Imagem: André Correia
a
caneta com que estou a escrever este texto pode assumir várias cores. (quer
dizer, isto ainda pode ser um poema, ainda pode ser uma tese com argumentos de
colarinhos brancos e gravata aprumada, ainda pode ser um rascunho errante,
sujeito ao tempo e ao pó, ainda pode ser tanta coisa. ainda não é nada.)
cala-te! concordámos que escreveríamos apenas sobre esta caneta. (e se as
pessoas não quiserem ler um texto, um poema, uma tese, o que quer que seja que
fale somente sobre uma caneta?) isso nunca poderemos saber. de resto, sempre
dissemos que nunca sentiríamos esse medo. (mas ele existe…) pois existe, tal como
esta caneta. confia em mim, ela existe.
vamos começar de novo. a caneta com
que estou a escrever este texto pode assumir várias cores. eu próprio posso
assumir várias cores, posso misturá-las no meu interior e explodir, um
arco-íris a pintar os céus, a fundir-se com a nossa fantasia, a explodir novamente
e a criar uma criança ingénua. brinca, risca, não tenhas medo. esta caneta e eu
e tu, nós com uma caneta, podemos explodir, sim, podemos explodir, mas nós não
gostamos de nos fazer notar. brinca, risca, usa as cores que quiseres.
habitualmente, escrevemos sempre a
tinta preta. assume-se que essa é uma cor sóbria, uma cor discreta, a cor da
racionalidade, uma não-cor. não diz, portanto, muito acerca de nós, acerca
daquilo que pretendemos dizer. guardamos segredos dentro da cor preta, sorrimos,
porque só nós sabemos. o preto é a cor que nos acompanha, em tudo, em todo o
lado. não, não nos consideramos um individuo soturno, apenas gostamos de preto,
tal como gostamos de branco, mas não poderíamos escrever a branco. excepto nos
quadros de lousa da sala da escola primária, longínqua, e da nossa memória, tão
próxima. no fundo, gostamos de contrastes. gostamos de luz e sombra. sim, podes
brincar, podes riscar. já te disse que não utilizamos essas cores todas desta
caneta. sim, a tua mãe deixa. não há problema!
lembras-te? quando fomos aquela
criança, de cabelo aos caracóis, que sonhava ser astronauta, usámos todas as
cores que esta caneta possui. estas e mais algumas que inventámos. não tínhamos
limites, não tínhamos noção do tempo e, no entanto, tínhamos tanto tempo, não
tínhamos razões, não tínhamos mentiras, não tínhamos o peso da virtude e, no
entanto, éramos tão melhores, éramos tão mais. nesses dias, a anos-luz deste
momento, não usávamos muito o preto. era feio, não tinha piada, não tinha cor.
sim, podes brincar, podes riscar. arranca outra folha, não uses esta. sim,
podes arrancar quantas quiseres!
esta caneta já tem mais de um ano. encontrámo-la,
estava perdida numa sala de aula. pegámos nela, fizemos uns rabiscos. experimentámos
as várias cores, mas sabíamos exactamente aquela que usaríamos mais
frequentemente, principalmente em textos, em coisas deste género. actualmente,
só nos conseguimos afeiçoar a esta cor. sempre fizemos um esforço para sermos
monogâmicos, porque o peso da virtude, porque o peso da virtude.
no fundo, não é que não gostemos das
outras cores, mas não as conhecemos tão bem, já as esquecemos há tanto tempo,
anos-luz de distância numa viagem ultrassónica. não que sejamos conservadores,
respeitamos a diferença, respeitamos a pluralidade, mas somos convictos, somos quase
irredutíveis da nossa forma de ser. não, não tem mal nenhum em gostares de
todas essas cores, André. és uma criança, o teu nome ainda não tem um
significado maior do que os teus olhos, do que os teus sonhos. sim, André,
podes experimentar essas cores todas, podes riscar essas folhas tantas, só não
perguntes que horas são. finge que nunca te respondemos a essa pergunta.
reinventa essa criança, traz-nos a culpa de te termos deixado para trás.
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