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sábado, 10 de março de 2012

Ave, não libertes o tempo!





e nós soubemos que não seria sempre assim. nós soubemos mesmo sem querermos acreditar, mesmo sem sabermos se valia a pena termos essa consciência. mas nós soubemos. soubemos sobretudo porque, subitamente, tivemos relógios de novo, máquinas perfeitas e implacáveis; nós soubemos porque tínhamos a visão do rio, sempre a correr, defronte para nós; nós soubemos também pela tonalidade maleável do céu onde giravam gaivotas, faziam círculos perfeitos onde eu colocava os meus sonhos mais persistentes. eu sentia o meu peso apenas vagamente. ele quase podia levitar juntamente com os meus olhos, mas não neste mundo tão concreto. nós também sabíamos disso. os corpos não podem levitar, ficar suspensos no tempo, nesta suposição fundamentada que temos do mundo, este universo de fórmulas matemáticas, exactas portanto.
de repente, os olhos, cegos por vontade própria durante algum não-tempo, vislumbraram os automóveis que passavam na ponte sobre o rio, as luzes que iluminavam o mosteiro. com o espanto de quem vê um espectro, com o medo de quem enterra, para sempre, alguém querido, nós soubemos, plenamente, que o mundo não tinha escutado as palavras que tu me deste ou que eu te dei a ti; não tinha guardado os nossos gestos na sua agenda com folhas de linhas tortas. as minhas mãos quiseram negar tudo isto, trazer-te de volta, mas tu já não estavas. moras ao lado dos meus sonhos, dentro dos círculos desenhados pelo voo das gaivotas. pedi ao Ave que não libertasse o tempo, ainda era cedo. ele não ouviu. atirei uma pedra. e ele zangou-se.
não sentir o tempo nesta cidade pode ser comparado a beber um copo de água, límpida e luminosa, fresca e ágil a refrescar os corpos, as entranhas mais profundas. os cofres mais secretos que guardamos dentro da nossa existência podem sair, podem assumir várias formas diante de nós. tudo nesta cidade pode parecer eterno por alguns momentos. escrever poesia nesta cidade é algo praticamente inevitável, até para o mais opaco astrofísico.
aqui, onde me encontro, neste banco de jardim, tal como nos outros restantes bancos de madeira velha, pintados de verde e cagados pelas pombas ou pelas gaivotas, o tempo assume linhas confusas, perde a sua rectidão, a sua objectividade. aqui, todos os nossos cofres interiores podem ser abertos sem medo, quase com todo o tempo do mundo. às vezes penso que algo aqui retrocede. mas eu sei, eu sei: o tempo existe neste banco, nos restantes, em todos os bancos de jardim do mundo, em todos os mundos concretos. o tempo existe e o Ave aborreceu-se comigo.
aqui, as folhas amareladas pelo outono caem mudas; aqui, o calor do verão é esbatido na nossa pele com uma brisa fresca ribeirinha; aqui, a primavera traz o perfume das flores e do rio e do mar, misturados com o som dos motores dos barcos, pequenas embarcações carregadas de esperança, suor e rezas inventadas pelas viúvas de pescadores passados; aqui, o inverno é aquecido pelas luzes do mosteiro. agora, o inverno. quase noite. agora, o mosteiro iluminado pelas luzes de Natal.
encontrar-te nesta cidade foi algo tão simples, meu amor. só me deixaste por capricho do tempo. no fundo, eu não o culpo, pois tu tens tanto amor para dar, tantas folhas brancas à tua espera. vai! conhece todos os poetas do mundo e fala-me deles amanhã, meu amor!
chegará o dia em que findarão os nossos encontros secretos, aqui e em qualquer outro local possível deste mundo. mas, por enquanto, ainda temos tempo, meu amor. ainda temos dias e anos e décadas, ainda temos tantos lugares, mas sempre preferimos este porque ele não tinha tempo, tanto não-tempo a abundar aqui. quando eu deixar de aparecer, não penses que te abandonei. eu estarei nos círculos das gaivotas, nas folhas amareladas, na brisa fresca, no rugido dos motores dos barcos, nas luzes que se iluminam no mosteiro e que te lembram que tens de partir para outro lugar. eu estarei no tempo, pelo tempo fora: sempre aqui.
aqui, nesta cidade, haverá sempre alguém a escrever-te, a fazer-te das mais diversas formas: com versos soltos, com rimas ornamentadas e solenes, com métrica rígida como aço, com palavras de outono e verão e primavera e inverno, com palavras de tempos misturados onde tu existes gigante, carregada de esperança como as embarcações de que te falei, meu amor.
Poesia, haverá sempre alguém a encontrar-te aqui, em Vila do Conde, junto ao Ave, esse senhor do tempo. Poesia, meu amor, fala com ele! diz-lhe que não o quis magoar, apenas não quis ver passar o tempo.

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