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domingo, 14 de dezembro de 2014

Fábricas de doenças e elixires fotossintéticos

O palco dos teus pesadelos está iluminado ao centro por um candelabro
e na plateia dois olhos flamejantes perscrutam o teu corpo
desalinhado com a cena onde repetes um monólogo interior.

À porta, um homem
com dois corvos sobre os ombros promove o espectáculo
e anuncia alarvemente a morte de um guerreiro clássico
a uma mulher que fuma impacientemente perfumados cigarros.

AJAX FOI DERROTADO PELA ESPADA DA LOUCURA

Da seiva das sombras veio o seu conflito,
tal como o teu que se acerca agora.
Consegues ouvir a marcha desse exército de medos só teus?

Não te envergonhes das loucuras que te assomam à noite,
de todos os tremores e desejos infundados,
atenta que o mais valeroso guerreiro morreu como um poeta,
louco, tombado sobre a própria lâmina.

Todos os homens são cordiais militares de sorrisos diurnos,
mas nas trevas buscam o consolo de um eufemismo agridoce
e de uma metáfora almofadada que embeleze e alinhe o sentido
deste e de outros poemas noctívagos
que perseguem a tua paz a(ssa)ssinada com tratados
e com fábricas de doenças e elixires fotossintéticos.

A absorção de qualquer luz que possuas
em troca de oxigénio.

Assim te propõem eles
E tu compras.
Ora pois, não és louco ainda!

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ultrapassagens pela direita


            Antes de mais, começo por pedir desculpa, pois este texto é uma excepção em relação a todos os restantes conteúdos que, até hoje, foram publicados neste blogue. Sempre tive como objectivo utilizar este “espaço” apenas para fins literários, mas para além do meu gosto pelos livros, pelos enredos fantásticos, pela arte de pintar através das palavras paisagens por inventar, eu sou também um estudante de jornalismo. No entanto, mais do que isso, eu sou um cidadão e gosto de ser informado de forma correcta, transparente e desinteressada. Sim, talvez eu seja um utópico! Muitas vezes encaro-me como um velho do restelo, a quem a pátria diz muito pouco, mas existem causas e valores que me levam a escrever estas palavras.
            A personagem principal ou, melhor, o Anticristo a quem este texto faz referência, é alguém por quem eu não tenho uma grande afinidade ideológica ou política. Por isso, sinto-me à vontade para me debruçar sobre o assunto.
            Desde a passada sexta-feira, vivemos num país diferente; vivemos num país sem memória e não existe nada pior do que um povo que não é capaz de se lembrar. Isso anula o progresso, a reflexão cívica e, acima de qualquer outra coisa, impede que sejamos capazes de ser justos. Um dos requisitos para sermos justos, ou, pelo menos, para amplificarmos essas hipóteses, é mantermos um certo distanciamento em relação ao nosso ponto de enfoque. Uma balança deve sempre ter dois pratos e nenhum dos dois deve estar vazio. Devemos saber colocar os pesos em cada um desses dois pratos.
            Penso que, chegados a este parágrafo, muitos de vocês já devem suspeitar que o caso a que me refiro é aquele que envolveu a detenção e posterior decretação de prisão preventiva de José Sócrates, antigo primeiro-ministro. Pois bem, nestes últimos dias, este assunto entrou de rompante em casa de cada português. É inevitável! E muito tem sido dito e publicado acerca do assunto, ainda que as informações sejam escassas. Refiro-me às informações disponibilizadas à maioria dos órgãos de comunicação social, porque existem duas ou três excepções.
            Em Portugal existe apenas uma pessoa completamente informada sobre este tema. Mais ninguém! Em relação a este assunto, ela é omnisciente e omnipresente. Se o Pedro Chagas Freitas pode ser deus, esta pessoa também pode. Essa pessoa é a jornalista Felícia Cabrita, que por sinal é a autora da biografia autorizada de Pedro Passos Coelho, que por sinal trabalha para o semanário Sol – órgão de comunicação social que no passado travou uma batalha “pessoal” com José Sócrates – e que, por sinal também, pois claro, foi uma jornalista que esteve ligada a revelações feitas acerca do escândalo Casa Pia e também do já célebre caso do Estripador de Lisboa – em ambos, as suas investigações acabaram por se revelar pouco precisas. Ou seja, temos aqui vários sinais e, já diz o povo, onde há fumo, há fogo. Ainda a respeito de Felícia Cabrita, e isto é uma mera opinião, gostaria de dizer que essa senhora está para o jornalismo tal como o Nicholas Sparks está para a literatura. Vende, consegue por vezes bons enredos, é certo, mas não acrescenta merda nenhuma! Transição.
            Existe ainda outro órgão de comunicação social, que embora não afirme saber tudo, tal como a Dona Felícia, parece ter acesso a informações privilegiadas. Ora adivinhem lá qual é! Aquele que ninguém lê mas ainda assim é que o mais vende… Parabéns! Acertou! É o Correio da Manhã, esse híbrido que combina o melhor do Jornal de Notícias com o melhor da revista Maria; esse jornal que, um dia, afirmou que a vida tentou suicidar-se numa ponte (juro que é verdade, podem pesquisar). Acerca deste nobre jornal diário não vou dizer mais nada, porque fico com vontade de regurgitar. Além disso, bater no Correio da Manhã é quase cobardia, pois toda a gente lhe bate.
            Semanário Sol e CM: são estes os dois órgãos de comunicação social mais sapientes acerca do Caso Marquês. O primeiro declara ser o único que sabe tudo, o outro, sempre fiel ao registo, limita-se a papaguear os comunicados que chegam à redacção, provenientes de fontes desconhecidas mas interessadas em promover o espectáculo; o que importa é estar escrito SÓCRATES com letras muito gordas, na capa, acompanhado do drama pessoal de uma celebridade qualquer. Portanto, assim verificamos que este circo mediático está, sobretudo, entregue a um jornal sedento de vingança e a outro que me faz lembrar aqueles miúdos que quando dois colegas se pegam no recreio ficam simplesmente a ver, formando uma roda, e gritando: Porrada!, Porrada! Quando um deles finalmente cai ao chão, há sempre quatro ou cinco dos que estavam a assistir que aproveitam imediatamente para dar uns pontapés também.
            José Sócrates também caiu. Em público. No ringue mediático. E existem milhões de pessoas desejosas de o pontapear agora. Mesmo aqueles que votaram nele e até hoje o defenderam, parecem agora não conseguir controlar a vontade de o condenar em praça pública. O bom português é assim! Tem sempre um dedo a apontar, mesmo que não saiba bem para onde e muito menos o motivo pelo qual o faz. Confesso, é nestes momentos que eu pego no meu bilhete de identidade espanhol esquecido numa gaveta e me lembro que tenho mesmo de o ir renovar.
            Com toda esta agitação mediática, outros assuntos que estavam na ordem do dia acabaram por se eclipsar, como é o caso da polémica em que os famosos vistos gold estão envoltos. Ninguém falará disso nos próximos dias! Para além disso, a altura em que a detenção de José Sócrates teve lugar parece ter muito pouco de casual. Uma investigação que, pelo que dizem, ocorria há um ano terminou precisamente no dia que antecedeu o congresso socialista e que elegeu António Costa para o cargo de secretário-geral do partido. Coincidência? Julgue você mesmo! Há ainda que considerar a forma como a detenção do antigo primeiro-ministro foi efectuada. José Sócrates passava a maior parte do seu tempo em Portugal, mas a sua detenção tinha mesmo de ser efectuada aquando da sua chegada ao aeroporto da Portela? Não existia perigo de fuga, o suspeito não constituía uma ameaça para a sociedade. Como justificar isto? A mim, parece-me, que assisti a um acontecimento demasiado cinematográfico num país onde o teatro social e político está entregue a amadores. Um happening, se quisermos. Mais um aspecto a considerar: as únicas imagens captadas no momento da detenção foram recolhidas e emitidas, em primeira mão, pela SIC Notícias. Ora, paremos para reflectir. Quem é o patrono desta estação televisiva? Francisco Pinto Balsemão… Interessante!
            No entanto, bem sei que nada disso agora importa e é extremamente aborrecido estar a pensar em tudo isto. Lá está ele com a mania da conspiração, dirão alguns de vocês. Talvez esteja mesmo, mas gosto de manter abertas várias possibilidades e desconfio sempre das perspectivas dogmáticas que me tentam impingir. E não se pense que o bicho papão é a comunicação social! Os órgãos de comunicação social são apenas mais um instrumento, que todos querem e tentam controlar, porque controlar a comunicação é amputar e enviesar o acesso à informação.
            Existe quem saiba isso. Existe quem saiba tudo. Existe quem não sabe nada e, pior do que isso, não quer saber nem ver para além daquilo que as palas nos olhos lhes permitem enxergar. E assim vai o povo nesta excursão, pela estrada fora, tudo em alvoroço, porque até o motorista parece ser um canalha e um gatuno. Enquanto isto, chineses ao volante de automóveis de alta cilindrada ultrapassam pela direita. E ninguém nota. Ninguém quer saber. “Só sei que nada sei”, já dizia o outro fulano, que também se fodeu bem e nem televisão tinha na prisão.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Campanhã, 6min, 18:43

