Quando nascemos, atribuem-nos um nome.
Antes ainda de nos fitarem os olhos, esse rótulo que transportaremos para o
resto das nossas vidas está já escolhido e pronto a ser colado. Pega lá! É teu,
ainda que não diga nada a teu respeito. Os nomes podem assim assemelhar-se a
credenciais ou atestados inócuos, que nada podem acrescentar ao nosso
significado.
Ainda
assim, quando perdemos um nome, não é apenas essa palavra que parte, porque os
nomes são matrioskas de significância. Os nomes têm outras palavras, que ao
longo do tempo, vão sendo cosidas por dentro, por outras mãos. O tempo é uma
sala onde várias agulhas vão costurando subtilmente outras palavras no tecido
interior dos nomes. Substantivos, outro nome para os nomes. Essas palavras que
vão sendo acrescentadas, como adornos, podem ser outros nomes, mas também podem
ser – e são, sobretudo – verbos e adjectivos.
Quando
um nome se desvanece, esfumam-se com ele muitas outras palavras de classes
gramaticais diversas. Quando um nome se vai apagando gradualmente, convertendo-se
amargamente em nada, isso é apenas o indício de que várias das palavras que
nele habitavam já secaram o seu significado. Quando um nome morre, os nomes que
nos sobram ficam também mais pobres, pois as palavras dentro deles estremecem.
Isso acontece porque, por vezes, palavras gémeas medram no solo de diferentes
nomes e, quando um gémeo morre, o que persiste vivo morre também aos olhos da
sua mãe. Sempre que dizemos adeus a um nome, perdemos vocabulário. Ficamos mais
pobres. Passamos a procurar e a mendigar em toda a parte, não um nome
semelhante, mas uma equivalente combinação de verbos e adjectivos que eram o
seu real significado. Nunca encontraremos e o tempo vai-nos vencendo. Desistimos
de procurar essas palavras. Ficamos um pouco mais surdos e mudos, mas ainda
assim continuamos. Perder nomes é, então, derradeiramente, assustadoramente,
perder sentidos. Agora que reparo, perder nomes é também perder certos
advérbios de modo.
Quando
numa sala de hospital, com as lágrimas a marearem os nossos olhos, não somos
capazes de evitar a perda de alguém que amamos, são muitas as palavras que nos
vão escorrendo pelo rosto e que não chegam a tocar o chão porque ebuliram no
entretanto. O som das máquinas. Bip. Bip. Bip.
Silêncio depois. Ruína depois. Roleta russa em que ao perderes uma ficha te
retiram, na verdade, bem mais do que isso. Quando no cais de embarque te
despedes de alguém, são várias as palavras de que o teu lenço branco se desfaz.
Motores a todo o vapor! E em vapor se transformam as palavras que perdeste,
deixando secas as engrenagens da tua máquina. Quando alguém te pede para
esqueceres o seu nome, que o risques – introduz aqui esse nome, este espaço
é teu –, o processo é bem mais complexo do que simplesmente deixares de
pronunciá-lo. Nesse momento, enfrentas todas as tuas memórias que gritam esse
nome que pede para ser esquecido, olhas em teu redor, e amontoas uma série de
experiências que alguém te obriga a despejar pela janela. Depois de o fazeres,
não consegues evitar debruçar-te sobre o parapeito e observar na rua todas as
palavras dispersas que, com relutância, nunca voltarás a segurar. E ficas a
observar. A observar ao longo do tempo, por tempo indefinido, até que os olhos
se cansem, até que a chuva chegue e dilua essas palavras ou até que um mendigo
ou um ladrão tome para si todos esses significados. Não são mais teus!
Estremeces nesse instante e esperas pelo amanhã que te traga novas palavras com
as quais possas fazer as mais belas canções. Mas não te esqueças: quando perdes
um nome ficas um passo mais perto do abismo que dá para o vazio. Ficas mais
perto do silêncio, esse buraco negro de melodias.
Um
dia também o meu nome se perderá. Quando esse tempo chegar, que palavras deixarás
de dizer? Que verbos e que adjectivos serão esbatidos? Gostava que a chuva
nunca diluísse essas palavras com que me pintas, mas o tempo é quem dita e nem
sempre com as palavras de que mais gostas. Talvez as tenhas conhecido um dia e,
entretanto, elas tenham adormecido na tua mente, sem provocar qualquer ruído.
Já não notas a sua presença e por isso morreram para ti. Ninguém tas poderá
ensinar outra vez.
Nascemos
donos de todas as palavras, mas a erosão dos dias vai tornando, de forma
gradual e natural, a vida num dicionário de silêncios, onde não existe qualquer
ordem racional que auxilie a tua procura. Aprender os silêncios resignadamente.
Nada, por vezes, significa tudo. Tudo o que te falta, tudo o que perdeste e que
não pudeste preservar. As mãos cada vez mais fracas, mas o pulso ainda. O
coração a bater. A tua máquina ainda permanece ligada, apesar da morte dos
nomes. Bip. Bip. Bip.
Escrever
também é perder palavras. No final deste texto, tomarás estas palavras para ti
e a elas associarás outros nomes que não aqueles que eu imaginei. Toma, fica
com elas! Ainda estão vivas. Lembra-te de nomes bonitos quando as leres; nomes
que te façam sorrir ou chorar por bem. Recorta algumas destas frases e cose-as
no interior dos nomes mais profundos e essenciais que ainda trazes contigo. Tal
como os nomes, todas as restantes palavras não são afinal invólucros vazios.
São rebuçados, que desembrulhas com dedos hábeis e esperas que nunca se
derretam na língua.
Toma
o paladar de cada nome que agora é teu e ao Pai não peças mais doces. Pede
apenas que não tos tire, ainda que…
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