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domingo, 31 de agosto de 2014

Herberto














se um dia esta terra fosse minha e fosse tua
erigia para ti uma estátua nua
dos pássaros que trazemos na língua
cobertos de pó

se um dia me encontrasse contigo na rua
pedir-te-ia desculpa
por esta pátria ser puta
de um poeta só

falo-te desse dia
em que um sol baço
chorará a vida da lua

anuncio esse dia
como um vago abraço
de uma terra que não é minha e não é tua



domingo, 3 de agosto de 2014

Uma rosa para Borges


quando o reino nocturno tingiu todos os lugares de Buenos Aires
quando os teus olhos se tornaram poços
como remoinhos onde se reflectem todas as imagens ainda por criar
despidas de formas
somente significados condimentados com a liberdade do vazio
pudeste nesse instante sentir a fragrância da rosa inatingível,
não esta que deposito agora sobre a saudade dos teus versos
não esta em decomposição e com o caule num copo submerso
para fingir a vida
- porque tudo são armazéns de morte
que conservamos até ao último instante da razão
com a débil esperança de lhe retirar a amargura
que se propaga pelas pétalas que os nossos dedos vão arrancando
para a concretização mágica dos desejos inocentes e juvenis
a que podamos cuidadosamente todos os espinhos
mas onde as cicatrizes teimosas permanecem
como porteiras que dão aos nossos medos as directrizes dos abismos

sei que por todo o mundo ainda existem roseirais inteiros
vazios de significado por não serem bravios
navios que se afundam com um perfume que nunca sentimos
porque os nossos olhos reclamam constantemente factos
relatos deste e de outros mundos
actos banais para encherem teatros

das cidades não agarramos pedaço ou ilusão alguma
das fábricas do tempo nada produzimos para além da escravatura
e desta pálida e transitória rosa que agora transporto
e que sufoco ao cerrar o meu punho
transformando-a neste poema em ruptura e descomposto de senso
que é testemunho sem palato ou profundo gosto
da cegueira de mais um homem sem olfacto para o incenso místico
da rosa que experimentaste e levaste do mundo
até ao fundo da história da eternidade que os telescópios negam
onde residem ecos abertos como ópios utópicos e expansivos
dos manifestos ofensivos para a organização universal que os olhos pregam