Durante horas aguardámos um sentido na estação de comboios.
Matámos a ditadura dos relógios,
imaginando todas as rotas que poderíamos ter tomado
e todos os lugares em que ainda nos aguardamos impacientemente.

Assim nos detivemos durante demasiado e vago tempo:
a vida esfumar-se entre os nossos dedos  
que nunca tocaram os sonhos canónicos das nossas vontades,
apenas medos e trevos de três folhas que com vaidade colhemos.

Ninguém nos viu durante todo o tempo em que ali esperámos,
sentados em bancos de metal naturalmente gélidos,
e muito menos alguém terá notado os nossos rostos parados
porque as multidões são cegas, autistas
e o amor trepidante talvez seja um atraso constrangedor
para um mundo em constante hora de ponta.


domingo, 28 de setembro de 2014

Os nomes têm palavras cosidas por dentro


            Quando nascemos, atribuem-nos um nome. Antes ainda de nos fitarem os olhos, esse rótulo que transportaremos para o resto das nossas vidas está já escolhido e pronto a ser colado. Pega lá! É teu, ainda que não diga nada a teu respeito. Os nomes podem assim assemelhar-se a credenciais ou atestados inócuos, que nada podem acrescentar ao nosso significado.
            Ainda assim, quando perdemos um nome, não é apenas essa palavra que parte, porque os nomes são matrioskas de significância. Os nomes têm outras palavras, que ao longo do tempo, vão sendo cosidas por dentro, por outras mãos. O tempo é uma sala onde várias agulhas vão costurando subtilmente outras palavras no tecido interior dos nomes. Substantivos, outro nome para os nomes. Essas palavras que vão sendo acrescentadas, como adornos, podem ser outros nomes, mas também podem ser – e são, sobretudo – verbos e adjectivos.
            Quando um nome se desvanece, esfumam-se com ele muitas outras palavras de classes gramaticais diversas. Quando um nome se vai apagando gradualmente, convertendo-se amargamente em nada, isso é apenas o indício de que várias das palavras que nele habitavam já secaram o seu significado. Quando um nome morre, os nomes que nos sobram ficam também mais pobres, pois as palavras dentro deles estremecem. Isso acontece porque, por vezes, palavras gémeas medram no solo de diferentes nomes e, quando um gémeo morre, o que persiste vivo morre também aos olhos da sua mãe. Sempre que dizemos adeus a um nome, perdemos vocabulário. Ficamos mais pobres. Passamos a procurar e a mendigar em toda a parte, não um nome semelhante, mas uma equivalente combinação de verbos e adjectivos que eram o seu real significado. Nunca encontraremos e o tempo vai-nos vencendo. Desistimos de procurar essas palavras. Ficamos um pouco mais surdos e mudos, mas ainda assim continuamos. Perder nomes é, então, derradeiramente, assustadoramente, perder sentidos. Agora que reparo, perder nomes é também perder certos advérbios de modo.
            Quando numa sala de hospital, com as lágrimas a marearem os nossos olhos, não somos capazes de evitar a perda de alguém que amamos, são muitas as palavras que nos vão escorrendo pelo rosto e que não chegam a tocar o chão porque ebuliram no entretanto. O som das máquinas. Bip. Bip. Bip. Silêncio depois. Ruína depois. Roleta russa em que ao perderes uma ficha te retiram, na verdade, bem mais do que isso. Quando no cais de embarque te despedes de alguém, são várias as palavras de que o teu lenço branco se desfaz. Motores a todo o vapor! E em vapor se transformam as palavras que perdeste, deixando secas as engrenagens da tua máquina. Quando alguém te pede para esqueceres o seu nome, que o risques – introduz aqui esse nome, este espaço é teu –, o processo é bem mais complexo do que simplesmente deixares de pronunciá-lo. Nesse momento, enfrentas todas as tuas memórias que gritam esse nome que pede para ser esquecido, olhas em teu redor, e amontoas uma série de experiências que alguém te obriga a despejar pela janela. Depois de o fazeres, não consegues evitar debruçar-te sobre o parapeito e observar na rua todas as palavras dispersas que, com relutância, nunca voltarás a segurar. E ficas a observar. A observar ao longo do tempo, por tempo indefinido, até que os olhos se cansem, até que a chuva chegue e dilua essas palavras ou até que um mendigo ou um ladrão tome para si todos esses significados. Não são mais teus! Estremeces nesse instante e esperas pelo amanhã que te traga novas palavras com as quais possas fazer as mais belas canções. Mas não te esqueças: quando perdes um nome ficas um passo mais perto do abismo que dá para o vazio. Ficas mais perto do silêncio, esse buraco negro de melodias.
            Um dia também o meu nome se perderá. Quando esse tempo chegar, que palavras deixarás de dizer? Que verbos e que adjectivos serão esbatidos? Gostava que a chuva nunca diluísse essas palavras com que me pintas, mas o tempo é quem dita e nem sempre com as palavras de que mais gostas. Talvez as tenhas conhecido um dia e, entretanto, elas tenham adormecido na tua mente, sem provocar qualquer ruído. Já não notas a sua presença e por isso morreram para ti. Ninguém tas poderá ensinar outra vez.
            Nascemos donos de todas as palavras, mas a erosão dos dias vai tornando, de forma gradual e natural, a vida num dicionário de silêncios, onde não existe qualquer ordem racional que auxilie a tua procura. Aprender os silêncios resignadamente. Nada, por vezes, significa tudo. Tudo o que te falta, tudo o que perdeste e que não pudeste preservar. As mãos cada vez mais fracas, mas o pulso ainda. O coração a bater. A tua máquina ainda permanece ligada, apesar da morte dos nomes. Bip. Bip. Bip.
            Escrever também é perder palavras. No final deste texto, tomarás estas palavras para ti e a elas associarás outros nomes que não aqueles que eu imaginei. Toma, fica com elas! Ainda estão vivas. Lembra-te de nomes bonitos quando as leres; nomes que te façam sorrir ou chorar por bem. Recorta algumas destas frases e cose-as no interior dos nomes mais profundos e essenciais que ainda trazes contigo. Tal como os nomes, todas as restantes palavras não são afinal invólucros vazios. São rebuçados, que desembrulhas com dedos hábeis e esperas que nunca se derretam na língua.
            Toma o paladar de cada nome que agora é teu e ao Pai não peças mais doces. Pede apenas que não tos tire, ainda que…


