o
mundo é um lugar de monstros interiores aos corpos, residentes nas carcaças de
pensamentos velhos; o Homem é um lugar de gigantes adormecidos, de vozes roucas
e gastas, ásperas como o sol do outono, secas e moribundas como as folhas de
outubro. para além do céu e da terra, das pedras e dos sonhos, dos homens, dos
deuses e de mim, existem essas criaturas moldadas nos pântanos do tempo e das
facas açuladas. para lá de todos os lugares conhecidos e imaginados, existe o
desconhecido: as nuvens negras libertam uma chuva de sangue que se precipita
nas searas e se entranha no trigo, no pão que comem todos os homens; para lá,
acima dessas nuvens baixas está o cume desta montanha ladeada por florestas de
pinheiros muito altos e sóbrios, que conhecem tanto, que assistiram a tanto. é
no cume dessa montanha, na caverna solitária, esquecida por todos em quase
todos os momentos, que eu estou. e eles, esses que perdidos procuram um rumo,
um alívio fácil, um último prazer de viver, estão quase a chegar, diz-me a
aragem vespertina que já passou pela floresta e entra na caverna. o sol fica lá
fora, anulado. o sol nada importa no sanatório de monstros. cá dentro, o cheiro
a enxofre.
vêm
uns tantos liderados por um apenas. é um rapaz novo, nunca ninguém da sua idade
aqui me veio procurar. é o desespero, é peso excessivo que a sua mente carrega
que o faz caminhar e sonhar com um regresso a casa, esse lugar impossível.
dentro dele, olhando para todos os lados, assustados, vêm vários. esses nunca
tiveram casa. tiveram um pai que nunca os soube criar, que sempre os abandonou
no seu pensamento depois dos pequenos darem o seu primeiro grito e que, agora,
já só anseia por esquecê-los e rumar a casa sozinho.
André
tinha catorze anos e não estava preparado para ser pai pela primeira vez.
quando o seu primogénito lhe surgiu na mente e, depois, no papel, ele sentiu um
enorme êxtase, um orgasmo mental e espontâneo. a primeira das criaturas que
habitam agora a sua mente era uma criança ingénua, que corria junto ao rio,
junto aos jardins camarários, segurando um papagaio de papel colorido que se
elevava bem alto, como se quisesse ferir, talvez matar as nuvens que nem André
nem o pequeno ainda conheciam. ao longo do tempo, o papagaio foi perdendo a
cor, a corda foi sendo moída pelos dias, pelas semanas, pelos anos. e o
papagaio perdeu-se, voou para longe, para lá das nuvens, para lá do mundo dos
homens e deste. por essa altura, a criança já não sabia do seu pai. chamava,
chorava, mas ele fingia não ouvir. agora, chama, chora, e ele diz-lhe que estão
quase a chegar. eu sei que estão.
outro
dos que segue este caminho, irmão dessa criança perpétua, é um homem que tentou
inverter os pólos do seu mundo, seguir o sonho, esquecer a grasnido mortal dos
corvos, mas falhou. caiu, partiu-se todo, perdeu a vista esquerda, a mais
propícia a fantasias, e perfurou o seu coração. o pai encontrou uma pedra
bonita e colocou-a no seu peito. quase se esqueceu da sua demanda, mas nunca
morreu. por vezes ainda fala e pensa fazer tudo outra vez. vamos fazer tudo
outra vez, pai?, mas não recebe resposta. não corre sangue dentro das veias
deste homem, corre um passado que não o foi deixando morrer.
com
eles segue também o que já nada quer, para além de uma garrafa de vinho e o
calor de uma lareira onde ordem cartas e promessas; aquele que não deu pelo dia
em que Julieta morreu, que caminhou pelas ruas contemplando a ruína do mundo
dos homens e que parou para jogar ao pião com uma criança. eles não sabiam que
eram irmãos. essa criança odiava o céu e o vento que lhe tinham roubado o
brinquedo e a sua única distracção era o pião que fazia girar, que via abrandar
e morrer sobre a terra. sem metafísica, sem nada.
a
pesar também a André vem um velho violoncelo que já ninguém quer. ele tem
pessoas dentro dele. sim, um violoncelo velho que guarda pessoas dentro dele
metido dentro do corpo, real, de uma outra pessoa. talvez eu o aprenda a tocar!
se no céu há melodias de harpas, aqui haverá melhor! a pesar também a André vem
uma rua inteira, abandonada, esquecida: a rua dos fracassos.
eles
caminham dentro do corpo jovem e da mente envelhecida deste rapaz. os passos
são cautelosos sobre o manto de folhas secas e pinhas mortas da floresta. bem
perto vislumbram já a montanha, alta. eu não os vejo, mas sei que estão a
chegar. estou aqui, no lugar onde o sol fica à porta, a saber o meu nome mas
sem chamar por mim.
com
eles vem também o homem que fala com deus, criatura caprichosa, e que nutre por
ele um desinteresse educado. fala com ele como fala com os revisores do
comboio, bom dia, boa tarde, e mais nada. tem dentro de si todas as dúvidas e
todos os silêncios. se alguém o pudesse ver, não diria que era mais um filho,
mas sim um irmão gémeo, ligeiramente mais altivo, do seu pai. quando jovem
sonhou ser um discípulo de Zaratustra, arrepiar caminho para a chegada do
Super-Homem e atravessar, como um equilibrista, a corda suspensa bem alto, como
um artista de um circo novo e onírico - «o homem é a queda e a travessia». ah!,
como nos iremos dar tão bem!
além
destes vêm também o ciclista e o psicólogo inglês, num pé de guerra constante
desde que André se fez ao caminho. o ciclista é um louco, di-lo com orgulho
perante a cólera do psicólogo inglês ao ouvir alguém adjectivar-se de tal
forma. farto de os ouvir vinha também o limítrofe, criatura fraca e facilmente
manipulável
o
sol estava exactamente por cima da montanha, meio-dia solar, quando eles
chegaram. André estava nitidamente agastado, mas trazia uma esperança reluzente
no olhar que exibiu quando falou comigo. não usou palavras desnecessárias,
disse-me tome conta deles, por favor. silêncio. já não aguento mais, tome conta
deles, por favor. silêncio. peça-me o que quiser, mas tome conta deles!
silêncio. o sol parado, a assistir a tudo. o tempo parado à espera de uma
resposta minha. a aragem a entrar na caverna a tentar saber das novidades para
levá-las à floresta. de que me serve a tua alma?, perguntei-lhe apenas.
era quase uma da
tarde, tinha acordado deste sonho e estava em frente ao espelho, a olhar-me
muito, pronto para lavar o rosto, refrescá-lo, e acalmar a ressaca. lavei os
dentes e, em seguida procurei uma pastilha para as dores de cabeça. não havia.
foi nesse momento que, farto disto tudo, lhes dei duas folhas de papel branco e
lhes disponibilizei a minha mão para que pudessem escrever. momentos depois
eles começaram a escrever este texto. foram falando de mim e por mim, como o
estão a fazer agora. como se me conhecessem, como se pudessem calcular os meus pensamentos,
puseram-me a caminhar por uma floresta rumo a uma montanha alta e escondida, ao
encontro do demónio.
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