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domingo, 2 de outubro de 2011
PALAVRAS EM GUERRA (À LAREIRA)
Encontrei a casa dela. Havia já passado, duas ruas antes, pela casa do meu amigo Damiano. Senti a sua presença, senti um choro. Senti um silêncio depois. A noite estava a chegar e o céu, numa tonalidade sanguínea, estava limpo. Viam-se as estrelas e um astro mais brilhante: Vénus, sorrindo aos amantes.
Para dar com a casa, tinha entrado na única taberna da aldeia. Lá, um dos homens, já um pouco bebido, traçou-me uma rota algo confusa que me levou até ali. Setenta e quatro, era o número da porta, marcado a giz num muro baixo, velho. Era ali. Hesitei.
Tentei acalmar-me; tentei por o rosto o mais natural possível. Não consegui. Decidi que ia contar até vinte e nesse exacto momento faria soar a campainha. Pareceu-me bem.
Seis, sete, oito, nove…Um rosto surgiu por detrás da cortina de uma janela isolada de todas as outras. Era uma mulher. Não era ela. Velha demais. Tentei sorrir: não sei se consegui.
O vulto desapareceu novamente, enquanto a cortina retomava a sua postura imóvel. Houve um silêncio ansioso quase eterno. Durou muito pouco. O rosto, o corpo daquela mulher aproximava-se agora na minha direcção. O eco do bater da porta ainda no ar. À medida que se aproximava, os seus olhos fundos, duas sombras num semblante pálido, prendiam-me como correntes de aço. Era magra e o cabelo, grisalho e levemente ondulado, ondulava com o vento. Tinha um longo vestido de fazenda, creio, que lhe tapava quase as pernas feitas de uma pele muito branca. Aproximava-se de mim: era a única certeza que eu tinha.
Parou diante de mim. Tremi. Fitou-me sem nenhuma expressão de vida dentro dela. Ouvi o meu respirar. Tinha uma carta na mão esquerda. Encostado ao muro, da parte de dentro da casa, estava um enorme estojo.
Não parecia nada surpreendida com a minha repentina aparição ao portão de sua casa, que fez abrir momentos depois. Saiu, como que flutuando. Passou junto a mim como que sem me ver. Nesse momento percebi pelo seu rosto de quem se tratava. Era a mãe dela! O tempo que me demorou esta análise, foi o tempo que aquela mulher precisou para pousar na rua o enorme estojo e pousar-lhe por cima um envelope branco. Passou novamente por mim e parou:
– Olá…foi o que a minha filha me pediu que lhe dissesse no dia em que aparecesse. – ainda tentei retribuir-lhe o cumprimento, fazer-lhe inúmeras perguntas e pedir-lhe, talvez, para entrar.
Não tive tempo para nada disto. A mulher virou costas, fechou o portão, entrou em casa, fechou a porta e as cortinas não mais se moveram. Silêncio outra vez. Milhares de pensamentos confusos na minha cabeça. Não sabia bem o que fazer. Não fiz nada durante algum tempo. Fiquei, ali, parado.
Era já noite e a rua estava deserta. Apenas eu, um enorme estojo em forma de garrafa e aquele envelope. Aquela rua não tinha qualquer tipo de iluminação, à semelhança das restantes por aquelas bandas. Lembrei-me que no bolso tinha uma pequena lanterna. Acendi-a. Peguei no envelope, com as mãos ainda tremendo. Abri-o, rasgando-o um pouco. Guardei-o no bolso. Olhei a folha meticulosamente dobrada em quatro. Li-a depois.
“Não poderia ser assim. Percebo, agora, que não poderia. Não consigo suportar o peso que aquela guerra me trouxe. Sou eu contra mim mesma e os outros do meu lado, contra mim.
Não poderia. Não, não poderia viver assim.
Esta aldeia é demasiado pequena. A sua presença está em todos os lados e eu, assustada, fui-me escondendo por de trás das palavras de uma voz incógnita.
Esta aldeia conhece-me demasiado. Não suporto mais a minha presença, a minha traição. Estarei em todos os lados desta aldeia, longe de todos os olhos acusatórios.
Amar-te-ei, sem nunca sequer te tocar. Irei para onde me levares, dentro deste violoncelo…”
O chão abriu-se abruptamente sob os meus pés. As lágrimas sufocaram as minhas palavras e diluíram as dela, escritas em frágil papel. Se tivesse a força de um deus, acabaria com o mundo que de mim a tirou.
– Vim para te buscar, mas o meu braço não te alcançou…
Foi inerte durante muito tempo até as minhas lágrimas secarem e o meu corpo se curvar. As minhas mãos foram agora mais cuidadosas. Abri o estojo negro. Vi-o pela primeira vez: o violoncelo. Toquei-o pela primeira vez, ainda que toscamente. Toquei-a pela primeira vez.
Foi assim que este violoncelo, que hoje partilho com o David, me veio parar às mãos. Depois da guerra, depois da minha inglória jornada voltei a casa, para junto da minha mãe, o meu pai havia morrido dois antes da minha chegada. Mas não voltei sozinho. Mesmo depois de me ter casado e os meus dois filhos, a Elisa e o David, terem nascido, ela esteve sempre entre nós.
Muita coisa mudou em Portugal depois da guerra. De professor passei a pedreiro. Nós, soldados, fomos tratados como o lixo de um império morto. O tempo que passámos longe correu muito mais depressa para aqueles que cá ficaram.
O tempo hoje passa mais lento, nos serões que passamos à lareira e eu tocando o velho violoncelo. Eu, ela, a minha mulher e os meus filhos.
Nota: este foi o último capítulo da narrativa "Palavras em Guerra", que serve de prelúdio para "A Casa do Violoncelo". Espero que tenham gostado. Boas leituras!
André Correia
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