A
culpa foi minha.
Quando,
pela primeira vez, eu vi o David entrar no meu consultório, estava longe de
conseguir imaginar tudo aquilo que agora se mostra real. Estava longe de
conseguir saber que este violoncelo me haveria, tragicamente, de vir parar às
mãos.
Não
passou muito tempo até eu perceber que aquele não era apenas mais um caso. O David
parecia não estar na mesma sala do que eu. Era como se eu não estivesse ali, e
ele também não, enquanto os seus relatos nos levavam por diferentes cenários:
ruas, matos, casas, guerras – interiores e exteriores a si -, palcos maravilhosos
onde várias palmas se ouviam.
Mas
existia algo que era constante a todos esses lugares. Um violoncelo. Um
violoncelo que viajou vários quilómetros, percorreu várias casas e sentiu,
através do seu arco, várias mãos. Mãos suaves e delicadas, mãos de amantes e
depois rudes, mãos pequenas e mais tarde criminosas.
Aquele,
para mim, imaginário violoncelo foi imortal até todos abandonarem a casa: A
Casa do Violoncelo. Resistiu a todas as mortes que o pouparam, foi ele, mesmo
quando sozinho, mesmo quando esquecido.
O
David foi provavelmente o seu último amigo. Choraram juntos muitas vezes,
sorriram muitas vezes, existiram os dois, falsamente acompanhados, durante
muito tempo, durante tempo demais para o sofrimento do David. Por isso partiu.
Por
julgar estar sozinho, quase morto, abandonou o mundo que, verdade seja dita,
nunca esteve a seu lado. Mas eles sempre estiveram. Existiam pessoas dentro
daquele violoncelo agarradas às cordas velhas: existem em almas traduzidas nas
melodias. Alma: vocábulo estranho para um psicólogo, porém o caso do David
ensinou-me a usá-lo.
Naquele
instrumento viviam pessoas novas e velhas. Lá morava alguém muito antigo,
alguém que aquela família nunca conheceu. Chama-se Maria e, agora, talvez ande
de mão dada com o pai do David. Juntos talvez olhem o silêncio, longe, muito
longe. Lá moram a Francisca e o João, que morreram num trágico acidente. Nessa
altura, eles e o David eram felizes, riam muito. Desse acidente apenas um
sobreviveu. O pai, o marido, o filho, o irmão: o David. Porém, também ele, ao
seu jeito, morreu. O mundo morreu-lhe nesse dia, da mesma forma que anos antes
ele próprio havia morto o seu pai, aquando daquela terrível visão, aquando
daquela terrível descoberta. Ainda adolescente, o David descobriu que o pai,
aquele homem que durante tanto tempo viu com admiração, afinal tinha sido o
responsável pelo sorriso roubado, para sempre, à sua irmã. A Elisa fora,
durante muito tempo, violada pelo pai. sofreu em silêncio e o silêncio tem
sido, ao longo da sua vida, o seu melhor confidente. Ele sabe tudo. Tal como
este violoncelo, ele sabe tudo…
As
semelhanças com uma pessoa que nunca conheceu foram a sua condenação ao
martírio. O sorriso não existia na sua face, não podia executá-lo. Não podia.
Por isso, no dia em que, em sua casa, perante os seus olhos, viu o seu irmão
disparar a arma que, há muitos anos, tinha, pela mão do seu pai, abatido
javalis lá para o Alentejo, a Elisa não teve lágrimas para chorar a morte do
seu pai. Dois tiros, dilacerantes para a pele, entorpecedores para a Elisa,
chagas futuras para o seu irmão. Memórias desse dia que perduraram pelos anos, dilacerantes
para todo o ser. Até no sentido mais metafísico do ser.
No
dia daquele trágico acidente de automóvel, somente o David sobreviveu, vendo
assim partir a sua mulher, a Francisca, e o seu filho, o seu João. De certa
forma, o David também morreu naquele dia, ou melhor, na sua razão, apenas ele
próprio tinha morrido. Durante todas as sessões de terapia que teve comigo,
referiu-se sempre a si mesmo como sendo um objecto cheio de vácuo, repleto de
morte. Todavia, era capaz de imaginar a continuação da vida daqueles que viu
partir, exceptuando o seu pai. Todos os anos, no dia de aniversário do seu
filho João, ele comprava um bolo, acreditando na felicidade do seu filho. Via-o
crescer. A Francisca continuava resistente ao tempo, as suas formas eram as
mesmas, a sua magia era maior. As noites de amor de outrora eram poemas agora,
com um som subtil de liras. As promessas de uma velhice conjunta eram agora
láminas. Explodiam supernovas nos olhos do David sempre que falava deles, tal
como quando falava da sua mãe, tal como quando falava da sua irmã.
O David iniciou a terapia por
insistência da mãe. Custava-lhe ver o filho morrer daquela forma, ainda que
metaforicamente. Aquela mulher que anos antes tinha assumido a culpa de um
crime que não era seu, pelo menos não totalmente. A história que vigorou pelos
anos foi que se havia tratado de um crime passional, de um acto em legítima
defesa. O que não é de todo mentira, sabemos disso. podemos interpretar aquele
dia, aquela morte, de diferentes ângulos, mas somos obrigados, em parte, a
perceber os motivos que levaram àquele final trágico.
Aquela mulher, que durante tanto
tempo se viu anulada, confundida com uma pessoa morta e que ela nunca conheceu.
Aquela mãe, que criou, educou e sonhou o melhor para os seus filhos, fez sempre
o que esteve ao seu alcance para os proteger. Nos dias de hoje, apenas lhe
sobra a sua filha Elisa, que perdeu o seu gosto pela vida há muito tempo atrás.
O David não aguentou todo o peso das suas memórias e, numa noite, depois de ter
saído da consulta, de ter regressado àquela casa, com a mesma arma com que
tinha morto o seu pai, encostou os canos ao interior da sua boca e anulou o
mundo e o tempo.
Quero acreditar que, em algum lugar
que eu não concebo, o David, a Francisca e o João recuperarão aquilo que lhes
foi roubado. Quero acreditar que a Elisa ainda terá tempo para redescobrir a
vida. Quero acreditar que aquela mãe voltará a ser uma mulher no sentido
gigante da palavra. Quero acreditar que o violoncelo que o David trouxe para me
mostrar e aqui deixou, neste consultório, naquela última consulta, nada teve de
culpado em toda esta história.
Tenho de levá-lo a casa! Toda uma
rua o conhece. Ninguém o espera, é certo. Apenas o silêncio perpétuo.
Eles sabiam demasiado…
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