócrates pensa que a arte discursiva deve estar
subjugada à verdade, deve provir dela; Górgias passa a verdade e realidade para
segundo plano, embora saiba que a retórica pode servir para enganar o espírito,
e dá primazia às técnicas e encantos discursivos, que acabam por conseguir
moldar os factos. Porém, a meu ver, essa lapidação dos factos não constitui
nenhuma imoralidade, pois as conclusões que deles retiramos são sempre
subjectivas.
III
Aristóteles, na
sua concepção da retórica, demarca-se nitidamente de Platão e de Górgias. Ele
concebe a retórica como uma técnica que, sendo bem usada, quando usada de
boa-fé, pode ser muito útil. Ao contrário de outras disciplinas, a retórica é
flexível. Isso já o dizia Górgias, um sofista, que tinha uma perfeita
consciência do poder mágico e encantador da palavra. Ao contrário de Sócrates,
que defendia que antes de se partir para qualquer argumentação se deveria ter
um conhecimento pleno da verdade e do justo, reduzindo a realidade a uma figura
plana, Górgias encarava a realidade e a verdade como um poliedro, passível de
ser interpretado através de diversas perspectivas. Este é um ponto em que
Aristóteles e Górgias coincidem.
No
entanto, enquanto Górgias considerava a retórica uma arte, Aristóteles encara-a
como uma técnica. Ou seja, a retórica não é nem um veneno nem uma poção mágica:
é uma ferramenta. Há, portanto, que saber “manuseá-la”. A forma deve sempre
coadunar-se com o conteúdo; não deve distorcê-lo. Ainda que o conteúdo seja
esse poliedro confuso que referi.
IV
O Homem, culpado
ou não por ter criado dentro de si uma série de teias e conexões perigosas e
frágeis, mas que ao mesmo tempo lhe dão a desejada sensação de superioridade,
vê-se mergulhado numa série de convenções. A verdade e a mentira, o bem e mal,
a moral e a imoralidade, o certo e errado, tudo conceitos que toldam a sua
percepção e o seu universo, embora aparentemente o expandam. O ser humano usa a
palavra como um signo para tudo aquilo que percepciona e racionaliza, sem
compreender a falácia em que incorre ao proceder a uma generalização. E,
arrisco-me a dizer, todas as generalizações estão providas do erro, incluindo
esta.
Perdemos assim a
nossa centelha da genuinidade, tornámo-nos seres calculistas, redutores em
relação a tudo aquilo que nos rodeia na tentativa de nos amplificarmos e
encontrarmos na Maçã a realização plena. Temos nomes que nada dizem
acerca de nós próprios. Temos números que logicamente provam aquilo que não
podemos verificar. Temos conceitos e valores enraizados que nos conduzem a cada
acção que tomamos. Temos deuses como solução para aquilo que não poderemos
nunca perceber. Tomamos o acaso como a principal pedra no sapato, quando, na
verdade, o maior de todos os nossos problemas é a pouca homogeneidade e
compactação entre tudo aquilo que vamos convencionando.
E o que fazemos
quando uma nova ideia põe em causa todas aquelas que entretanto já estão
solidificadas, emaranhadas umas com as outras? Activamos o nosso sentido
prático! Rejeitamos aquilo que nos desafia e que obrigaria a uma total
reformulação. No entanto, o tempo passa e essa ideia assaltará um outro alguém
e depois um outro e depois um outro ainda. E começamos a perceber que afinal o
impossível batia certo. Raios partam os loucos!...
V
Imaginemos a
realidade como um ser, híbrido e mutável, como qualquer outro, sujeito a uma
evolução natural. A construção da realidade é feita a cada instante; é, por
fim, até ao fim, o encadeamento das várias verdades que se vão conectando e
sobrepondo umas às outras. Contemplemos a realidade como uma obra cubista, onde
vários planos se cruzam; uma intersecção de perspectivas. A catharsis do real reside no infinito,
pois a imaginação e a necessidade humana não têm limites.