sábado, 27 de setembro de 2014

O Escritor-que-grita-silêncios



                O escritor-que-grita-silêncios permanece sempre calado. Entra na taberna, cumprimenta e ninguém nota a sua presença. Com um gesto, pede sempre o habitual: um café e paz de espirito. Mais nada. E assim fica. Durante horas. Durante horas escreve silêncios com formas de poemas e prosas muito bem arranjadas, com a musicalidade das palavras que foi desaprendendo, porque as palavras perdem-se e os silêncios por vezes tornam-se perpétuos. O escritor-que-grita-silêncios não se prende a um idioma, porque ele é a torre de babel que ainda está por erguer. Nele confluem todas as línguas do mundo e o silêncio é o produto apurado disso mesmo.
            No outro dia, deixou esquecido um poema sobre a mesa que sempre o espera, que sempre suporta o seu peso ao longo das noites que aqui passa. Não dizia nada, nem uma mísera palavra ou morfema e, ainda assim, com uma ironia descabida, era o mais belo poema acerca da ausência, seja ela qual for, por ser capaz de falar à inconsciência.

domingo, 21 de setembro de 2014

Sistema de navegação


nos teus passos tento decifrar os teus olhos
dos teus olhos tento apontar as tuas ideias
e nas ideias retorno aos teus passos
que passas a vida a mudar

nas tuas palavras tento explicar os teus silêncios
dos teus silêncios tento replicar os teus sonhos
tendo feito deles um esquiço que depois à água lancei
e que os tentáculos das ondas tornam agora medonhos

prepara-me a cura
para a secura com que fiquei por não poder decalcar
o timbre aveludado da tua voz:

foz dos meus lugares que se tingem dum rio inteiro
onde sempre chegas seca e primeiro
faltando-te o mapa do continente que sonhei para nós.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Um navio que vai para a manhã


um navio passa suspenso sobre a linha do horizonte
levando a bordo os meus sonhos de ontem
uns por cima dos outros                     uns ferindo os outros
e a acalmia rodopia na praia como um cão inquieto
que pressente no vento a melodia de uma matilha faminta

um velho consulta as marés do relógio enquanto digere
um tempo que já não é seu e que fala num outro idioma
que já ninguém compreende   em que já ninguém vende
utopias e cigarros desesperados por dedos mais firmes
que os matem depois no cinzeiro rachado das crenças

porque tudo isto é engano e desengano
tudo isto é o orvalho de uma outra coisa qualquer
que a chuva dos nossos dias deixa nas folhas dos olhos

e sempre seremos isto
sombras bruxuleantes que dançam descoordenadas com o corpo
e nunca saberemos isto
por vivermos eremiticamente na caverna que Platão avistou

nunca saberemos coisa nenhuma
apenas que um navio passa suspenso sobre a linha do horizonte
levando as nossas noites para uma manhã que as esqueça

domingo, 31 de agosto de 2014

Herberto














se um dia esta terra fosse minha e fosse tua
erigia para ti uma estátua nua
dos pássaros que trazemos na língua
cobertos de pó

se um dia me encontrasse contigo na rua
pedir-te-ia desculpa
por esta pátria ser puta
de um poeta só

falo-te desse dia
em que um sol baço
chorará a vida da lua

anuncio esse dia
como um vago abraço
de uma terra que não é minha e não é tua



domingo, 3 de agosto de 2014

Uma rosa para Borges


quando o reino nocturno tingiu todos os lugares de Buenos Aires
quando os teus olhos se tornaram poços
como remoinhos onde se reflectem todas as imagens ainda por criar
despidas de formas
somente significados condimentados com a liberdade do vazio
pudeste nesse instante sentir a fragrância da rosa inatingível,
não esta que deposito agora sobre a saudade dos teus versos
não esta em decomposição e com o caule num copo submerso
para fingir a vida
- porque tudo são armazéns de morte
que conservamos até ao último instante da razão
com a débil esperança de lhe retirar a amargura
que se propaga pelas pétalas que os nossos dedos vão arrancando
para a concretização mágica dos desejos inocentes e juvenis
a que podamos cuidadosamente todos os espinhos
mas onde as cicatrizes teimosas permanecem
como porteiras que dão aos nossos medos as directrizes dos abismos

sei que por todo o mundo ainda existem roseirais inteiros
vazios de significado por não serem bravios
navios que se afundam com um perfume que nunca sentimos
porque os nossos olhos reclamam constantemente factos
relatos deste e de outros mundos
actos banais para encherem teatros

das cidades não agarramos pedaço ou ilusão alguma
das fábricas do tempo nada produzimos para além da escravatura
e desta pálida e transitória rosa que agora transporto
e que sufoco ao cerrar o meu punho
transformando-a neste poema em ruptura e descomposto de senso
que é testemunho sem palato ou profundo gosto
da cegueira de mais um homem sem olfacto para o incenso místico
da rosa que experimentaste e levaste do mundo
até ao fundo da história da eternidade que os telescópios negam
onde residem ecos abertos como ópios utópicos e expansivos
dos manifestos ofensivos para a organização universal que os olhos pregam

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Não-não, Segue-segue

não fiques apenas por não teres para onde ir
e não me peças tampouco um caminho
uma direcção   que te afaste da solidão nocturna das bermas

não te demores nas estradas secundárias
apenas pelo simples motivo de iluminarem
electricamente a tua passagem neste momento           e num outro próximo

segue pelo caminho que te leva ao encontro do teu fogo
e que agora te enregela o sangue e depois o aquece e depois não
e depois o contrário de tudo isto ou umas reticências cortantes

segue pelo caminho onde poderás caminhar ao longo deste século
e de outro por vir com novas ciências           
sem nunca cessar        sem qualquer promessa
mas onde ao longe consegues vislumbrar uma fogueira
onde queimarás todas as roupas que a pressa das horas te ofereceu desbotadas


domingo, 20 de julho de 2014

América

pelas calçadas de espinhos deambula um homem espelhado
de origem e ares insuspeitos, com o peito inflado e recto
e na cabeça um mar inteiro vai abraçando violentamente navios voláteis,
            originais e abjectos,
            imponentes em suma,
ideais para a descoberta de tesouros novos,
mas que transportam ideias escravas do medo imposto pelo ídolo criador,
            vergadas por uma moral pirateada
            e afundadas pelos caprichos dos ponteiros cada vez mais urgentes
e descrentes da sua exactidão
 – como aqueles relógios do Dalí.

esta é, assim e derradeiramente, a sinopse deste poema agora revelado.
mas, afinal, quem sou e quem és tu?
Somente protótipos de exploradores falhados

como Colombo, eu reclamo como sendo meus estes versos e esta ideia
apenas pela casualidade de nunca ninguém com eles se ter deparado.

