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segunda-feira, 30 de abril de 2012

morte aos monstros!




o frio agarrado ao meu peito e às minhas memórias,
o erro colado aos meus pés indecisos e desnorteados.
a rua a abarrotar por todos os lados espectros só meus,
porque fui eu quem os moldou e os manteve por perto,
quem lhes deu nome e o poder  mais cruel e impossível.

e eles riem, eles galopam, eles elevam ao quadrado
o total do meu medo. arrasto o branco do cortinado
e tapo o negro da noite lá fora. mas eles não desistem,
sempre se deram tão bem no sótão da minha lembrança.

as minhas certezas de outrora agora em pedaços,
como a fotografia que trago no bolso metida
e em que tu já não estás e em que eu já não conto.

como poderei fechar eu os meus olhos tranquilamente,
se sei que a minha mente é um lugar de monstros?

(não feches! convence os olhos e faz o poema mudar.)

recupero minha visão. largo os óculos. sou criança
outra vez, embora sinta a lástima de estar ciente disso.

as canções da infância e os sonhos que voaram
da minha mão, papagaios soltos ao vento,
reanimo-os agora e invento o manifesto das cores.

elas colidem, elas mesclam-se, elas conhecem-me
novamente e dão à minha pele um tom iridescente:
um arco-íris a pintar o peão que se aproxima do rei,
a pairar insensível sobre cadáveres nas minhas veias.

o sol a implodir a oito minutos do meu mundo:
a reduzir-se, a ajustar-se, a pertencer ao meu corpo.
os monstros a diluírem-se nas cores e a evaporarem,
tempestades solares nos meus olhos, anéis de fogo
que incendeiam trincheiras de razão dentro de mim.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

dois caminhos




a frase mais reticente de qualquer texto será sempre esta: a primeira… talvez seja pelo seu carácter determinista, pois, segundo os pressupostos, segundo os mais antigos críticos literários, ela será como uma linha condutora – imaginem os cabos da electricidade, que vão de um poste até outro, que permitem a existência de uma iluminação pública competente e extremamente necessária – e dela dependerão todas as seguintes, até que chegue essa última frase em harmonia com todas as precedentes. podes saltar já para ela e avançar todas estas seguintes considerações, não levo a mal se o fizeres. porém, se aguentas esse impulso que agora te suscitei, recomendo-te que não o faças.
acho que é fácil, para ti que me lês, calculares o tempo que perdi a pensar naquela primeira frase –  imagina uma mulher a dar à luz; penso que é simples perceberes a dor de cabeça, tempestade negra e nervosa, que está inerente à redacção daquela simples frase. julgo que percebes que a principal dificuldade de tudo o que conheces está na sua criação, no seu início. por tudo aquilo que já deves ter vivenciado, ou por tudo aquilo que já viste nos filmes do Hollywood ou pelas histórias que te traziam o sono entre mãos quando eras criança e não sabias ainda escrever frases, tenho a certeza que és capaz de perceber. eu sei, tu já escreveste frases. eu sei, tu já não és uma criança. eu sei, este texto está a deambular, mas a electricidade por vezes também falha cá em casa.
            por vezes, imagino o tempo que António Maria Lisboa perdeu a escrever o primeiro verso de um qualquer poema, que ainda não era poema durante esse tempo, ainda não era rigorosamente nada para além de um terramoto interior não referido pelas agências noticiosas. mesmo sabendo que o surrealismo é impermeável à razão de colarinho branco, existe sempre a necessidade de que o primeiro conjunto de palavras funcione quase como uma alavanca e que faça o leitor – tu ou eu – levantar os pés do chão. uma brisa suave na cara, o céu a tornar-se mais próximo. sei que percebes isto. se nunca experienciaste isto ao ler um poema, de certeza que já te sentiste assim depois de um beijo prolongado, depois de um sonho bom, depois de teres pago os impostos no último dia, depois de um cigarro fumado à beira-mar. por tudo isso, imagina a dor de escrever um primeiro conjunto de palavras; imagina o peso de levantar o maior número de corpos que conseguires imaginar, Fernando Pessoa levantou mais do que esses todos que a tua mente concebeu, e isto sem estar a desconsiderar o poder imagético do teu pensamento. percebes agora porque é que a electricidade falha? pois, porque a luz tem bastante peso. achas que posso terminar por aqui?

