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domingo, 23 de outubro de 2011

PALAVRAS EM GUERRA

(versão revista e integral)


I - Formas de Luta

o dia volvera chuvoso e hoje jogava o Benfica. a guerra parava para respirar, para recuperar o seu fôlego mortal. no acampamento as coisas estavam calmas. um silêncio de domingo, por vezes cortado com gritos de golo. era do Eusébio. todo o regimento explodia de alegria, todos menos eu. eu apenas escrevia. mais uma carta: beijos caligrafados que tocam a face que nunca toquei.
faz já mais de um mês que o meu companheiro, e único amigo, o Damiano, morreu. uma mina destruiu o seu corpo perante os meus olhos parados, como que presos. conhecera-o aqui: no mato que não conhecíamos. éramos muito diferentes. o Damiano falava muito, ria muito, contava histórias da sua terra, do seu mundo, da sua terra….
costumava falar muito da sua família: da sua mãe, do seu pai morto e dela, tão viva na sua lembrança. Maria. é este o seu nome, que para sempre me unirá ao Damiano. era frequente ele falar-me dos sonhos que tinha. todos eles envolviam a Maria. descrevia-a de forma tão real. eu não dizia nada, sorvia apenas todas aquelas palavras que iam criando um rosto, alguém belo no meu pensamento.
estávamos há três semanas em Angola quando o Damiano me pediu, pela primeira vez, para escrever uma carta endereçada à sua moça. mostrava-se um pouco embaraçado. não sabia escrever. sorri-lhe. disse-lhe que escrevia. ele agradeceu, sorriu. não sabíamos.
ele ditava tremulamente tudo aquilo que sentia. enquanto ditava dizia-me constantemente: é uma bela moça; uma moça às direitas. pedia-me sempre que fizesse uma letra bonita: a mais bonita que houvesse no mundo: pedia ele. enquanto eu redigia a carta, o Damiano dizia que gostava de ter sido professor: como eu. pediu-me também que o ensinasse a escrever. já assinava o seu nome antes de morrer.
os combates eram duros. a morte estava em todo lado. nas pedras, no céu, nas árvores, nas águas… enquanto furávamos pelo mato pisávamos cadáveres, companheiros e inimigos mortos lado a lado. nos nossos olhos, cansaço; medo; quase morte. era à noite, no acampamento, que nós soldados, nós homens, nós meninos assustados, encontrávamos algum pouco descanso. alguns rezavam, outros cantavam. eu escrevia. antes escrevia para matar o tempo, agora escrevo para que as minhas palavras vivam no tempo: vivam um dia no coração dela.
hoje é uma dessas noites, em que, esgotado, escrevo. hoje o Damiano já não me dita as palavras, hoje as palavras são minhas: sou dono delas e entrego-lhas. envio-lhas para longe, para Portugal. para uma aldeia pequena perto de Beja, da qual nada conheço: apenas ela e nem ela conheço. apenas uma fotografia, que encontrei metida nas coisas do Damiano.
é certo que por esta altura podem estar a pensar que o que faço é errado…talvez seja mesmo errado. mas mais do que errado, é inevitável. ao longo de todas as cartas que lhe escrevi, de todas as que recebi e li para o Damiano, de todas as histórias contadas com palavras doces, de todos os detalhes narrados com pitadas picantes, esta mulher passou a fazer, inexplicavelmente, parte de mim. e eu, eu não a posso remover. depois de Damiano morrer, tentei parar, lutar contra mim próprio. mas não consegui. sou tão fraco. fui mais forte. continuei a escrever-lhe cartas e mais cartas. todas diferentes, todas iguais. e o mais espantoso: as minhas cartas tiveram retorno. ela sentia o mesmo. sem sabermos, sem termos uma explicação razoável, fomos nós sem os demais.
é certo que estou rodeado de gente, mas estou sozinho. a vida por um fio: um fio de cabelo dela que nunca toquei. hei-de voltar um dia, prometo isto a mim próprio. tenho de a conhecer. tenho de a ver: saber que é real.
por isso vivo, por isso escrevo, por isso luto por Portugal.



II - Palavras Para a Minha Mãe

“ luto por Portugal. luto por todos nós e por nós sobrevivo, Mãe.
gostava de ver o teu orgulho ao ler estas palavras, que o meu rosto inexpressivo não te poderia nunca dar, gostava de ser menino, outra vez, e de pousar a minha cabeça no teu colo, gostava de poder chorar… como eu gostaria, Mãe.
aqui sou eu e os outros: uma guerra infindável entre soldados, que não são mais que meros peões. tão cansados. sinto-me cansado, Mãe. não digo que tenho medo, mas sinto o medo. não poderei nunca dizê-lo. porque o medo sem ser dito é apenas uma noite de o inverno, cortante, arrepiante.
penso nas histórias que me contavas e nos beijos que me davas para eu adormecer, Mãe. penso nisso durante estes escuros dias. mato homens diferentes, iguais a mim durante o dia. nesses momentos não penso em nada. a guerra é assim. sou eu e os outros, separados por balas. sou eu sem eu mesmo, matando, matando. é a minha voz sem o meu ímpeto, gritando, gritando.
espero poder voltar. prometo que voltarei, Mãe. espero que me reconheças ainda quando voltar, Mãe. não prometo que seja eu.”



