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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A CASA DO VIOLONCELO - CAPÍTULO IV - ATRASADO NO TEMPO




- Descreva-me o dia em que, realmente, conheceu o seu pai.


Nesse dia o professor de música não tinha aparecido. Estava doente. Nesse dia o meu violoncelo não se tinha feito ouvir. Estava triste.
Como ainda era cedo, o sol ia ainda alto, decidi convencer a Francisca a ir até minha casa. Nesta época já não éramos tão inocentes assim. Eu sabia, tinha a certeza, que não estaria mais ninguém em casa àquela hora.



Hoje fiz quinze anos. Toda a rua soube disso, nunca ninguém se esqueceu deste dia. Embora todos se esforcem por esquecê-lo, ele parece querer permanecer. Tal como o violoncelo permanece, dormitando, ao canto do meu quarto.

Apesar de já não ser um miúdo, o meu quarto pouco mudou ao longo dos anos. Ao lado da cama está ainda o cesto dos brinquedos, sujos pelo tempo, como que mortos. Na gaveta da mesa de cabeceira, estão pousados os livros de histórias que os meus pais me liam quando era criança. Eram histórias simples, eram finais que eu já não ouvia. Eram histórias, como esta, em que eu não estava. Eram histórias, onde eu estava em pensamento.


fomos. somos. seremos.
seres fielmente enganados,
todos os dias trocados de mundos.

pessoas correm lá fora, cortantes
para os meus olhos programados.

segundos. horas. dias a fio,
permanecemos assim parados.
eu sem mim, eu sem nós
e tu, ignoras de longe, em silêncios profundos
todos os nomes,
todas as ruas por que passamos.

nós, contigo distante.
nós, um ser ofegante
dormindo ao abrigo das mentiras prometidas.

nós, sempre assim.
eu, agora por fim:
só, sem saber bem de ti…

sabendo apenas que nesse nós existi.


Sei que houve um nós. Sei que existi, lá: em nós. Olho a sala vazia, olho pela janela: a rua cheia, mas sempre vazia de propósitos. É uma mancha de gente perdida. É uma mancha. É autómata.

O João está ao meu lado. Estamos à janela vendo a passagem de uma mancha que não nos vê. Atrás de nós o silêncio, encostado a nós, olha também a rua. Ele foi triste. Depois conformou-se. Os anos passaram e o silêncio, cada vez menos revolto, foi também ele aceitando esta sua condição. Por vezes sente falta do choro do violoncelo. Em tempos brincavam, amavam-se durante horas. Hoje esses dias são já muito distantes, vivem apenas na nossa lembrança: na minha, na do meu filho e na do silêncio.



- Continue – disse ele, e depois um silêncio.

Continuo. Continuámos felizes até casa. O caminho era distante, mas as nossas mãos unidas, os nossos olhos presos em nós, as nossas palavras segredadas ao mundo: ao nosso mundo: sussurradas bem alto, os nossos sonhos como fios condutores conduziram-nos até minha casa.

O céu estava agora pintado em tons de laranja, quase sangue. Na minha rua havia um silêncio, uma paz inerente a qualquer fim de tarde normal. Por norma, aceitamos que a paz é silenciosa. Havia silêncio na minha rua. Continuámos.

A minha casa vazia, como verifiquei quando chamei pela minha mãe e pela minha irmã Elisa. Ninguém respondeu. Pousei, em seguida, o violoncelo junto à lareira. A Francisca estava ao meu lado.



Segundo o que me foi dito, o violoncelo chegou com o meu pai, metido num estojo grande e preto, trazido de longe. O meu pai chegara de Angola, de uma guerra que mudaria a sua, as nossas vidas. Primeiro, o violoncelo ficou, com o meu pai, na casa da minha avó. O meu avô havia falecido pouco antes de o regresso do meu pai. Depois, mais tarde, quando os meus pais se casaram, o violoncelo mudou-se com eles para a casa onde eu e a Elisa nascemos, para a casa onde o meu pai morreu.

Muito se alterou na vida do meu pai desde o seu regresso. De professor passou a pedreiro. Profissão que, diga-se, nunca desempenhou com grande competência. A vida não foi fácil, nem para ele nem para a minha mãe, que me criou a mim e à minha irmã sozinha, enquanto o meu pai trabalhava longe.
Nesses tempos, o violoncelo ficou, ao alcance do pó e das cinzas, observando-nos imóvel encostado à lareira.



A Francisca seguiu os meus passos; as nossas mãos entrelaçadas. Caminhávamos absortos apenas em nós. Os passos cuidadosos que dávamos guardavam segredos só nossos.

quando eu penso em alguém, imagino lugares.
geralmente vazios, constantemente distantes.
quando eu sinto que ninguém está por perto,
os meus olhos queimam a minha infiel certeza.
com destreza, cortam a corda dum nó quase certo.

não estou só.

eu sou mais do que um corpo parado,
atrasado no tempo:

sou eu e a lembrança que tenho dos outros.

lembro-me com exactidão de muitos,
mas conheço tão poucos,

tão poucos,

tão poucos…

são imensos dentro deles.



Um ruído vinha do quarto da Elisa: um choro. Ouvi depois a voz do meu pai, áspera, falando mais alto, tentando repor o silêncio.
Aproximei-me com passos leves, como que flutuando; a Francisca ficou parada junto da porta do meu quarto. A distância pouca que nos separava, aumentou de uma forma paranormal.

– Como assim, paranormal?

Nunca compreenderá através de um pensamento, obviamente, tão bem organizado… Que horas são?

– Faltam ainda dez minutos. Continue!

Eu continuei. Parei em frente à porta do quarto da minha irmã. O curto corredor albergava agora todo um mundo: o meu mundo…o nosso mundo. As minhas mãos, o meu corpo, o meu coração tremiam juntos, num perfeito compasso.

Tic, tac, tic, tac, tic, tac!

Entrei por fim. A porta oferecia uma enorme resistência à minha pouca força, ao meu muito medo. Os meus pés pareceram presos. Vi os olhos receosos da Francisca antes de entrar. Algo a tinha também perturbado, aquando daquele berro do meu pai. Algo me escapava. Não por muito tempo…

Os meus olhos viram o que já mais esquecerei. A minha irmã estava na cama, chorando, escondendo o rosto. O meu pai furioso; o meu pai passando apressadamente, junto a mim, sem me olhar. Passou como um punhal que me dilacerou. Algo escapava ainda ao meu pensamento naquele momento, mas eu sentia algo muito perfeitamente: sentia medo, sentia muito medo.

o silêncio grita mais alto que eu e tu juntos
e as palavras ficam a ver passar a procissão.

lá vão os tempos em que tanto dissemos,
que tanto jurámos sabendo ser mentira.

no chão, nós vemo-nos numa poça, pintada a carvão.
cristalizados num gesto que fizemos
e que quisemos que fosse eterno.

mas todo o tempo é tempo demasiado.

Por hoje é tudo, doutor!

– David, a culpa não foi sua…



Prólogo: http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/02/casa-do-violoncelo-prologo.html

Capítulo 1: http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/03/casa-do-violoncelo-capitulo-i.html

Capítulo 2: http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/04/casa-do-violoncelo-capitulo-ii-familia.html

Capítulo 3: http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/06/casa-do-violoncelo-capitulo-iii-restos.html

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