[decida o rumo deste texto, assim como um título alternativo para ele. basta seleccionar uma das seguintes alternativas]

Versão 1
- não! e pára de te queixar! acende uma vela, acaba este texto e deita-me na nuvem mais próxima.


Versão 2
- sim, podes. vai descansar que bem precisas! pode ser que amanhã reinicies este texto com uma primeira fase melhor e que todo o restante conteúdo se coadune com ela.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

aquela ilha de mulheres de veludo




agora, o sol teve o insano apetite de deitar-se cedo,
de sonhar que era livre e de não ter nas suas costas
o peso da sua luminosidade. hoje apeteceu-lhe dançar
até explodir, abandonar o combate às sombras e aos
pólos hipotérmicos dos corpos. essa foi, pelo menos,
a vontade do meu sol, do significado maleável do meu sol.

ele é minha propriedade, tal como a minha sombra,
tal como esta palavra: esta: e aquela: outra. a palavra
«sol» pertence-me. ninguém lhe atribui um significado
equiparável ao meu, nem alguém pode reproduzi-lo
foneticamente da mesma forma que eu. mutuamente,
pertencemo-nos.

eu e o meu sol sabemos disso, tal como desconfiamos
da rotação constante e venenosa dos ponteiros dos relógios;
eu e o meu sol não temos em posse o instinto secreto
e inexplicável dos corvos, por isso corremos, como crianças,
melodias dissonantes do mundo. como um rio, eu e o meu sol,
dirigimo-nos para o grande lago que reflecte a noite,
que engole as trevas do medo e tranquiliza o seu significado.

nessa lagoa sem barcaças, existem sonhos desfeitos,
existem outros eus e outros sóis. nenhum de nós será eterno,
o veneno sempre trepa, o setembro nunca deixará de existir
e trazer o outono, o seu significado. mas eu e o meu sol
sabemos disso, sabemos dormir e sumir no voo dum quetzal.

atraídos por uma ilha de mulheres de veludo,  nós raptámos
do mundo um tempo, um espaço e um tudo que eu fiz,
embrulhados numa toalha de estampados florais e primaveris.

domingo, 15 de abril de 2012

raios me partam! [a velha bússola tinha bruxedo]


[ESTE]

rodopiamos em torno de algo desconhecido e tentamos manter
aquele sorriso, aquela calma: tarde de domingo, talvez de maio.
não temos tempo para parar, cerrar os olhos e puxar o gatilho:
a bala de prata, a pólvora dos nossos pecados a matar o tempo.

rodopiamos e sentimos a febre do ouro e de bricabraques persas.
lá longe, no Hotel Horizonte, o sol despe mais um dia moribundo
e o mundo a tremer, a temer a noite. o surrealismo morto a gritar,
como um veleiro num oceano de promessas a circundar o monte
da certeza e da fé. homens frios a manipularem robôs colossais,
a suprimirem o púlpito; na rua, crianças que não sabem brincar
improvisam a canção da guerra inútil e implacável de seus pais.
a adolescência, Este, a acabar mas sem morrer: veneno a nascer.

[NORTE]

rodopiamos, como Álvaro de Campos, alucinados pelo futuro,
pela dor de sermos imperfeitos e do baixo alcance da nossa voz.
dizemos um adeus prematuro às aguarelas e colhemos as chaves
de casa, do carro, do foguetão em segunda mão que nunca voou…

rodopiamos ao ritmo frenético da luz anulada num buraco negro,
podemos sentir os corpos a levitar e a flutuarem no firmamento,
as nossas órbitas excêntricas em torno de nós mesmos: colisões,
pedaços nossos a perderem-se e a viajarem para longe. o veneno
a extravasar, o nosso pião a ser influenciado por ventos de leste
e pelo medo, brisa gélida, que emana do Sul, dos nossos mortos.
a sucessão do tempo após o tempo a entorpecer os nossos olhos.
o ser adulto, Norte, rugas a surgirem, fugas a pedirem voluntários.


[OESTE]

rodopiamos, agora mais lentamente, queremos ser o quente Vénus,
ter os dias longos e a superfície a quatrocentos e tal graus Celsius,
ignorar a brisa do Sul e ter uma atmosfera capaz de esmagar sondas,
brilhar como uma estrela e significar paixão numa mitologia antiga.

rodopiamos, lembrámos o tempo passado mas presente em nós,
dias em que não imaginámos os nossos rostos actuais. mentimos,
fizemos da virtude o nosso estandarte mas o mundo não quis ver.
então decidimos queimar todos aqueles contratos de boa-vontade
e existimos em total liberdade. com isso, percebemos o inevitável:
o quão impossível era ver a nossa fome de propósitos bem saciada,
vermos no espelho o ser idealizado, a pele fresca, incandescente,
e chegarmos juntos à Idade-Curvada, Oeste: o final da caminhada.