III - Depois de Abril

de Lisboa até Beja passam-se três horas e meia na carreira. o ar é pouco e a gente muita. a velha carreira é lenta e o tempo também. pela janela a paisagem apresenta-se quase imutável. a planície, resplandecente pelo sol alto da tarde quente, parece infinita. a minha cabeça, pousada sobre a minha mão cerrada, tem um peso mil vezes mais pesado que o seu peso: pensamentos.
os meus pensamentos parecem infinitos, mas todos findam na mesma imagem, no mesmo rosto, na mesma voz que nunca escutei…mas conheço-a. conheço-a tão bem. falou comigo tantas vezes naquele mato mortal, pediu-me tantas vezes que voltasse e eu, sem saber de mais nada, sabia apenas que um dia voltaria. não era da razão que nascia a promessa, era da minha vontade rodeada de balas.
trago no bolso da camisa uma fotografia, a única que tenho dela. esteve sempre perto de mim, em diferentes bolsos. na parte de trás tem uns rabiscos. tem o nome do Damiano, escrito numa letra confusa, e tem o nome dela: Maria: escrito numa letra mais bela. foi a última coisa que o Damiano fez antes de morrer. escreveu o seu nome ao lado do nome daquela mulher, que já lá estava escrito ainda antes da nossa partida para a guerra, escrito ainda antes da chegada daquela guerra que levou o Damiano e me deixou a mim esta fotografia.
olho-a mais uma vez. demoro-me. falta pouco para chegarmos a Beja. guardo-a de novo. à minha volta os velhos vão falando. não os oiço. à minha volta ninguém me chama. consigo ouvi-la tão bem…



IV - Império Morto

“Mãe, escrevo-te esta carta para que saibas que estou bem, para que todos saibam que, eu, estou bem. amanhã embarcamos para Portugal. nem todos. alguns como o Damiano, o meu amigo que fiz aqui, no mato, o amigo de quem te fui falando, Mãe, ficará aqui, como muitos outros, para sempre. mas para sempre é um período de tempo que não conseguimos ver ou pensar, Mãe. não consigo imaginar mais do que vintoito anos. é todo o tempo que tenho e que consigo sentir.
a guerra está terminada e estou mais vivo do que nunca, Mãe. estou diferente. tenho cicatrizes novas, tenho o sangue de outros que se me entranhou na pele, bem fundo, tenho mortes bem presentes na memória e tenho a minha vida – nunca valeu tanto a minha vida.
muita coisa se perdeu aqui para além de territórios, muito para além de um império moribundo. perderam-se pessoas, que viverão para sempre ou que nunca mais viverão, tudo dependerá de nós, daqueles que cá ficámos. tenho a certeza que o Damiano viverá na minha lembrança, pelo menos por mais vintoito anos. é todo o tempo que consigo imaginar.
sinto a tua falta, Mãe. sinto a falta do pai, uma saudade real, que provavelmente nunca conseguirei verbalizar. sinto tanto a vossa falta, Mãe. mas antes de voltar a casa, antes de as nossas palavras ditas, misturadas com o teu choro saudoso de mãe, antes de de eu e o pai nos abraçarmos em silêncio, naquele silêncio nosso que só nós ouvimos o que diz – diz tanta coisa aquele nosso silêncio – , antes de tudo isso, Mãe, eu terei de procurar por mim. fico longe da nossa casa, fico a bastantes quilómetros de distância…
mas fico perto. fico neste beijo que vos deixo.
voltarei em breve. promete este teu filho que te ama, Mãe. prometo eu, longe,

José.”

foram mais ou menos estas as palavras que escrevi para a minha mãe. foram mais ou menos estas as palavras soluçadas, repletas de orgulho, que o meu pai, os vizinhos, toda a gente que consigo imaginar, devem ter ouvido da boca da minha mãe.
chego por fim a esta aldeia estranha, como que deserta. para trás ficaram a carreira e a sua marcha lenta, tornada ainda mais vagarosa pelas histórias, pelas rezas das viúvas. para trás ficou o atrelado, almofadado com palha, rebocado por um velho e pequeno tractor, conduzido por um velho, pequeno e simpático homem que me trouxe até aqui: esta aldeia, da qual nada conheço. apenas ela e nem ela conheço…



