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domingo, 28 de setembro de 2014

Os nomes têm palavras cosidas por dentro


            Quando nascemos, atribuem-nos um nome. Antes ainda de nos fitarem os olhos, esse rótulo que transportaremos para o resto das nossas vidas está já escolhido e pronto a ser colado. Pega lá! É teu, ainda que não diga nada a teu respeito. Os nomes podem assim assemelhar-se a credenciais ou atestados inócuos, que nada podem acrescentar ao nosso significado.
            Ainda assim, quando perdemos um nome, não é apenas essa palavra que parte, porque os nomes são matrioskas de significância. Os nomes têm outras palavras, que ao longo do tempo, vão sendo cosidas por dentro, por outras mãos. O tempo é uma sala onde várias agulhas vão costurando subtilmente outras palavras no tecido interior dos nomes. Substantivos, outro nome para os nomes. Essas palavras que vão sendo acrescentadas, como adornos, podem ser outros nomes, mas também podem ser – e são, sobretudo – verbos e adjectivos.
            Quando um nome se desvanece, esfumam-se com ele muitas outras palavras de classes gramaticais diversas. Quando um nome se vai apagando gradualmente, convertendo-se amargamente em nada, isso é apenas o indício de que várias das palavras que nele habitavam já secaram o seu significado. Quando um nome morre, os nomes que nos sobram ficam também mais pobres, pois as palavras dentro deles estremecem. Isso acontece porque, por vezes, palavras gémeas medram no solo de diferentes nomes e, quando um gémeo morre, o que persiste vivo morre também aos olhos da sua mãe. Sempre que dizemos adeus a um nome, perdemos vocabulário. Ficamos mais pobres. Passamos a procurar e a mendigar em toda a parte, não um nome semelhante, mas uma equivalente combinação de verbos e adjectivos que eram o seu real significado. Nunca encontraremos e o tempo vai-nos vencendo. Desistimos de procurar essas palavras. Ficamos um pouco mais surdos e mudos, mas ainda assim continuamos. Perder nomes é, então, derradeiramente, assustadoramente, perder sentidos. Agora que reparo, perder nomes é também perder certos advérbios de modo.
            Quando numa sala de hospital, com as lágrimas a marearem os nossos olhos, não somos capazes de evitar a perda de alguém que amamos, são muitas as palavras que nos vão escorrendo pelo rosto e que não chegam a tocar o chão porque ebuliram no entretanto. O som das máquinas. Bip. Bip. Bip. Silêncio depois. Ruína depois. Roleta russa em que ao perderes uma ficha te retiram, na verdade, bem mais do que isso. Quando no cais de embarque te despedes de alguém, são várias as palavras de que o teu lenço branco se desfaz. Motores a todo o vapor! E em vapor se transformam as palavras que perdeste, deixando secas as engrenagens da tua máquina. Quando alguém te pede para esqueceres o seu nome, que o risques – introduz aqui esse nome, este espaço é teu –, o processo é bem mais complexo do que simplesmente deixares de pronunciá-lo. Nesse momento, enfrentas todas as tuas memórias que gritam esse nome que pede para ser esquecido, olhas em teu redor, e amontoas uma série de experiências que alguém te obriga a despejar pela janela. Depois de o fazeres, não consegues evitar debruçar-te sobre o parapeito e observar na rua todas as palavras dispersas que, com relutância, nunca voltarás a segurar. E ficas a observar. A observar ao longo do tempo, por tempo indefinido, até que os olhos se cansem, até que a chuva chegue e dilua essas palavras ou até que um mendigo ou um ladrão tome para si todos esses significados. Não são mais teus! Estremeces nesse instante e esperas pelo amanhã que te traga novas palavras com as quais possas fazer as mais belas canções. Mas não te esqueças: quando perdes um nome ficas um passo mais perto do abismo que dá para o vazio. Ficas mais perto do silêncio, esse buraco negro de melodias.
            Um dia também o meu nome se perderá. Quando esse tempo chegar, que palavras deixarás de dizer? Que verbos e que adjectivos serão esbatidos? Gostava que a chuva nunca diluísse essas palavras com que me pintas, mas o tempo é quem dita e nem sempre com as palavras de que mais gostas. Talvez as tenhas conhecido um dia e, entretanto, elas tenham adormecido na tua mente, sem provocar qualquer ruído. Já não notas a sua presença e por isso morreram para ti. Ninguém tas poderá ensinar outra vez.
            Nascemos donos de todas as palavras, mas a erosão dos dias vai tornando, de forma gradual e natural, a vida num dicionário de silêncios, onde não existe qualquer ordem racional que auxilie a tua procura. Aprender os silêncios resignadamente. Nada, por vezes, significa tudo. Tudo o que te falta, tudo o que perdeste e que não pudeste preservar. As mãos cada vez mais fracas, mas o pulso ainda. O coração a bater. A tua máquina ainda permanece ligada, apesar da morte dos nomes. Bip. Bip. Bip.
            Escrever também é perder palavras. No final deste texto, tomarás estas palavras para ti e a elas associarás outros nomes que não aqueles que eu imaginei. Toma, fica com elas! Ainda estão vivas. Lembra-te de nomes bonitos quando as leres; nomes que te façam sorrir ou chorar por bem. Recorta algumas destas frases e cose-as no interior dos nomes mais profundos e essenciais que ainda trazes contigo. Tal como os nomes, todas as restantes palavras não são afinal invólucros vazios. São rebuçados, que desembrulhas com dedos hábeis e esperas que nunca se derretam na língua.
            Toma o paladar de cada nome que agora é teu e ao Pai não peças mais doces. Pede apenas que não tos tire, ainda que…