A
eternidade é feita de uma sucessão infindável de momentos. E é desta forma,
também, que o real, passo-a-passo, continua o seu caminho de forma a ajustar-se
a um universo sem limites. Aquilo que racionalizamos e sistematizamos – o
verdadeiro e o falso, o positivo e o negativo, o puro e o impuro, justo e o
injusto – é então um legado inacabado, embora, muitas vezes, aos nossos olhos,
nos pareça uma obra perfeita. Somos os herdeiros, o resultado, da operação
plástica que impusemos a tudo aquilo que nos rodeia. Mas somos mais do que
isso! Somos, enquanto espécie, os seus obreiros perpétuos.
A
realidade não está, por conseguinte, dependente do ponto de vista de cada ser
pensante que a contempla e julga poder agarrar a sua sempiternidade. As nossas
mãos apenas a podem impelir numa ou noutra direcção; podemos esticá-la um pouco
mais, reduzi-la, ajustá-la às nossas feições e aos nossos interesses.
Esqueçam
a frase com que iniciei este texto. Afinal, agora, a realidade é isto. Daqui a
instantes, será isto e também aquilo que está por vir. Assim, sucessivamente,
durante todas as eras futuras deste mundo e desta espécie sujeita a evolução,
ela será isto e aquilo, isto e aquilo, isto e aquilo, isto e aquilo…
VI
Futuro.
Progresso. Conceitos inconcretos, mas alinhavantes do pensamento modernista,
que se tornaram, durante a primeira metade do séc.XX, quase dogmas unificadores
da sociedade capitalista ocidental. O modernismo surge como uma nova crença,
apoiada nos avanços científicos e tecnológicos, tida como o caminho que o Homem
trilha em direcção à omnipotência e à libertação dos medos. Ao contrário de um
mito, que sustenta a sua existência num hipotético acontecimento passado, o
modernismo olha em frente, apontando para o Übermensh
de que Zaratustra falava.
Embora, per se, a era modernista tivesse um
carácter quase profético acabou por se diferenciar do plano mítico na medida em
que fez da ciência e do positivismo o seu santo graal. Imperou nessa época uma
total acreditação nas capacidades e nos valores da humanidade. No entanto, após
a Segunda Guerra Mundial, a raça humana conheceu-se, de forma cruel, a si
própria e percebeu que o conhecimento não lhe retirou por completo a
bestialidade que tentara expulsar durante toda a sua evolução enquanto espécie.
E assim morreu
mais uma crença, talvez a última que vingou no mundo ocidental. O ultra-humano
foi desacreditado e emergiu, por fim, o homem niilista: aquele que não
“desbrava florestas virgens”, pois o cansaço nasceu com ele; aquele que não
olha nem para o futuro nem para o passado; aquele que não aponta o caminho a ninguém,
talvez por também se encontrar perdido.
“Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”
José Régio, in Cântico Negro
VII
Para o filósofo niilista John
Gray, o Homem – não a humanidade, pois para o autor esse conceito não contém um
significado real – é apenas mais uma espécie que constitui a biodiversidade do
(nosso planeta) planeta que habitamos. É inerente à condição humana a
ideia de que somos responsáveis por nós, enquanto colectivo, e pelo mundo.
Desenvolvemos formas de controlar e manipular tudo aquilo que nos rodeia.
Criamos a moral, códigos de conduta, para dessa forma
camuflarmos os nossos instintos mais básicos. Arquitectamos grandes narrativas,
construímos sonhos colossais. Movemo-nos em nome do progresso, do bem comum e
tendemos a anular o carácter individual da nossa existência. Não somos mais do
que hóspedes neste mundo, mas tomamo-lo como uma herança. E, sabe-se, onde há herança,
há irmãos que guerreiam.
Assim acontece entre todos nós,
homens de todo o mundo. Por querermos ser deuses, inventámos demónios de veludo
– a ciência. Ela não é mais do que uma utopia sofisticada – uma “versão secular
do cristianismo” segundo o autor. Usamos o avanço tecnológico contra nós
mesmos; somos predadores e presas de nós mesmos. Per se, um animal não é bom ou mau. É. Simplesmente. Mais nada! Mas
o Homem deseja ser mais, pois sabe ser menos do que a entidade que inventou:
deus.
Somos uns mais ou somos mais uns?
Somos universos caóticos dentro dos mundos que são os nossos corpos. Queimamos
e queimamo-nos pelo fogo que Prometeu ousou roubar.
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