a ti cabe-te a prazerosa e intelectual tarefa da chacina.
mata as diversas possibilidades que este verso deixará em aberto
e as poucas que poupares converte-as à tua fé.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A filosofia das pedras

as pedras guardam segredos de uma filosofia extinta,
de um tempo precedente aos indícios moleculares de vida,
no qual as noites e os dias se abraçavam,
sem a dor de qualquer significado incorporado.

quantos sábios já se refugiaram nas montanhas?
eremitas, chamamos-lhes. loucos depois,
porque a linguagem sibilante das pedras enfeitiça.

as pedras comportam dentro de si a sabedoria do tempo,
a complacência:
assumem-se como a única possibilidade da eternidade.

penso em quantas mãos já terão segurado esta ou aquela pedra
            quantas histórias,
            quantos gestos,
            quantos ofícios,
um artefacto de morte em última análise.

a filosofia morreu, mas ficaram as pedras.
o que me entedia em nós é já não termos a força
para esculpirmos a mente ou um minério.

o barro é mais maleável
- um mundo faz-se em seis dias
e desfaz-se num sopro.

as pedras não pertencem ao mundo.
as pedras não pertencem ao fundo dos rios
que um dia, também eles, se hão-de extinguir,
assassinados pela nossa sede,

porque apenas precisamos de água, de alimento, de roupas
e de outras tantas coisas que assumem formas transitórias,
que sempre se decompõem noutra coisa qualquer.

uma pedra é concreta. os seres são abstractos:
estágios de um pó vindouro
que também cobre as pedras
e a filosofia
e essas merdas todas.

quem me dera ser uma pedra
e ter uma filosofia mais primordial e genuína dentro de mim,
para que assim não tivesse de escrever tanto e dizer tão pouco.

aliás, gostava de não necessitar de te dizer nada,
apenas pelo facto de também tu seres uma pedra.

poderíamos rir-nos os dois
e o mundo ser-nos-ia totalmente indiferente.
o seu pó não significaria nada
e retiraríamos com um chuto cada homem do nosso caminho.

sábado, 7 de junho de 2014

A Cor do Horto Gráfico


rouba e ama a força dos monstros que te perseguem à noite
insurge-te contra todas as formas de paz
acorda violentamente todos os pecados que nunca cometeste
por medo de te tornares o animal carnívoro
que reside na tua raiva passiva
e que nutres secretamente à revelia de olhos terceiros

rasga todas as fotografias que te mentem dizendo quem foste
e elimina todas as últimas correntes que te prendem aos lugares comuns

parte à descoberta das tuas próprias metáforas incandescentes
queima-te com elas e incendeia esse lugar depois
parte outra vez sem rumo
sem o fumo que te lembre o teu passado sedentário e herbívoro
corrige a cor do horto gráfico que plantaram na tua essência
com o caroço podre da sapiência que Adão sonhou para ti




sexta-feira, 9 de maio de 2014

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A olho nu

I

estes versos não estavam previstos,
foi a noite quem mos mostrou.

saí para fumar um último cigarro
e no manto negro nocturno límpido de nuvens
as estrelas sorriram-me muito,
como se me esperassem: sentinelas da meia-noite,
que vigiam os passos dos meus fantasmas mais secretos.

estes versos não estavam previstos,
sobretudo porque me cansei deles.

mas a noite aguardava-me calma,
apaziguadora, como o ventre de uma mãe suprema
que canta para o seu filho até que ele adormeça.
acordei. o sorriso das estrelas encheu-me os olhos
enquanto rodei sobre os meus pés, na tentativa de fixá-las todas.

estes versos não estavam previstos,
não fosse o brilho que hoje trazias vestido.

de entre todos os corpos celestes, elegi-te,
nomeei-te, enquanto o cigarro morria nos dedos,
enquanto os meus olhos calculavam a nossa distância.
anos-luz a separarem-nos, outras coisas tantas,
porque, no entanto, as estrelas não têm dono e os olhos dão-se à cegueira.

depois regressei ao quarto onde agora escrevo
e tu permaneceste lá fora,
onde te localizei numa constelação que inventei.

quando adormecer, quando tiver acabado de matar este poema
que eu gostava que te espelhasse um pouco,
espero que alguém, no meio da madrugada,
se embebede também de ti, para com isso construir uma utopia,
mas, no entretanto, não te esqueças que te vi primeiro.

não te esqueças que este poema é o esquiço metafórico
onde a traço largo anotei a tua força gravítica.

II

regressei ao abraço da noite exterior, mas já não te encontrei.
entre todas as estrelas, já não te passeavas…
talvez tenhas migrado para o céu de um outro hemisfério,
onde olhos menos pretensiosos te procuram.

se te cruzares com os meus fantasmas, enfeitiça-os,
para que regressem à cama solitária do meu naufrágio,
onde o meu desencanto em forma de astrolábio prova a tua impossibilidade.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Projecto de Sucessão - Guião Literário

Projecto de Sucessão
por
André Correia, André Guerra e Vasco Oliveira


Baseado nas seguintes obras:
"Aprender a Rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares;
"Fausto", de J. W. Goethe;
e "Ulisses", de James Joyce



Toda propriedade intelectual aqui explícita pertence aos guionistas
(André Correia, André Guerra e Vasco Oliveira),
assim como ao próprios autores das obras supramencionadas.




PRIMEIRA SEQUÊNCIA - O ENTERRO DE LENZ BUCHMANN

PRIMEIRA CENA - A DESPEDIDA ÍNTIMA

LOCALIZAÇÃO: quarto de Lenz Buchmann; uma cama vazia; a televisão ligada.

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann e Gustav Liegnitz

DESCRIÇÃO DA CENA:

Fundo negro. Aparece gradualmente o penúltimo verso do poema "Projecto de Sucessão", de António Maria Lisboa:

"ABRIREM-SE COVAS E ESQUECEREM-SE OS DIAS"

A janela do quarto permite a entrada de alguma luz outonal. Pouca. Fria. Ilumina de forma ténue os poucos objectos que ornamentam o espaço. A cama vazia, onde Julia viu, dia após dia, o corpo de Lenz Buchmann ceder à doença.

As lembranças envolvem amargamente Julia, que com um olhar petrificado permanece a um canto onde a luz não chega. Um corpo imóvel, mergulhado num tempo passado. Com a sua mão direita, segura e contempla a folha em que estava escrito o nome de Friederich Buchmann. Como um amnésico que redescobre o seu nome, Julia sente nesse momento o peso do legado de família que agora carrega. A televisão está ligada. No entanto, a única imagem que persiste naquele quarto é a de Lenz. Julia permanece assim durante algum tempo, como se aquela folha de papel fosse um espelho que lhe revela agora uma projecção distinta de si mesma.

Subitamente, Gustav irrompe pelo quarto. Essa chegada imprevista e brusca interrompe o fluxo de consciência a que Julia estava entregue há já largos minutos. Gustav exprime, à sua maneira, que está na hora de sair. Os ponteiros do relógio estão unidos, marcando o meio-dia. Faltam duas horas para o enterro de Lenz Buchmann. Gustav tem vestido o fato negro que Lenz Buchmann usou no dia em que o partido ganhou as eleições.

Julia acena com a cabeça. Gustav abandona o quarto e desce as escadas; espera pela irmã que, naquele quarto, se despede verdadeiramente de Lenz. Como quem se despede primeiro do significado, para só depois enterrar a palavra. No entanto, Lenz Buchmann era um significado forte, sonante, indelével.

Finalmente, Julia desce as escadas. A despedida íntima estava feita. Partiam agora para o cemitério, para a
despedida pública.

