acolham-na:
dizia isto o bilhete que trazia preso na sua trela. encontrei-a dormindo,
abrigada sob o meu carro. olhou-me. medo. uma realidade desconhecida. só.
abandonaram-na por estar prenha, por não ter o seu ventre solitário de vida. trouxe-a
para casa, a minha casa, a sua casa agora. a minha gata: Mia.
quando
nascemos, nós pessoas, seres mais tarde razoavelmente conscientes, somos
acolhidos por várias mãos repletas de esperanças, que nos depositam, como chips
dentro do nosso corpo, padrões a que devemos obedecer. para onde quer que vamos
as esperanças dos outros vão connosco, até mesmo quando dormimos e vagueamos em
universos paralelos, pintados de cores impossíveis, onde, por vezes, os corpos
flutuam e assumem formas estranhas. sentimos o peso dos sonhos de outros, que
nunca se assumiram como reais, e, um
dia, os nossos sonhos e esperanças estarão embutidos nas nossas mãos
mais velhas que acolherão novos corpos, ainda pequenos.
o
abandono. não somos máquinas. o esquecimento. largamos tudo aquilo que não nos
serve no mundo, quando por vezes nós somos esse propósito que não serve o
mundo, essa palavra abstracta, pois cada um de nós tem uma interpretação
própria do seu significado. olho-o. imagino-o. apreendo-o. o céu de tamanho
infinito acompanhando as minhas ilações.
acolhe-me.
é o que me apetece dizer-te.
a
noite. o frio. os seus olhos a reluzirem luz pontilhada de esperança e medo.
a
noite. as pessoas dormindo, abrigadas do seu frio, não pensam no mundo cá fora.
as estrelas longínquas tapadas pelas nuvens próximas. os nossos corpos
eclipsados.
Mia,
vem para dentro! estendo os braços. pego-lhe. acolho-a. pouso-a passado uns
instantes. envolvo-a em mantas, olho-a antes de me ir deitar, e acredito que
ela percebe: afecto. a noite lá fora. o meu sono a chegar. o amanhã virá
novamente, como uma criança descalça que ainda não sabe nada e a quem tudo
podemos ensinar, como uma gata abondonada e repleta de vida no ventre.
acolhe-me.
é o que me apetece dizer-te.
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