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quarta-feira, 4 de abril de 2012

havemos de ir à Suécia!




lá, no cemitério, existem dias, embora este dado não tenha grande importância para o assunto de que vos quero falar. as ervas pequenas e selvagens a subsistirem por entre o mármore branco-frio.  a vida a existir em silêncio, num universo paralelo tão pouco provável. o tempo a teimar em existir. o portão velho, imponente e enferrujado, que range, ferro estridente, sempre que se abre; as flores mortas, ainda coloridas, as velas a combaterem o frio, as velhas cobertas de negro a cumprirem gestos meticulosos e autómatos: substituição de umas flores por outras, acender uma vela, lançar um olhar fugidio, cumprimentar alguém que se supõe conhecer, perguntar como vai a vida, concluir que saúde é o que é preciso, virar as costas aos seus mortos, pensar no jantar, fechar o portão à morte como se ela fosse um monstro pequeno e obeso, incapaz de passar por cima daquele portão, pelas frinchas daquele portão. depois, a noite, a cobrir tudo, a libertar fantasias e fogos-fátuos.
            lá, na maternidade, existem noites também, embora elas não se façam notar em demasia. nos pisos inferiores, existem acidentados que dão entrada nas urgências – alguns já chegam mortos. os ponteiros do relógio a definirem a hora do óbito. lá em cima, nesse mesmo hospital, nesse mesmo momento, um outro relógio define a hora em que uma criança nasceu. define o momento primeiro. os olhos grandes, quase impossíveis. o choro da vida. uma mãe cansada a sentir uma força colossal de peso tão leve nos seus braços. um pai, numa sala de espera, bancos azuis de plástico, rodeado de pessoas que esperam diferentes momentos, diferentes choros, a sentir um arrepio no corpo. a vida. a lua cheia a tomar proporções impossíveis e a montar um dia no meio daquela noite.
            dizem que na Suécia, essa pátria longínqua, de princesas e cavaleiros com pele branca como a cal, os dias são muito longos e as noites são muito longas. lá, nessa terra coberta de neve, existem cemitérios e maternidades, que em tudo são semelhantes aos exemplos que descrevi anteriormente. talvez as ervas que lá nascem entre as brechas do mármore das sepulturas sejam distintas, talvez a cor dos bancos das salas de espera de uma qualquer maternidade não seja azul. mas, por certo, também na Suécia as viúvas encontram formas de esquecer a morte e prosseguir a vida, também, lá, os pais suspendem a sua vida, a marcha do sangue nas veias, à espera de outra vida. também lá existe o Sol, que é reflectido pela neve branca: a luz a queimar os olhos; também lá existe a Lua, pintada de um branco polar. só a noção do tempo é diferente na Suécia, tudo parece mais lento.
            acabo de escrever estas palavras, ponto final.
            olho em redor, a sala inundada por luz amarela e artificial, cheiro a tabaco, ar morno, pensamentos a levitar. as persianas estão fechadas. pode ser dia ou noite lá fora. podem existir monstros, neste preciso momento, a escapulirem-se por entre portões, a perguntarem a minha morada; podem estar a procurar o meu nome na lista de pessoas que deram entrada nas urgências de um hospital e, enquanto isso, uma criança poderá estar a nascer nuns pisos mais acima.
estou aqui, tenho de acabar este texto. um dia havemos de ir à Suécia. sim, tu e eu, havemos de lá ir! sei que possivelmente nem nos conhecemos e que a única coisa que nos une é o facto de eu ter escrito este texto e de tu estares a lê-lo agora. de certa forma, estamos a partilhar um segredo. talvez sejamos amigos ou talvez me conheças de vista e já nos tenhamos cruzado numa qualquer rua: bom dia! se não te respondi, foi porque estava distraído. no caso de não nos conhecermos, quero agradecer-te este tempo que perdeste a ler este texto. podemos ser amigos no facebook e deitar tempo fora a trocar mensagens no msn: as nossas fotografias, os nossos rostos captados do lado mais favorável. se não quiseres, também não temos de forçar. não gostaria que me impusessem isso só por ter lido um texto semelhante a este. mas independentemente de nos conhecermos ou não, de sermos amigos ou não, ambos nos lembramos dos nossos mortos e ambos conhecemos vizinhos ou familiares que foram pais recentemente. ambos conhecemos a fugacidade com que o sol se desloca nos céus não-polares. os dias e as noites a sucederem-se vertiginosamente para além das paredes das nossas salas sombrias, interditas à entrada da luz, como se ela não entrasse de facto, ainda que em pequenas proporções.
            nós temos fotografias de quando éramos crianças e temos outras de antepassados que nunca conhecemos. temos a ferida do tempo, a alastrar no pensamento. mas juro-te, prometo-te, a ti que chegaste até este ponto do texto: havemos de ir à Suécia! 

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