SEGUNDA CENA - DESCIDA AO HADES

LOCALIZAÇÃO: cemitério

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann, Gustav Liegnitz, Hamm Kestner e Padre

DESCRIÇÃO DA CENA:

As nuvens cinzentas pairam sobre o cemitério. Algumas pessoas, desinteressadas das palavras do padre, olham para os céus. Não em busca de um deus ou de uma salvação, mas sim na tentativa de perceber se já era a hora de abrir os guarda-chuvas.

Hamm Kestner está junto de Julia. Gustav, mais afastado, lançava olhares indiscretos para as viúvas. Nunca havia conhecido intimamente uma mulher, mas imagina esse momento. Anseia profundamente. Mais atrás, as restantes pessoas vão comentando os assuntos e as intrigas da cidade. O próprio padre parece pouco convicto das palavras que profere, cumprindo aquele ritual de forma autómata.

A chuva apressa-se e precipita-se por fim. As pessoas esperam de forma ansiosa, mas contida, pelo final do
enterro. Em fila, colocam ramos de flores sobre a urna, que dentro de alguns minutos descerá para sempre. Julia, em vez de flores - natureza morta - coloca sobre o caixão o bisturi que Lenz manuseava com destreza. Algo que não será devorado pelos vermes, símbolo máximo da precisão e da eficácia.

Depois da urna já ter sido descida, a população cumprimenta Julia e expressa, com o rosto e com as palavras, condolências quase sinceras. Ao passar por Kestner, mudam a expressão do rosto, mostram-se fortes; vivos. Lançam-lhe duas ou três palavras e esperam como mendigos uma pequena retribuição. Depois retiram-se por fim. Todos. Até o padre. No cemitério apenas restam agora os irmãos Liegnitz e o presidente do partido, Hamm Kestner.

Gustav está a alguns metros de distância, parado diante do local onde havia sido sepultado o louco Rafa. Nesse momento, Hamm Kestner, olha naquela direcção e fica pensativo. Pergunta a Julia se esta sabia a forma como realmente tudo tinha ocorrido na noite em que Rafa e Maria, ex-mulher de Lenz Buchmann, morreram. Fala-lhe do assassinato, da forma como Lenz posicionou estrategicamente os cadáveres, assim como da sua atracção por situações abjectas. Julia não responde.

Hamm Kestner muda de tema. Diz-lhe que o partido precisa dela. Diz-lhe que ela é agora a mão direita de Lenz Buchmann. Julia não responde.

Hamm Kestner pergunta, por fim, quantos meses faltam. Julia responde: três. O líder do Partido acrescenta que há-de nascer forte como o pai. Julia não responde novamente.

Gustav aproxima-se deles e, juntos, abandonam o cemitério vagarosamente.

TERCEIRA CENA - A CASA DE MEFISTÓFELES

LOCALIZAÇÃO: reino do inferno

PERSONAGENS PRESENTES: Lenz Buchmann e Fausto

DESCRIÇÃO DA CENA:

Plano pormenorizado do rosto de Lenz Buchmann, que se encontra de olhos fechados. Subitamente, abre-os. Parece perdido. Olha em volta e examina o local onde se encontra. Um enorme salão, ornamentado com vários elementos de talha dourada, tapetes e bricabraques persas. O chão está pavimentado com azulejo axadrezado. À primeira vista, parece-se muito com uma loja maçónica, em que Lenz havia estado uma vez.

Talvez alguém o tivesse levado para ali, foi isso que pensou num primeiro momento. Depois, diante de si, no fundo do salão, está um trono vazio. Ao lado esquerdo desse trono encontra-se um homem. Lenz observa meticulosamente essa figura, como sempre faz quando se depara com um desconhecido: um novo inimigo talvez.

Esse homem não o olha. Parece indiferente à sua presença. Lenz aproxima-se então. Ao contrário do que lhe é habitual, demonstra algum receio nos passos e isso deve-se ao facto de não conhecer o solo que pisa nesse momento. Contudo, quando chega perto desse homem, recupera a tranquilidade. Percebe que ele não poderá constituir um inimigo. Aquele homem é cego. Então, após recuperar totalmente a sua força, Lenz pergunta assertivamente ao homem que lugar é aquele. Ele responde-lhe que aquela é a casa de Mefistófeles, também conhecida como o inferno. Lenz parece de novo sobressaltado. Olha todo o espaço em seu redor outra vez. Engole em seco. Reúne alguma força e lança-lhe outra questão. Pergunta àquele homem se ele é o próprio Mefistófeles. Ele responde-lhe que não. Aquele homem chama-se Fausto: o Doutor Fausto.

Onde está então o teu amo?, pergunta Lenz a Fausto. Este, com o seu olhar vítreo e petrificado que nada pode já enxergar, diz-lhe que Mefistófeles saiu e convida-o a sentar-se. O amo ainda deve demorar. Foi para a caçada.

Lenz, confuso, mas sem outra solução, acaba por se sentar. Não em nenhuma das doze cadeiras, organizadas em duas filas de seis, que estavam dispostas em lados opostos do salão. Mas Lenz não nasceu para apóstolo, nasceu para Messias.

Senta-se no trono de Mefistófeles e aguarda. Fausto, com a ajuda da sua bengala, retira-se do salão, mas não sem antes apagar todas as velas dos candelabros que iluminavam aquele espaço.

Lenz fica sozinho, sentado no trono, também ele momentaneamente cego num reino de trevas.

QUARTA CENA - A NOITE QUE CAMINHA DENTRO DOS CORPOS

LOCALIZAÇÃO: ruas da cidade

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann; Gustav Liegnitz e Mefistófeles

DESCRIÇÃO DA CENA:

Julia e Gustav caminham agora pelas ruas da cidade, em direcção a casa. Gustav prossegue alguns metros à frente de Julia, que parece mergulhada num mar de pensamentos revoltos e que aniquilam a sua serenidade. Pensa nas palavras de Hamm Kestner. As imagens de Maria Buchmann e do louco Rafa ensanguentados e caídos inanimados no chão não lhe saem da cabeça.

Julia tenta arranjar uma explicação que levasse Lenz a ter cometido aqueles crimes, pois está certa de que ele deve ter tido os seus motivos. Julia nem por um momento censura Lenz através dos seus pensamentos, apenas procura um encadeamento lógico, pois sabe que o homem com que casou, já nos seus últimos meses de vida, tinha para todos os seus actos um motivo. Acção-reacção. Julia reage. Olha as fachadas tristes das casas, que os postes de iluminação pública tornam mais lúgubres.

Subitamente, Gustav detém-se a olhar para uma casa. Julia assoma-se dele e pára também. Contemplam a sua antiga casa: a casa da família Liegnitz. Julia acaba por dizer ao irmão:

JULIA LIEGNITZ BUCHMANN
(PARECENDO INDIFERENTE)
Tenho um comprador em vista...
Havemos de vendê-la!

Retoma a sua caminhada e agora é Gustav quem segue mais atrás, parecendo mais cabisbaixo. As ruas sucedem-se. São neste momento seis de tarde, mas está escuro. Um dia de verão atípico. A chuva e um eclipse previsto nas notícias, tornam este dia soturno, ocultista.

Chegam por fim a casa. Num plano aproximado vemos a placa onde estão inscritos os nomes da linhagem Buchmann. Julia olha-a durante uns segundos e, depois, pede a Gustav, que retirava as chaves do portão do bolso das calças, para que proceda a mais uma mudança naquela placa. Gustav olha-a surpreendido. Deve agora inscrever o nome de Julia e do seu filho vindouro naquela placa e apagar o nome de Maria Buchmann.

