Era um belo dia solarengo para
todos aqueles que o podiam ver. Para todos os outros era apenas mais um dia.
Negro. A cor do silêncio que berra dentro de cada homem vivo. Nas ruas, a
azáfama crescente de uma cidade a despertar. Os automóveis a criarem fluxos
monótonos; os semáforos a variarem previsivelmente de cor; os prédios devolutos
a tentarem esconder a sua vergonha das fotografias dos turistas; o porteiro a
abrir o portão do mercado das flores, enquanto que, num outro ponto da cidade,
alguém deixa uma orquídea e uma prece pousada no mármore frio, que cobre um
corpo já sem essência; as pessoas a saírem apressadamente pelas portas do metro
numa massa compacta, que depois se dilui pelas várias artérias da cidade. Aí,
tornam-se pessoas. Desconhecidas. Seres individuais. Tomam rumos diferentes e
não se olham. Por vezes, dão o «bom dia» a alguém conhecido. Hmmm! Alguém
conhecido!...
Justo é mais uma dessas pessoas que
caminha por ruas que já conhece. Nunca as viu, mas os seus passos são
autómatos. Prossegue. A brisa toca-lhe a pele espessa e marcada do rosto. O seu
nariz pontiagudo segura o peso dos óculos, que não têm qualquer efeito óptico,
apenas escondem os seus olhos de um mundo que não consegue enxergar. Nasceu
assim. Tudo aquilo que conhece não tem aspecto. Apesar disso, gosta de ir
sentado junto ao vidro durante as viagens de metro, eléctrico ou autocarro.
Durante essas viagens mete sempre conversa com alguém que, ao seu lado, de pé,
lhe cede o lugar. Quando se despede dessas pessoas, em jeito de brincadeira,
costuma dizer:
- Nunca mais nos voltaremos a
ver!...
Naquele dia, caminhava em direcção à
praia. Sempre que está bom tempo, gosta de ir pescar. Esse era um desses dias
em que tinha acordado cedo, se tinha vestido sozinho, fumado um cigarro e
lavado os dentes diante de um espelho, colocado inutilmente na casa de banho. Havia
sido o próprio Justo quem o comprou e lá o colocou. Porquê? Ora essa!... Isso
não sei! Por que raio haveria eu de saber? Sou somente o narrador, mais nada!
Acerca do pensamento das personagens nada sei, apenas as vejo deambular nas
minhas cidades interiores.
A maresia invadia-lhe já todos os
quatro sentidos apurados que possuía, atenuando dessa forma o cansaço daquela
caminhada, aumentado pelo peso de todo o material pescatório que transportava
consigo. A cana, a linha, o carreto, o balde e os iscos previamente preparados
em casa. Tudo isso se juntava ao peso do seu corpo e tornava os seus passos
mais vagarosos. No entanto, o seu ritmo era certo e paciente, sempre marcado
pelo toc-toc-toc da bengala, até ao
momento em que lhe pareceu ter escutado a voz da sua velha amiga Ana Lepse.
Haviam-se conhecido casualmente há
uns anos, desde que Justo começou a ir pescar todos os dias. Sempre que
está bom tempo. Ana vende refrigerantes, pipocas e bolas de berlim pela praia.
Ou, melhor, Ana apregoa esses produtos ao longo do areal, porque vender, na
verdade, pouco consegue. Sempre que se encontram, Ana pára um pouco para
conversar. Logo no primeiro dia em que se conheceram, dez minutos foram largos
para narrar a Justo todos os principais episódios da sua vida. O marido havia
sucumbido de cancro no fígado, o filho morava na capital e poucas vezes a vinha
visitar, às terças e sextas fazia limpezas na casa de uma família outrora
abastada, tinha sido emigrante em França e raramente conseguia dormir uma noite
completa, muito por causa da vizinha brasileira, que morava no andar de cima e
todos os dias recebia senhores na sua casa – «É um pandemónio!» Ana falava,
falava, falava e quando a conversa parecia estar a diluir-se na foz do
silêncio, ela recomeçava e repetia, repetia, repetia tudo outra vez, outra vez,
outra vez. Apesar disso, Justo achava-lhe graça. Ria-se sempre dos mesmos
pormenores e construía um ar grave na sua face ao ouvir os mesmos infortúnios
que lhe eram narrados. A conversa termina, sempre abruptamente, quando Ana olha
para o relógio. Nesse momento, ambos concluem à boa maneira portuguesa: «É a
vida!»