[SUL]

rodopia uma luz, raios-gama, vindos de um hemisfério de trevas;
no pensamento, um lar de eternidade vazio. faltam-lhe dois velhos:
um deus e um demónio que combatem, nas mais altas instâncias,
pela nossa guarda, pelo encerramento e remodelação do nosso teatro.

rodopia o nosso último suspiro acima dos nossos olhos tão turvos,
sinais de fumo de um rumo novo à volta do nosso mármore futuro.
tsunamis interiores a nós, o veneno a conquistar as mãos trémulas;
os piões partidos, lascas de madeira, quase agulhas ou cacos de cristal
que espelham os nossos movimentos de um dia, modo condicional
daquilo que ambicionámos ser. eu seria, tu serias, nós seríamos se…
e tudo isso são pedaços agora, na hora em que estes versos se calam;
e tudo isto termina aqui, no Sul, onde não existe mistério ou segredo.

raios me partam! a velha bússola tinha bruxedo. 


quarta-feira, 4 de abril de 2012

havemos de ir à Suécia!




lá, no cemitério, existem dias, embora este dado não tenha grande importância para o assunto de que vos quero falar. as ervas pequenas e selvagens a subsistirem por entre o mármore branco-frio.  a vida a existir em silêncio, num universo paralelo tão pouco provável. o tempo a teimar em existir. o portão velho, imponente e enferrujado, que range, ferro estridente, sempre que se abre; as flores mortas, ainda coloridas, as velas a combaterem o frio, as velhas cobertas de negro a cumprirem gestos meticulosos e autómatos: substituição de umas flores por outras, acender uma vela, lançar um olhar fugidio, cumprimentar alguém que se supõe conhecer, perguntar como vai a vida, concluir que saúde é o que é preciso, virar as costas aos seus mortos, pensar no jantar, fechar o portão à morte como se ela fosse um monstro pequeno e obeso, incapaz de passar por cima daquele portão, pelas frinchas daquele portão. depois, a noite, a cobrir tudo, a libertar fantasias e fogos-fátuos.
            lá, na maternidade, existem noites também, embora elas não se façam notar em demasia. nos pisos inferiores, existem acidentados que dão entrada nas urgências – alguns já chegam mortos. os ponteiros do relógio a definirem a hora do óbito. lá em cima, nesse mesmo hospital, nesse mesmo momento, um outro relógio define a hora em que uma criança nasceu. define o momento primeiro. os olhos grandes, quase impossíveis. o choro da vida. uma mãe cansada a sentir uma força colossal de peso tão leve nos seus braços. um pai, numa sala de espera, bancos azuis de plástico, rodeado de pessoas que esperam diferentes momentos, diferentes choros, a sentir um arrepio no corpo. a vida. a lua cheia a tomar proporções impossíveis e a montar um dia no meio daquela noite.
            dizem que na Suécia, essa pátria longínqua, de princesas e cavaleiros com pele branca como a cal, os dias são muito longos e as noites são muito longas. lá, nessa terra coberta de neve, existem cemitérios e maternidades, que em tudo são semelhantes aos exemplos que descrevi anteriormente. talvez as ervas que lá nascem entre as brechas do mármore das sepulturas sejam distintas, talvez a cor dos bancos das salas de espera de uma qualquer maternidade não seja azul. mas, por certo, também na Suécia as viúvas encontram formas de esquecer a morte e prosseguir a vida, também, lá, os pais suspendem a sua vida, a marcha do sangue nas veias, à espera de outra vida. também lá existe o Sol, que é reflectido pela neve branca: a luz a queimar os olhos; também lá existe a Lua, pintada de um branco polar. só a noção do tempo é diferente na Suécia, tudo parece mais lento.
            acabo de escrever estas palavras, ponto final.
            olho em redor, a sala inundada por luz amarela e artificial, cheiro a tabaco, ar morno, pensamentos a levitar. as persianas estão fechadas. pode ser dia ou noite lá fora. podem existir monstros, neste preciso momento, a escapulirem-se por entre portões, a perguntarem a minha morada; podem estar a procurar o meu nome na lista de pessoas que deram entrada nas urgências de um hospital e, enquanto isso, uma criança poderá estar a nascer nuns pisos mais acima.
estou aqui, tenho de acabar este texto. um dia havemos de ir à Suécia. sim, tu e eu, havemos de lá ir! sei que possivelmente nem nos conhecemos e que a única coisa que nos une é o facto de eu ter escrito este texto e de tu estares a lê-lo agora. de certa forma, estamos a partilhar um segredo. talvez sejamos amigos ou talvez me conheças de vista e já nos tenhamos cruzado numa qualquer rua: bom dia! se não te respondi, foi porque estava distraído. no caso de não nos conhecermos, quero agradecer-te este tempo que perdeste a ler este texto. podemos ser amigos no facebook e deitar tempo fora a trocar mensagens no msn: as nossas fotografias, os nossos rostos captados do lado mais favorável. se não quiseres, também não temos de forçar. não gostaria que me impusessem isso só por ter lido um texto semelhante a este. mas independentemente de nos conhecermos ou não, de sermos amigos ou não, ambos nos lembramos dos nossos mortos e ambos conhecemos vizinhos ou familiares que foram pais recentemente. ambos conhecemos a fugacidade com que o sol se desloca nos céus não-polares. os dias e as noites a sucederem-se vertiginosamente para além das paredes das nossas salas sombrias, interditas à entrada da luz, como se ela não entrasse de facto, ainda que em pequenas proporções.
            nós temos fotografias de quando éramos crianças e temos outras de antepassados que nunca conhecemos. temos a ferida do tempo, a alastrar no pensamento. mas juro-te, prometo-te, a ti que chegaste até este ponto do texto: havemos de ir à Suécia! 