Nesse momento, Julia diz a Gustav que o seu filho se chamará Zaratustra. Gustav não percebe a escolha do nome e sente que já não é capaz de entender as decisões da sua irmã. Semicerra os olhos, suspira e abre finalmente o portão. Os irmãos entram.

A alguns metros da casa, encostado a um poste que vai iluminando e falhando intermitentemente, encontra-se Mefistófeles, que observava os irmãos. Depois de apagar, com a ponta do sapato, um cigarro que fumava, expele o fumo pelas narinas e sorri.

SEGUNDA SEQUÊNCIA - A HUMANA DESUMANIZAÇÃO

QUINTA CENA - DOBRAR O CABO DAS TORMENTAS

LOCALIZAÇÃO: escritório da casa de Lenz Buchmann

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann

DESCRIÇÃO DA CENA:

(DOIS MESES APÓS A MORTE DE LENZ BUCHMANN;
 UM MÊS PARA O NASCIMENTO)

Julia está sentada junto à secretária. A sua barriga, de oito meses agora, restringe-lhe já bastante os movimentos. Encontra-se fechada no escritório há mais de uma hora. Debruçada sobre um pequeno bloco de notas preto, com os cotovelos apoiados no tampo da mesa, parece debater-se com pensamentos demasiado fortes.

Suspira. Cerra os olhos e dirige-se até à janela. Fica pensativamente a observar as pessoas que passam na rua, mas o seu olhar está baço.

Por fim, um automóvel pára em frente ao portão. Julia percebe que deve ser o comprador para a casa da sua família. Puxa a cortina, diminuindo a entrada de luz. Recompõe a roupa e a expressão do rosto. Dá alguns passos assertivos sobre o soalho de madeira e abandona o escritório, trancando a porta ao sair.

O bloco de notas ficou aberto e esquecido sobre a secretária. Num plano aproximado, percebemos o que estava escrito nessa página. Alguns desejos e instruções que Lenz deixou a Julia antes de morrer:

- Zaratustra chamar-se-á o nosso filho
- Vende a casa da tua família
- Mata o teu irmão
- Torna-te uma verdadeira Buchmann
- Mata Hamm Kestner e assume a liderança do partido
- Nunca entres na biblioteca

SEXTA CENA - A RETÓRICA DE MEFISTÓFELES

LOCALIZAÇÃO: sala de estar

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann, Mefistófeles e Gustav Liegnitz (que aparece apenas a sair de casa)

DESCRIÇÃO DA CENA:

Na rua, Mefistófeles, usando umas calças negras, sapatos italianos lustrados e uma jaqueta vermelha, faz soar três vezes a campainha. Ninguém aparece, no entanto ele havia visto Julia à janela quando chegou. Finalmente, de dentro de casa, sai Gustav, que deixa a porta aberta e se dirige para abrir o portão. Abre-o e com um olhar flamejante de ira fita directamente Mefistófeles. Gustav sabe que aquele é o comprador da casa da sua família e que hoje vem reunir com Julia para assinar o contrato de venda. Mefistófeles aguenta o olhar de Gustav, sorri, apresenta-se e estende-lhe a mão. Gustav vira-lhe as costas e caminha ao longo da rua, até dobrar a esquina e desaparecer, como quem foge nervosamente.

Mefistófeles fica a vê-lo afastar-se e depois entra. Fecha o portão, sobe umas pequenas escadas e entra, pela primeira vez, na casa dos Buchmann, fechando também a porta. Num plano aproximado, ainda do exterior, vemos a placa com os nomes já alterados: Julia e Zaratustra já constam ali.

Já no interior da casa, ao mesmo tempo que Mefistófeles entra, Julia vem a descer as escadas. Ele dirige-se até ela e beija-lhe a mão fria e branca. A expressão de Julia permanece inalterada e dirigem-se então para um salão, onde Lenz costumava receber os mais importantes líderes do partido. Julia diz a Mefistófeles para que se sente e aponta-lhe uma cadeira, estilo Luís XV. Pergunta-lhe se quer tomar alguma coisa e, sem esperar por uma resposta, verte um pouco de whisky num copo largo que lhe serve. Julia não bebe nada, por causa do bébé. Mefistófeles agradece, Julia senta-se também e começam a conversar.

Mefistófeles, apresenta-se como Dr.Ari, um judeu alemão, rico, que se tinha mudado há algum tempo para a cidade para exercer a profissão de médico. Disse a Julia que muitos dos seus pacientes lembravam Lenz com saudade. Acrescentou ainda que o hospital planeia erguer uma estátua em sua homenagem. Julia começa a mostrar-se mais interessada na conversa e na forma como aquele homem discursa. Parecia ter um encanto nas palavras.

Finalmente, levantam-se para assinar o contrato, que o próprio Mefistófeles havia trazido, dizendo ter sido preparado pelo seu advogado. Julia nunca havia celebrado um contrato e confiou na seriedade daquele homem, que já começava a ser respeitado em toda a cidade. Ainda assim, Mefistófeles insistiu para que Julia lesse o contrato, pois para ele os compromissos escritos significam tudo. Julia fez uma leitura diagonal e assinou o seu nome em baixo. Mefistófeles assina também o seu nome. Cumprimentam-se e depois Julia acompanha o convidado até à porta. Mefistófeles veste a jaqueta que havia deixado pendurada no bengaleiro, assegura que voltará em breve com uma cópia do contrato e, sorrindo, sai. Julia despede-se, fecha a porta com delicadeza e dirige-se novamente para o escritório.

Volta a olhar para o bloco de notas que havia deixado aberto e agora sente-se decidida. Um dos desejos de Lenz Buchmann está cumprido e chegou agora a hora de cumprir um outro. Talvez o mais complicado de todos eles. A conversa com Mefistófeles parece ter dado um novo vigor a Julia.

Na rua, já no interior do carro, Mefistófeles olha com satisfação o contrato que havia acabado de conseguir. Julia não havia vendido apenas a casa da família Liegnitz; havia vendido também a própria família. Os Liegnitz pertencem, de agora em diante, ainda que sem saber, a Mefistófeles.

O automóvel arranca e vêmo-lo afastar-se.

SÉTIMA CENA - ULISSES

LOCALIZAÇÃO: um antigo e frequentado bar da cidade

PERSONAGENS PRESENTES: Gustav Liegnitz, Mefistófeles, Leopold Bloom e Penélope

DESCRIÇÃO DA CENA:

Gustav vagueia pelas ruas da cidade. A noite já caiu. Afastou-se de casa envolto em pensamentos, para mergulhar numa guerra interior. O rosto de Mefistófeles não lhe sai do pensamento. Por fim, entra num bar da cidade.

Um quarteto de jazz vai animando o serão. O ambiente é burlesco. Sentados em mesas com taças de champanhe, alguns dos homens mais importantes da cidade divertem-se com as coquettes. Numa dessas mesas, está Mefistófeles, que todos conhecem como Dr.Ari, acompanhado por um outro judeu, de nacionalidade irlandesa, que dá pelo nome Leopold Bloom. Estão rodeados de mulheres. O Sr. Bloom mudou-se para a cidade, depois de se ter divorciado da esposa e ter abandonado um país que nunca sentiu ser o seu. Conheceu Mefistófeles também num bar, em Dublin.

Gustav entra, pede uma bedida e senta-se numa cadeira alta, de frente para o balcão. O seu olhar está perdido.