sábado, 27 de setembro de 2014

O Escritor-que-grita-silêncios



                O escritor-que-grita-silêncios permanece sempre calado. Entra na taberna, cumprimenta e ninguém nota a sua presença. Com um gesto, pede sempre o habitual: um café e paz de espirito. Mais nada. E assim fica. Durante horas. Durante horas escreve silêncios com formas de poemas e prosas muito bem arranjadas, com a musicalidade das palavras que foi desaprendendo, porque as palavras perdem-se e os silêncios por vezes tornam-se perpétuos. O escritor-que-grita-silêncios não se prende a um idioma, porque ele é a torre de babel que ainda está por erguer. Nele confluem todas as línguas do mundo e o silêncio é o produto apurado disso mesmo.
            No outro dia, deixou esquecido um poema sobre a mesa que sempre o espera, que sempre suporta o seu peso ao longo das noites que aqui passa. Não dizia nada, nem uma mísera palavra ou morfema e, ainda assim, com uma ironia descabida, era o mais belo poema acerca da ausência, seja ela qual for, por ser capaz de falar à inconsciência.

domingo, 21 de setembro de 2014

Sistema de navegação


nos teus passos tento decifrar os teus olhos
dos teus olhos tento apontar as tuas ideias
e nas ideias retorno aos teus passos
que passas a vida a mudar

nas tuas palavras tento explicar os teus silêncios
dos teus silêncios tento replicar os teus sonhos
tendo feito deles um esquiço que depois à água lancei
e que os tentáculos das ondas tornam agora medonhos

prepara-me a cura
para a secura com que fiquei por não poder decalcar
o timbre aveludado da tua voz:

foz dos meus lugares que se tingem dum rio inteiro
onde sempre chegas seca e primeiro
faltando-te o mapa do continente que sonhei para nós.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Um navio que vai para a manhã


um navio passa suspenso sobre a linha do horizonte
levando a bordo os meus sonhos de ontem
uns por cima dos outros                     uns ferindo os outros
e a acalmia rodopia na praia como um cão inquieto
que pressente no vento a melodia de uma matilha faminta

um velho consulta as marés do relógio enquanto digere
um tempo que já não é seu e que fala num outro idioma
que já ninguém compreende   em que já ninguém vende
utopias e cigarros desesperados por dedos mais firmes
que os matem depois no cinzeiro rachado das crenças

porque tudo isto é engano e desengano
tudo isto é o orvalho de uma outra coisa qualquer
que a chuva dos nossos dias deixa nas folhas dos olhos

e sempre seremos isto
sombras bruxuleantes que dançam descoordenadas com o corpo
e nunca saberemos isto
por vivermos eremiticamente na caverna que Platão avistou

nunca saberemos coisa nenhuma
apenas que um navio passa suspenso sobre a linha do horizonte
levando as nossas noites para uma manhã que as esqueça