domingo, 1 de abril de 2012

metamorfose




(passado)

estávamos os dois, em lugares formalmente distintos, desconhecendo a homogeneidade dos nossos pensamentos; nós sabíamos que estava viva a possibilidade de duas maçãs serem colhidas naquele exacto momento, nós só não sabíamos a alta probabilidade de sermos essas mesmas maçãs. nós não conhecíamos a mão que nos haveria de colher naquele pedaço de tempo solto de tudo o resto. nós nunca tínhamos captado a magia daquele equinócio, o equilíbrio geral do tempo.
naquele dia, suspeitando da fome metafísica-carbónica do nosso pensamento de aço pesado e velho, nós começámos este texto. a decisão de falar sobre isto foi fácil, pois as maçãs estavam colhidas. existiam degelos glaciares dentro dos nossos corpos, incêndios que flagravam dentro dos nossos olhos. os nossos passos eram incertos mas cautelosos, perdidos mas conduzidos por um qualquer motivo estranho às nossas mais refinadas palavras, às nossas mais alinhavadas definições. caminhávamos. reticências espalhadas pelo caminho que nos levava até…
enquanto escrevíamos este texto, várias foram as vezes em que pensámos no cansaço das nossas sombras, que não sabendo nada acerca dos nossos propósitos, nos iam seguindo sem questões. talvez elas soubessem o desfecho daquela caminhada e deste texto também, mas nós não sabíamos. o mundo, indiferente, continuava concentrado na marcha regular do tempo. naquele momento nasciam velhos novos, morriam novos velhos. a lógica não tinha vagar para parar e ler este texto que estávamos a escrever e os unicórnios eram aves de penas coloridas ocupadas numa migração utópica. a era da metamorfose tinha chegado.
sim, vamos reflectir sobre o que escrevemos.

(presente)

estamos aqui os dois, a ler este texto que alguém escreveu. não nos conhecemos, não sabemos nada acerca um do outro. no entanto, sabemos, temos a certeza, que estamos aqui os dois. nós nunca nos distanciámos muito de casa. peço desculpa por estar a falar como se te conhecesse, como se soubesse os segredos dos teus possíveis olhos oceânicos. suponho que tenhas uma casa, espero que tenhas uma casa, é tão bom ter uma casa onde possamos regressar e anular o ácido da realidade, libertar os medos e as fantasias interiores, formar uma arca de madeira à deriva nas águas agitadas de dilúvios não previstos pelos boletins meteorológicos.
é tão bom inventar-te e pôr-te aqui, saber que existirás aí mais tarde.

(futuro)

[…]