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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

o relógio e o poema


. acabei agora mesmo de colocar um ponto final neste poema, a que alguns por pudor chamar-lhe-ão outra coisa qualquer. acabei há pouco de o escrever. sinto que deixei algum peso para trás, sinto-me estranho: sinto-me eu. já estou deitado e já passaram alguns minutos desde que o acabei, enquanto isto, lá em cima, no velho escritório, o poema sente o frio provocado pela janela aberta. o vento parece querer levá-lo para outro lugar, mas lá fora é tão escuro e ele não se quer perder no meio de tudo. então resiste firme, fica quieto no meio do nada.

a mesa que o suporta é já cansada. já carregou o peso de muitos outros poemas, que por sua vez suportaram o meu peso. por vezes, ouvem-se pequenos estalidos que irrompem no silêncio, cliente habitual daquele velho escritório. para além deste poema abandonado, da janela baça pelo tempo e da mesa de madeira de carvalho, existem também outras duas personagens: um piano sujo de pó e um relógio parado, há muito tempo atrás.

dias – tão distantes – houveram em que o tempo avançava fielmente ao ritmo de compassos demorados, de melodias hoje esquecidas. o piano ainda as lembra, chora-as no fundo do seu silêncio perpetuado neste tempo parado. existem milhares de palavras evaporadas neste escritório. que nada dizem, que nada são. apenas sílabas mortas, juntas pela antiga razão que nunca conheci, separadas por uma pontuação a que nunca obedeci.

sou um poema,

um desses que já esqueci.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Os desafios do ensino de jornalismo

Porquê escolher jornalismo nos tempos que correm? A resposta é simples: precisamente para escolher. Na descrença que se alastra, na forma de um denso nevoreiro e envolve a sociedade portuguesa actual, torna-se fundamental fazer escolhas. E para isso são necessárias vozes, novas vozes – devidamente fundamentadas em vozes antigas e credíveis, mas com um novo timbre.
Não são raras as vezes em que ouvimos alguém, jovem ou não, porque isto da insatisfação não tem idade, culpabilizar os novos, os velhos ou, simplesmente, os mesmos do costume. Todos nós, em vários momentos, já fomos esse alguém que critica. Mas a verdade é que não podemos ser apenas mais “um velho do restelo”. Devemos ser mais do que isso.
Uma única voz pode influenciar o grito de milhares. Para isso é necessário trabalhá-la e sabê-la usar da forma mais inteligente que a condição humana nos permite. Para esse efeito enveredámos por este caminho: o de comunicar, o de comunicar bem. Não nos podemos restringir a reportar a mudança. Os mais diversos meios de comunicação são uma ferramenta fulcral para fazer com que o mundo se transforme. E o mundo é diferente todos os dias!
Cada leitor, ouvinte, espectador ou outro tipo de receptor que surja futuramente, é alguém que espera encontrar em cada comunicador, em cada emissor, um pouco de certeza e confiança. É aqui, neste ponto, que o papel de um professor de jornalismo assume maior protagonismo.
Todos nós, aqueles que optámos pelo estudo desta área tão volátil e maleável temos, provavelmente, aptidões que podem fazer de nós bons comunicadores. E digo provavelmente para não me comprometer… Mas ser criativo, escrever bem ou ser um bom falante, não é suficiente. Existe algo, que à partida para esta empreitada, ainda nos escasseia a todos nós. Algo que sustenta a humanidade e o universo tal como o conhecemos hoje: a ciência, a arte do exacto e do rigor.
Nenhum diamante surge lapidado, nenhuma ferramenta trabalha sozinha e numa mão nasce automatizada para qualquer que seja o ofício. A um professor de jornalismo cabe a tarefa de trabalhar e limpar a voz de tantos futuros comunicadores, usando a ciência que um dia, hipoteticamente, teremos.
E digo hipoteticamente para não me comprometer…

domingo, 18 de setembro de 2011

surreal conhecimento



as minhas mãos seguram o peso da possibilidade do meu corpo
e o meu pensamento voa livre sob convenções que desconheço.
para além do meu gosto a mais nada eu me ofereço,
porque os outros já me conhecem em demasia.

há quem saiba mais de mim do que eu próprio.
assim o afirmam tantas vezes, como que rindo
da minha incapacidade de me ver ao espelho.

talvez seja dos meus olhos mas não vejo nada.
não vejo nada para além de uma cegueira
comum a todos, provocada por tanto olharmos.

os olhos querem sempre ver o mundo inteiro
e o cérebro perceber o primeiro momento:
o zero.

aquilo que nos escapa normalmente não importa.
bato a porta. não quero olhar nos olhos.
o meu sonho assimila tão mais perfeitamente.

domingo, 11 de setembro de 2011

poema do poema


ser poeta é nascer de cabeça para cima
e sentir a vertigem a cada passo dado.
é reter subliminarmente um segundo diferente
e depois virar a página com a tinta ainda quente.