V - À Lareira

encontrei a casa dela. havia já passado, duas ruas antes, pela casa do meu amigo Damiano. senti a sua presença, senti um choro. senti um silêncio depois. a noite estava a chegar e o céu, numa tonalidade sanguínea, estava limpo. viam-se as estrelas e um astro mais brilhante: Vénus, sorrindo aos amantes.
para dar com a casa, tinha entrado na única taberna da aldeia. lá, um dos homens, já um pouco bebido, traçou-me uma rota algo confusa que me levou até ali. setenta e quatro, era o número da porta, marcado a giz num muro baixo, velho. era ali. hesitei.
tentei acalmar-me; tentei por o rosto o mais natural possível. não consegui. decidi que ia contar até vinte e nesse exacto momento faria soar a campainha. pareceu-me bem.
seis, sete, oito, nove…um rosto surgiu por detrás da cortina de uma janela isolada de todas as outras. era uma mulher. não era ela. velha demais. tentei sorrir, não sei se consegui.
o vulto desapareceu novamente, enquanto a cortina retomava a sua postura imóvel. houve um silêncio ansioso, quase eterno. durou muito pouco. o rosto, o corpo daquela mulher aproximava-se agora na minha direcção. o eco, do bater da porta, ainda no ar. à medida que se aproximava, os seus olhos fundos, duas sombras num semblante pálido, prendiam-me como correntes de aço. era magra e o cabelo, grisalho, liso, pousado sobre os ombros, ondulava agora com o vento. tinha um longo vestido de fazenda, creio, que lhe tapava quase as pernas feitas de uma pele muito branca. aproximava-se de mim: era a única certeza que eu tinha.
parou diante de mim. tremi. fitou-me sem nenhuma expressão de vida dentro dela. ouvi o meu respirar. trazia uma carta na mão esquerda. encostado, muito sereno ao muro, da parte de dentro da casa, estava um enorme estojo. ainda não nos conhecíamos.
não parecia nada surpreendida com a minha repentina aparição ao portão de sua casa, que fez abrir momentos depois. saiu, como que flutuando. passou junto a mim como que sem me ver. nesse momento percebi pelo seu rosto de quem se tratava. era a mãe d`Ela! o tempo que me demorou esta análise, foi o tempo que aquela mulher precisou para pousar na rua o enorme estojo e pousar-lhe por cima um envelope branco. passou novamente por mim e parou:

– fica sempre comigo… foi o que a minha filha me pediu para lhe dizer no dia em que aparecesse. – ainda tentei mexer-me, falar, fazer-lhe inúmeras perguntas e pedir-lhe, talvez, para entrar.
não tive tempo para nada disto. a mulher virou costas, fechou o portão, entrou em casa, fechou a porta e as cortinas não mais se moveram. silêncio outra vez. milhares de pensamentos confusos na minha cabeça. não sabia bem o que fazer. não fiz nada durante algum tempo. fiquei, ali, parado.
era já noite e a rua estava deserta. apenas eu, um enorme estojo em forma de garrafa e aquele envelope. aquela rua não tinha qualquer tipo de iluminação, à semelhança das restantes por aquelas bandas. lembrei-me que no bolso tinha uma pequena lanterna. acendi-a. peguei no envelope, com as mãos ainda tremendo. abri-o, rasgando-o um pouco. guardei-o no bolso. olhei a folha, meticulosamente dobrada em quatro. li-a depois.

“não poderia ser assim. percebo, agora, que não poderia. não consigo suportar o peso que aquela guerra me trouxe. sou eu contra mim mesma e os outros do meu lado, contra mim.
não poderia. não, não poderia viver assim.
esta aldeia é demasiado pequena. a sua presença está em todos os lados e eu, assustada, fui-me escondendo por de trás das palavras de uma voz incógnita. a tua
esta aldeia conhece-me demasiado. não suporto mais a minha presença, a minha traição. estarei em todos os lados desta aldeia, longe de todos os olhos acusatórios.
amar-te-ei, sem nunca sequer te tocar. irei para onde me levares, como este violoncelo que te deixo, estarei sempre contigo…”

faltavam ainda palavras por ler, quando o chão, abruptamente, se abriu sob os meus pés. as lágrimas sufocaram as minhas palavras e diluíram as dela, escritas em frágil papel. se tivesse a força de um deus, acabaria com o mundo que de mim a tirou.

–vim para te buscar, mas o meu braço não te alcançou…

fui inerte durante muito tempo até as minhas lágrimas secarem e o meu corpo se curvar. as minhas mãos foram agora mais cuidadosas abriram aquele estojo negro. vi-o pela primeira vez: o violoncelo. toquei-o pela primeira vez, ainda que toscamente. conhecemo-nos.

foi assim que este violoncelo, que hoje partilho com o meu filho David, me veio parar às mãos.
depois da guerra, depois da minha inglória jornada voltei a casa, para junto da minha mãe, o meu pai havia morrido dois antes da minha chegada. mas não voltei sozinho. mesmo depois de me ter casado e os meus dois filhos, a Elisa e o David, terem nascido, ela esteve sempre entre nós.
muita coisa mudou em Portugal depois da guerra. de professor passei a pedreiro. nós, soldados, fomos tratados como o lixo de um império morto. o tempo que passámos longe correu muito mais depressa para aqueles que cá ficaram.
o tempo hoje passa mais lento, nos serões que passamos à lareira comigo tocando o velho violoncelo. eu, Ela, a minha mulher e os meus filhos.

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