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sexta-feira, 2 de setembro de 2011
PALAVRAS EM GUERRA (IMPÉRIO MORTO)
“Mãe, escrevo-te esta carta para que saibas que estou bem, para que todos saibam que, eu, estou bem. Amanhã embarcamos para Portugal. Nem todos. Alguns como o Damiano, o meu amigo que fiz aqui, no mato, o amigo de quem te fui falando mãe, ficará aqui, como muitos outros, para sempre. Mas para sempre é um período de tempo que não conseguimos ver ou pensar mãe. Não consigo imaginar mais do que vintoito anos. É todo o tempo que tenho e que consigo sentir.
A guerra está terminada e estou mais vivo do que nunca mãe. Estou diferente. Tenho cicatrizes novas, tenho o sangue de outros que se me entranhou na pele, bem fundo, tenho mortes bem presentes na memória e tenho a minha vida – nunca valeu tanto a minha vida mãe.
Muita coisa se perdeu aqui para além de territórios, muito para além de um império moribundo. Perderam-se pessoas, que viverão para sempre ou que nunca mais viverão. Tudo depende de nós, daqueles que cá ficámos. Tenho a certeza que o Damiano viverá na minha lembrança, pelo menos por mais vintoito anos. É todo o tempo que consigo imaginar.
Sinto a tua falta mãe. Sinto a falta do pai, uma saudade real, que provavelmente nunca conseguirei verbalizar. Sinto tanto a vossa falta mãe. Mas antes de voltar a casa, antes de as nossas palavras ditas, misturadas com o teu choro saudoso de mãe, antes de de eu e o pai nos abraçarmos em silêncio, naquele silêncio nosso que só nós ouvimos o que diz – diz tanta coisa aquele nosso silêncio – sempre baixinho, antes de tudo isto mãe, eu terei de procurar por mim. Fico longe da nossa casa, fico a bastantes quilómetros de distância…
Mas fico perto. Fico neste beijo que te deixo mãe.
Voltarei em breve. Promete este teu filho que te ama mãe. Prometo eu, longe, José.”
Foram mais ou menos estas as palavras que escrevi para a minha mãe. Foram mais ou menos estas as palavras soluçadas, repletas de orgulho, que o meu pai, os vizinhos, toda a gente que consigo imaginar, devem ter ouvido da boca da minha mãe.
Chego por fim a esta aldeia estranha, como que deserta. Para trás ficaram a carreira e a sua marcha lenta, tornada ainda mais vagarosa pelas histórias, pelas rezas das viúvas. Para trás ficou o atrelado, almofadado com palha, rebocado por um velho e pequeno tractor, conduzido por um velho, pequeno e simpático homem que me trouxe até aqui: esta aldeia, da qual nada conheço. Apenas ela e nem ela conheço…
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