[ANALEPSE: SOMOS LEVADOS ATÉ AO DIA EM QUE O SR.BLOOM
CONHECEU MEFISTÓFELES]

Leopold está sentado numa cadeira alta de frente para o balcão. Vai afogando as suas mágoas no álcool. Pensa no seu casamento falhado, na sua filha que está longe, na mulher que o trai e, sobretudo, no seu filho que morreu.

Mefistófeles entra no bar e senta-se ao seu lado. Alguns copos depois, com a conversa já adiantada, Mefistófeles pergunta-lhe o que gostaria de ter na sua vida. Leopold responde que gostava de encontrar uma mulher que o amasse, de conhecer a sua pátria e de voltar a ver o seu filho. Mefistófeles promete-lhe tudo isso e ali celebram um contrato. Desde então, Mefistófeles tem proporcionado ao Sr.Bloom todos os prazeres da vida. Levou-o a conhecer Israel e agora viajam pelo mundo. Quando a felicidade plena do Sr. Bloom estiver consumada, Mefistófeles será o dono da sua alma. No entanto, o judeu irlandês ainda não está satisfeito. Falta-lhe ainda recuperar o seu filho. Mas Mefistófeles tem uma solução em mente para isso.

[DE REGRESSO À ACÇÃO PRINCIPAL]

Gustav olha em seu redor e a um canto reconhece Mefistófeles, alegre, rindo alarvemente. Pousa o copo já
vazio do conhaque e dirige-se, com passos determinados de um bêbedo, na direcção do seu oponente. Com o seu punho cerrado atinge o rosto sempre sorridente de Mefistófeles. A confusão instala-se no bar. Alguns homens agarram Gustav e tentam colocá-lo na rua. Mefistófeles detem-nos. Diz-lhes para que o deixem ficar e convida Gustav a sentar-se na sua mesa. Leopold Bloom parece assustado, mas rapidamente se volta a concentrar nas mulheres que o rodeiam.

Mefistófeles quer saber o motivo da raiva de Gustav e pergunta quais são os seus maiores desejos. Gustav, pensando que Mefistófeles estaria a gozar com facto de ele ser surdo-mudo, preparava-se já para desferir outro golpe, mas subitamente percebe que é capaz de ouvir. Fica incrédulo e extasiado. Mefistófeles sorri e faz sinal a uma das acompanhantes para que realize todos os desejos de Gustav. Ao contrário do que sempre faz, Mefistófeles não apresentou nenhum contrato a Gustav, pois o seu prazer será curto. Além disso, assinou um contrato com Julia que também abrange o seu irmão.

Eram quase duas da manhã quando Gustav, embriagado, abandona o bar, acompanhado de uma mulher. Mefistófeles e Leopold Bloom permanecem.

Gustav regressa agora a casa, fazendo o percurso inverso através da cidade. Dez anos parece demorar aquele percurso, mas sente-se triunfante, um herói, e segue acompanhado de uma prostituta espanhola chamada Penélope.

TERCEIRA SEQUÊNCIA - TODOS OS NOMES SE VÃO

OITAVA CENA - CAIM

LOCALIZAÇÃO: casa da família Buchmann

PERSONAGENS PRESENTES: Gustav Liegnitz, Penélope e Julia Liegnitz Buchmann

DESCRIÇÃO DA CENA:

Gustav abre a porta de casa, depois de se debater para acertar com a fechadura. Entra, juntamente com a sua acompanhante: Penélope. No andar cimeiro, Julia, ainda no escritório, houve vozes no piso inferior. Fica assustada. Gustav fala imenso, sente-se como um pássaro, com a necessidade de chilrear. A primavera chegou para ele.

Julia desce, a custo, por causa do peso que carrega no ventre, até meio das escadas. Percebe que se trata do seu irmão e de outra mulher. Volta para o escritório, fecha o bloco de notas que ainda permanecia aberto e percebe que este é o momento para executar o terceiro pedido de Lenz Buchmann que consta naquela lista: matar o próprio irmão e pôr fim à família Liegnitz. O nome de Gustav Liegnitz teria de ser apagado pela segunda vez. Guarda o bloco de notas numa gaveta, de onde tira também um revólver.

Gustav e Penélope estão envolvidos no sofá, despidos. No entanto, por estar embriagado e por nunca ter estado com uma mulher anteriormente, Gustav não consegue consumar o seu desejo de a possuir. Fica frustrado. Começa a gritar com aquela mulher, cospe-lhe na cara e ordena-lhe que saia de sua casa. Agarra-lhe no braço e leva-a brutamente até à porta. Fecha a porta estrondosamente e, ao virar-se, depara-se com a sua irmã. Tenta tapar o seu corpo nú, mas Julia não hesita. Agarra no revólver e aponta-o ao peito do seu irmão. Gustav implora piedade. Julia fecha os olhos e dispara. Foi a primeira e a última vez que ouviu a voz do seu irmão.

O corpo de Gustav Liegnitz cai inanimado no chão.

NONA CENA - CÓPIA DO CONTRATO

LOCALIZAÇÃO: rua e sala de estar

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz, Mefistófeles e Leopold Bloom.

DESCRIÇÃO DA CENA:

Passa um pouco das quatro horas da manhã. Julia abre a porta de casa e arrasta consigo um enorme saco preto, onde dentro se encontra o cadáver de Gustav. Um esforço sobrehumano para uma mulher a entrar no ciclo final de gravidez, mas Julia é já um ser desumanizado. Sem emoções visíveis, é agora alguém que demonstra forças que um corpo tão delicado e frágil parece não poder permitir. Pára por vezes para recuperar as forças, mas depois retoma. Daqui a uma meia hora passa o camião que faz a recolha do lixo. Julia tem de ser rápida a arrastar o corpo de Gustav até ao contentor mais próximo, que se encontra a uns dez metros da casa da família Buchmann.

Antes de sair para a rua, já com o portão aberto, Julia verifica se a rua se encontra vazia. Fica com a sensação de ter escutado um pequeno ruído, mas nada se insurge à sua vista. Agarra novamente no saco e, de forma lenta, consegue por fim chegar até ao contentor do lixo. Começa a sentir dores demasiado fortes, mas não tem tempo para pensar nelas agora.

Com muito custo, consegue levantar o saco do chão e depositá-lo juntamente com a basura. Acabei de colocar o nome Liegnitz no lixo, pensou. As dores acutilantes permanecem, aumentam até. Dirige-se, com passos cambaleantes, novamente para casa. Fecha o portão, sobe umas pequenas escadas, entra em casa e fecha a porta.

Atrás do contentor do lixo, escondido, estava um homem, que agora observava Julia entrar em casa.

Quando entra em casa, a respirar ofegantemente, a tentar controlar as dores, sobe as escadas com muito custo. Necessita de ligar urgentemente ao Dr.Ari, que é agora o melhor médico da cidade, conhecido pela sua mão esquerda quase milagrosa. Já no andar cimeiro, Julia dirige-se para o escritório. Quando entra, depara-se com Mefistófeles (Dr.Ari). Fica atónita por o encontrar ali, não percebe o que se está a passar, embora estivesse precisamente a precisar da sua ajuda. Mefistófeles sorri. Julia pergunta-lhe o que faz ali e ele diz-lhe que, como havia prometido, veio trazer a cópia do contrato. Encontrou a porta da rua aberta e decidiu entrar. Mefistófeles, que estava sentado no cadeirão junto à secretária, que em tempos foi ocupado por Lenz, rapidamente se levanta, insistindo para que Julia se sente.

