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domingo, 8 de setembro de 2013

Cegueira Espraiada


Era um belo dia solarengo para todos aqueles que o podiam ver. Para todos os outros era apenas mais um dia. Negro. A cor do silêncio que berra dentro de cada homem vivo. Nas ruas, a azáfama crescente de uma cidade a despertar. Os automóveis a criarem fluxos monótonos; os semáforos a variarem previsivelmente de cor; os prédios devolutos a tentarem esconder a sua vergonha das fotografias dos turistas; o porteiro a abrir o portão do mercado das flores, enquanto que, num outro ponto da cidade, alguém deixa uma orquídea e uma prece pousada no mármore frio, que cobre um corpo já sem essência; as pessoas a saírem apressadamente pelas portas do metro numa massa compacta, que depois se dilui pelas várias artérias da cidade. Aí, tornam-se pessoas. Desconhecidas. Seres individuais. Tomam rumos diferentes e não se olham. Por vezes, dão o «bom dia» a alguém conhecido. Hmmm! Alguém conhecido!...
            Justo é mais uma dessas pessoas que caminha por ruas que já conhece. Nunca as viu, mas os seus passos são autómatos. Prossegue. A brisa toca-lhe a pele espessa e marcada do rosto. O seu nariz pontiagudo segura o peso dos óculos, que não têm qualquer efeito óptico, apenas escondem os seus olhos de um mundo que não consegue enxergar. Nasceu assim. Tudo aquilo que conhece não tem aspecto. Apesar disso, gosta de ir sentado junto ao vidro durante as viagens de metro, eléctrico ou autocarro. Durante essas viagens mete sempre conversa com alguém que, ao seu lado, de pé, lhe cede o lugar. Quando se despede dessas pessoas, em jeito de brincadeira, costuma dizer:
            - Nunca mais nos voltaremos a ver!...
            Naquele dia, caminhava em direcção à praia. Sempre que está bom tempo, gosta de ir pescar. Esse era um desses dias em que tinha acordado cedo, se tinha vestido sozinho, fumado um cigarro e lavado os dentes diante de um espelho, colocado inutilmente na casa de banho. Havia sido o próprio Justo quem o comprou e lá o colocou. Porquê? Ora essa!... Isso não sei! Por que raio haveria eu de saber? Sou somente o narrador, mais nada! Acerca do pensamento das personagens nada sei, apenas as vejo deambular nas minhas cidades interiores.
            A maresia invadia-lhe já todos os quatro sentidos apurados que possuía, atenuando dessa forma o cansaço daquela caminhada, aumentado pelo peso de todo o material pescatório que transportava consigo. A cana, a linha, o carreto, o balde e os iscos previamente preparados em casa. Tudo isso se juntava ao peso do seu corpo e tornava os seus passos mais vagarosos. No entanto, o seu ritmo era certo e paciente, sempre marcado pelo toc-toc-toc da bengala, até ao momento em que lhe pareceu ter escutado a voz da sua velha amiga Ana Lepse.
            Haviam-se conhecido casualmente há uns anos, desde que Justo começou a ir pescar todos os dias. Sempre que está bom tempo. Ana vende refrigerantes, pipocas e bolas de berlim pela praia. Ou, melhor, Ana apregoa esses produtos ao longo do areal, porque vender, na verdade, pouco consegue. Sempre que se encontram, Ana pára um pouco para conversar. Logo no primeiro dia em que se conheceram, dez minutos foram largos para narrar a Justo todos os principais episódios da sua vida. O marido havia sucumbido de cancro no fígado, o filho morava na capital e poucas vezes a vinha visitar, às terças e sextas fazia limpezas na casa de uma família outrora abastada, tinha sido emigrante em França e raramente conseguia dormir uma noite completa, muito por causa da vizinha brasileira, que morava no andar de cima e todos os dias recebia senhores na sua casa – «É um pandemónio!» Ana falava, falava, falava e quando a conversa parecia estar a diluir-se na foz do silêncio, ela recomeçava e repetia, repetia, repetia tudo outra vez, outra vez, outra vez. Apesar disso, Justo achava-lhe graça. Ria-se sempre dos mesmos pormenores e construía um ar grave na sua face ao ouvir os mesmos infortúnios que lhe eram narrados. A conversa termina, sempre abruptamente, quando Ana olha para o relógio. Nesse momento, ambos concluem à boa maneira portuguesa: «É a vida!»
            Porém, naquele dia, não era ela. O hábito leva a que os sentidos se acomodem e até mesmo um cego cede, por vezes, a esse erro. Justo sentou-se então no paredão. Descalçou os sapatos, tirou as meias e arregaçou as calças até aos joelhos. Fumou um último cigarro. Enquanto isso, o mar emitia um rugido entorpecido, talvez cansado de banhar aquelas areias. Enquanto isso, definhava-se esporadicamente a intensidade com que o sol incidia nos seres e nas coisas, tapado por uma ou outra nuvem, também ele cansado de aquecer um povo que espera a salvação num dia de nevoeiro.
            O tempo mostrava-se indiferente e obrigava o sol a mover-se no firmamento. As ondas do mar remexiam as pequenas pedras indolentes e traziam e levavam pequenas algas. Junto à água brincavam algumas crianças e, por vezes, uma gaivota grasnava. Justo estava há, mais ou menos, meia hora, sentado, segurando a cana, a pescar. A paciência é uma virtude, assim dizem os homens conformados e, esses sim, cegos. Os homens que não têm a ânsia da novidade petrificam e tornam-se nas pequenas pedras que o mar revolve. Justo está mais próximo do mar do que da terra, e esta não é uma simples indicação cénica, pois o mar é a manifestação suprema da natureza. Para ele a terra e os assuntos irrisórios da humanidade já não o envolvem, inquietam e subordinam. A humanidade, como um rio, flui sem vontade, agarra-se à ética e à estética, aspirando ao sublime.
            Dias há em que os dias são agulhas. Este dia era um como tantos outros para Justo. De cada vez que pescava mais um peixe, o mesmo ciclo repetia-se. Segurava o pescado, ainda vivo, com uma mão e com a outra, que segurava o anzol, extraía-lhes das órbitas os olhos. A vida contorce-se dentro daqueles corpos escamosos, até ao momento em que Justo coloca os peixes no balde com água fresca, tingida de sangue. Mais tarde, quando decide regressar a casa, devolve-os ao mar. Se sobrevivem ou sucumbem? Não se sabe! Justo não pode ver e eu virei a cara naquele momento. Porquê esta rotina? Já disse que não posso saber isso, apenas narro aquilo a que assisto na minha mente. Tudo o resto são especulações e juízos de valor, e cabe ao leitor, não a mim, catalogar moralmente cada uma das personagens.
            Não o julgo ou aprovo. Sigo. Volto também para casa, para o esquecimento. Como todos nós. Porque somos como peixes; porque dias há em que os dias são noites. A este conto falta-lhe um pouco de luz, um pouco de sentido e um saber doce a pipocas ou a bolas de berlim. Também disso me ilibo! Não é culpa minha que, estranhamente, Ana Lepse tenha faltado naquele dia ao trabalho.
            Entrei em casa. Fumei incompletamente um cigarro e deixei-o a morrer no cinzeiro, tal como faço com a maioria das personagens que no meu pensamento circulam. Pego nelas, dou-lhes voz e depois deixo que o tempo e o esquecimento as envolvam em escuridão. Cego-as. Mas ao contrário de Justo, o meu processo de tortura e indiferença é mais arrastado. Serei, também eu, uma personagem avistada por um narrador sádico?






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