é ver nas estrelas terrores imensos
e nos contos de fadas finais inesperados:
um príncipe feio, um castelo desmoronado.

é sentir tudo e inventar o que falta cá dentro.
pelo meio dar um grito, só para se fazer notar.

montar o primeiro cavalo que passa,
de cabeça para baixo, e deixar-se escorregar.

- galopar! galopar! galopar!

sentir o andamento mais rápido
e o corpo a não aguentar. parar.

reler só mais uma vez.
assinar apenas se valer a pena.

se vês nele um sentido por dizer,
chama-lhe: o poema do poema.

pele sobreposta


houveram dias em que as cores se esbateram quase por inteiro
e em que o meu paladar nada podia perante as lágrimas velhas,
salgadas e cruéis,

porque eu não estava.

as pessoas eram, na sua totalidade incompleta, seres rarefeitos.
semelhantes a personagens dramaticamente paradas,
drasticamente mudadas pelos seus pensamentos
associados criminalmente com os meus,

porque eu não estava.

e a culpa da inércia não era de ninguém, era de deus:
fantasia doce e amarga, dependendo dos momentos,
que adiava constantemente o dia de me vir buscar.

era uma dor que não doía muito em lado nenhum
que o dedo dos outros pudesse em mim ainda magoar,

porque eu não estava.

hoje eu acordei e fechei a janela do passado.
ao fechar o álbum reparei que ainda tenho sorrisos,
palavras novas por colar.

então eu abri a porta.

primeiro estranhei,
depois deixei-me por fim entrar.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

PALAVRAS EM GUERRA (IMPÉRIO MORTO)



“Mãe, escrevo-te esta carta para que saibas que estou bem, para que todos saibam que, eu, estou bem. Amanhã embarcamos para Portugal. Nem todos. Alguns como o Damiano, o meu amigo que fiz aqui, no mato, o amigo de quem te fui falando mãe, ficará aqui, como muitos outros, para sempre. Mas para sempre é um período de tempo que não conseguimos ver ou pensar mãe. Não consigo imaginar mais do que vintoito anos. É todo o tempo que tenho e que consigo sentir.
A guerra está terminada e estou mais vivo do que nunca mãe. Estou diferente. Tenho cicatrizes novas, tenho o sangue de outros que se me entranhou na pele, bem fundo, tenho mortes bem presentes na memória e tenho a minha vida – nunca valeu tanto a minha vida mãe.
Muita coisa se perdeu aqui para além de territórios, muito para além de um império moribundo. Perderam-se pessoas, que viverão para sempre ou que nunca mais viverão. Tudo depende de nós, daqueles que cá ficámos. Tenho a certeza que o Damiano viverá na minha lembrança, pelo menos por mais vintoito anos. É todo o tempo que consigo imaginar.
Sinto a tua falta mãe. Sinto a falta do pai, uma saudade real, que provavelmente nunca conseguirei verbalizar. Sinto tanto a vossa falta mãe. Mas antes de voltar a casa, antes de as nossas palavras ditas, misturadas com o teu choro saudoso de mãe, antes de de eu e o pai nos abraçarmos em silêncio, naquele silêncio nosso que só nós ouvimos o que diz – diz tanta coisa aquele nosso silêncio – sempre baixinho, antes de tudo isto mãe, eu terei de procurar por mim. Fico longe da nossa casa, fico a bastantes quilómetros de distância…
Mas fico perto. Fico neste beijo que te deixo mãe.
Voltarei em breve. Promete este teu filho que te ama mãe. Prometo eu, longe, José.”


Foram mais ou menos estas as palavras que escrevi para a minha mãe. Foram mais ou menos estas as palavras soluçadas, repletas de orgulho, que o meu pai, os vizinhos, toda a gente que consigo imaginar, devem ter ouvido da boca da minha mãe.
Chego por fim a esta aldeia estranha, como que deserta. Para trás ficaram a carreira e a sua marcha lenta, tornada ainda mais vagarosa pelas histórias, pelas rezas das viúvas. Para trás ficou o atrelado, almofadado com palha, rebocado por um velho e pequeno tractor, conduzido por um velho, pequeno e simpático homem que me trouxe até aqui: esta aldeia, da qual nada conheço. Apenas ela e nem ela conheço…