Ao sentar-se, Julia percebe que lhe rebentaram as águas. Zaratustra quer nascer. Ali. Agora. Mefistófeles, tira a jaqueta, arregaça as mangas e prepara-se para fazer o parto. Pede a Julia que se acalme, depois de já a ter deitado no chão. Mefistófeles não sorri enquanto isto, está apenas concentrado no seu trabalho, como uma máquina. As dores que Julia sente são um crescente de tortura, até que por fim culmina com um grito cortante para os sentidos de qualquer ser humano. O seu filho nasceu. Mefistófeles levanta-se com o recém-nascido nos braços e Julia, no chão, contempla, com os olhos semicerrados, pela primeira vez o seu primogénito.

Mefistófeles recupera o sorriso. Julia pede para que ele lhe mostre o seu filho mais de perto, mas Mefistófeles, secamente, diz-lhe que aquele bébé não lhe pertence. Julia não percebe, sente medo, mas não tem forças para se defendera si ou ao seu filho. Mefistófeles pergunta-lhe onde está Gustav e Julia diz que ainda não voltou desde que saiu durante a tarde. No entanto, Mefistófeles diz que o encontrou no bar da cidade. Julia confessa então o crime e nesse momento sente remorsos. Diz:

JULIA LIEGNITZ BUCHMANN
(COM A VOZ FRACA)
Matei o meu irmão!... Matei Gustav
Liegnitz, a continuação do meu pai no mundo...

Mefistófeles diz-lhe que sim, que ela matou o seu irmão, mas não o seu pai. Conta-lhe a verdadeira história sobre a morte do primeiro Gustav Liegnitz. Diz-lhe que foi Friedrich Buchmann quem matou o seu pai, em tempos de guerra. Julia sente-se caída num poço do qual não pode jamais sair. Aliou-se à família que matou o seu pai e ela própria matou o seu irmão. Pede a Mefistófeles que a mate e que mate o seu filho também. Roga ao estranho Dr.Ari que o faça, é a única saída. A família Liegnitz desapareceu no mundo e está na hora da família Buchmann ser irradicada também. Mefistófeles, pousando o bébé que não parava de chorar, explica-lhe depois que essa não é uma escolha dela e mostra-lhe a cópia do contrato. Julia tinha vendido a sua família a Mefistófeles. Ele é agora o dono do destino tanto de Julia como daquela criança.

Mefistófeles, abre a gaveta da secretária, retira o bloco de notas e o revólver com que, há pouco mais de uma hora, Julia havia disparado sobre o irmão. Abre o bloco de notas, observa a lista de pedidos de Lenz e, virando-se para Julia, diz:

MEFISTÓFELES
A nossa sina é sempre cumprir os desejos de outros... 

Pega no revólver e dispara sobre Julia. Arrasta o seu cadáver para a biblioteca de Lenz Buchmann, na qual consegue entrar sem qualquer problema, apesar de ela estar trancada há quase um ano. Depois de incendiar a biblioteca com o cadáver de Julia lá dentro, agarra no bébé e abandona a casa.

Na rua, o homem que observou Julia entrar em casa é, afinal, Leopold Bloom. Mefistófeles entrega-lhe o bébé e diz-lhe:

MEFISTÓFELES
Aqui tens o teu filho!

Leopold Bloom agarra no bébé e embrulha-o numa manta que trazia consigo. Afasta-se do local, caminhando ao longo da rua numa marcha urgente e apavorada.

Mefistófeles permanece ali, assistindo impavidamente à cremação dos nomes e dos significados que ocorre diante de si.

DÉCIMA CENA - MEFISTÓFELES REGRESSA A CASA

LOCALIZAÇÃO: reino do inferno

PERSONAGENS PRESENTES: Mefistófeles, Lenz Buchmann e Fausto

DESCRIÇÃO DA CENA:

Mefistófeles regressa aos seus domínios. Ao entrar, faz acender todos os candelabros. Repara que Lenz está a dormir, sentado num trono que não lhe pertence. Com um estalar de dedos, Fausto aparece. Ordena-lhe que acorde Lenz. O outrora médico e político, ao abrir os olhos, percebe que diante de si está uma criatura não-humana. Uma criatura com uns enormes chifres e com um corpo flamejante: assim é a verdadeira forma de Mefistófeles quando se encontra em casa. O velho e ardiloso demónio aproxima-se de Lenz e ordena-lhe que se levante do trono. Lenz, assustado, levanta-se e cede-lhe o lugar. Depois, Mefistófeles ordena-lhe que se ajoelhe perante si. Com Lenz Buchmann já prostrado de joelhos, o demónio diz-lhe que o seu filho Zaratustra e Julia morreram. Lenz Buchmann chora, como não acontecia desde a morte do seu pai.

Enquanto isto Mefistófeles comenta com Fausto, que se encontra ao seu lado, compadecido de Lenz Buchmann, apesar de não conseguir ver o seu rosto de sofrimento:

MEFISTÓFELES
Impedi que Zaratustra, o
Além-Homem, se fizesse!... Talvez
seja merecedor de um lugar no céu.

E desata a rir às gargalhadas, bebendo depois por um cálice dourado um pouco de licor Feni.

A imagem desvanece-se, torna-se num fundo negro, onde surge agora o último verso do poema "Projecto de Sucessão", de António Maria Lisboa:

"BEBER-SE POR UM COPO DE OIRO E SONHAREM-SE ÍNDIAS."

QUARTA SEQUÊNCIA - TELÉMACO

DÉCIMA PRIMEIRA CENA - ESTÁTUA DE NINGUÉM

LOCALIZAÇÃO: ruas da cidade, junto ao hospital

PERSONAGENS PRESENTES: Leopold Bloom, Rudy e Mefistófeles

DESCRIÇÃO DA CENA:

(DEZ ANOS DEPOIS)

O Sr. Bloom, há já vários meses doente, passeia pela cidade com o seu filho, que dá pelo nome de Rudy. Este era também o nome do seu primeiro filho varão, que tivera durante o casamento com Molly.

Os passos de Leopold Bloom são arrastados; em oposição, Rudy é um rapaz bastante forte e que agora segue ao lado do seu pai, como se tratasse de um apoio para lhe auxiliar a caminhada. Várias pessoas que passam por eles ficam perplexas com o estado de decadência em que Leopold está mergulhado.

Ao passarem diante do hospital, junto à estátua que Hamm Kestner, o mais alto representante da cidade, mandara edificar em homenagem a Lenz Buchmann, Rudy pára. Fica a observar a imponência e o ar majestoso daquela figura de mármore. Pergunta ao seu pai quem havia sido aquele homem. O Sr. Bloom, levantando os olhos do chão, responde-lhe: Ninguém importante!...

Mas Rudy fica parado, a olhar durante mais alguns instantes para aquela estátua. Leopold segue a sua marcha lenta, como quem carrega a sua própria cruz. Mais uma pessoa cruza-se com ele e cumprimenta-o. O Sr. Bloom não retira os olhos do chão. A pessoa que o cumprimentou pára e toca-lhe no braço. O Sr. Bloom fita então o rosto da pessoa que se deteve para lhe falar. É Mefistófeles que, retirando um chapéu claro de corte italiano, lhe diz:
MEFISTÓFELES
Como tens passado, meu velho amigo?
As cláusulas foram cumpridas, temos
um contrato para consumar!...

Quando Rudy volta a olhar na direcção daquele que julga ser o seu pai, já não o encontra. Num plano que se vai afastando e elevando vemos aquela pequena criança sozinha, sentindo-se perdida, atravessar a rua e sentar-se ao lado da estátua do seu pai.