Porém, naquele dia, não era ela. O
hábito leva a que os sentidos se acomodem e até mesmo um cego cede, por vezes,
a esse erro. Justo sentou-se então no paredão. Descalçou os sapatos, tirou as
meias e arregaçou as calças até aos joelhos. Fumou um último cigarro. Enquanto
isso, o mar emitia um rugido entorpecido, talvez cansado de banhar aquelas
areias. Enquanto isso, definhava-se esporadicamente a intensidade com que o sol
incidia nos seres e nas coisas, tapado por uma ou outra nuvem, também ele
cansado de aquecer um povo que espera a salvação num dia de nevoeiro.
O tempo mostrava-se indiferente e
obrigava o sol a mover-se no firmamento. As ondas do mar remexiam as pequenas
pedras indolentes e traziam e levavam pequenas algas. Junto à água brincavam
algumas crianças e, por vezes, uma gaivota grasnava. Justo estava há, mais ou
menos, meia hora, sentado, segurando a cana, a pescar. A paciência é uma
virtude, assim dizem os homens conformados e, esses sim, cegos. Os homens que
não têm a ânsia da novidade petrificam e tornam-se nas pequenas pedras que o mar
revolve. Justo está mais próximo do mar do que da terra, e esta não é uma
simples indicação cénica, pois o mar é a manifestação suprema da natureza. Para
ele a terra e os assuntos irrisórios da humanidade já não o envolvem, inquietam
e subordinam. A humanidade, como um rio, flui sem vontade, agarra-se à ética e
à estética, aspirando ao sublime.
Dias há em que os dias são agulhas.
Este dia era um como tantos outros para Justo. De cada vez que pescava mais
um peixe, o mesmo ciclo repetia-se. Segurava o pescado, ainda vivo, com uma mão
e com a outra, que segurava o anzol, extraía-lhes das órbitas os olhos. A vida contorce-se dentro daqueles corpos escamosos, até ao momento em que Justo coloca os peixes no balde com água fresca, tingida de sangue.
Mais tarde, quando decide regressar a casa, devolve-os ao mar. Se sobrevivem ou sucumbem? Não se sabe! Justo não pode ver e eu virei a cara naquele momento. Porquê esta
rotina? Já disse que não posso saber isso, apenas narro aquilo a que assisto na
minha mente. Tudo o resto são especulações e juízos de valor, e cabe ao leitor,
não a mim, catalogar moralmente cada uma das personagens.
Não o julgo ou aprovo. Sigo. Volto
também para casa, para o esquecimento. Como todos nós. Porque somos como
peixes; porque dias há em que os dias são noites. A este conto falta-lhe um
pouco de luz, um pouco de sentido e um saber doce a pipocas ou a bolas de
berlim. Também disso me ilibo! Não é culpa minha que, estranhamente, Ana Lepse
tenha faltado naquele dia ao trabalho.
Entrei em casa. Fumei
incompletamente um cigarro e deixei-o a morrer no cinzeiro, tal como faço com a
maioria das personagens que no meu pensamento circulam. Pego nelas, dou-lhes
voz e depois deixo que o tempo e o esquecimento as envolvam em escuridão. Cego-as. Mas ao
contrário de Justo, o meu processo de tortura e indiferença é mais
arrastado. Serei, também eu, uma personagem avistada por um narrador sádico?
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