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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Éter

Pedes-me a eternidade e eu dou-te simplesmente este momento,
esperando que o enlaces nos teus dedos de veludo delicado
– dois fortes nós com o débil cordel da memória. Segura-o bem,
exibe-o como uma criança a quem ofereceram um balão colorido.
Corre de olhos fechados, deixa-te levitar e lê os poemas do vento,

mas não agora.

Pedes-me a rectidão, a mim condenado a uma existência elíptica,
a todos os contra-sensos que os dias me deixam no baço espelho.
É simples o que te prometo: não a lonjura do mar ou das estrelas,
mas antes um passeio que os nossos beijos tornarão cruelmente curto
porque o tempo, deus sempre ciumento, nunca se esquece de nós,
mesmo quando num compasso lento e doce nos olvidamos da sua sombra.

Agora, enquanto escrevo estas palavras, Dezembro deita-se nas ruas,
pois todos os homens ignoram a sua presença e tentam dormir.
Mas eu e tu sabemos extrair o sublime destas noites áridas e gélidas,
pois são elas que nos lembram o lugar de tudo o que nos mantem quentes
- cobertores: armário grande – e que nos levam sempre a concluir
que acreditar também aconchega. E o tempo confirma. Eterno é nada.

Dezembro há-de morrer. Nesse momento, espero que saias à rua,
que corras, que desafies o vento e que, por fim, percas o teu balão.
Porque entretanto ele perderá a cor,
mas nesse instante, julgo, terei ainda ar para encher um outro.

Assim sendo, apenas te peço que sejas o éter.



sábado, 21 de dezembro de 2013

Passagem


Um homem caminha dentro da noite. Uma noite caminha dentro do homem. Um vento vindo do ártico assoma-se dos sentidos quase anulados. As pálpebras pesadas. As mãos recolhidas nos bolsos do sobretudo velho. As orelhas tapadas pelo gorro. O nariz congestionado por uma constipação que não passa. O paladar quase esquecido do sabor de uma refeição quente. Pelas ruas da cidade, nunca tão longas como hoje, um homem prossegue na sua lenta e triste marcha. A vida, por vezes, resume-se à sobrevivência. Resistir. Continuar apenas para não desistir.
As ruas passam, como efémeros souvenirs, por este homem de olhos cristalizados e perdidos, de propósitos abandonados. As memórias como mortos cardos. Dias passados e esbatidos, como retratos antigos, esquecidos pelo sarcasmo do tempo. O tempo que lhe é escasso. O rio sempre passa e o seu passo é mais lento. Os seus pés estão trocados e ele não sabe para onde ir. Todos os rios são levados até o mar os engolir.
As fachadas tristes dos velhos prédios estão iluminadas. As luzes eléctricas das casas estão acesas – forma gélida de manter distante o frio e as trevas. Mas a noite permanece à janela, debruçada no parapeito, à espera que alguém, no âmago da solidão, a cumprimente e se apaixone pelas estrelas e pelos sonhos que a elas estão abraçados. Dentro dessas casas, nas salas de jantar, famílias inteiras estão reunidas. As crianças correm alvoraçadas pelos corredores, na urgência característica de quem não compreende ainda o compasso amargo dos relógios; na avidez de desembrulharem presentes. Sentados à mesa, os homens contam as mesmas histórias de todos os anos e depois perguntam pelo jantar, apesar da mesa estar recheada de doces e frutos secos. Na cozinha, as mulheres atarefadas entreajudam-se e aborrecem-se com o bacalhau que nunca mais coze, mas sorriem porque é costume neste dia. Enquanto isto, as luzes da árvore de natal brilham intermitentemente e iluminam mesmas bolas e as mesmas fitas que a ornamentam desde sempre e que dizem “Bom Natal e Feliz Ano Novo”.
O ventou acalmou agora um pouco e, lá fora, o transeunte está prestes a chegar ao seu destino. É a primeira vez que vem ao encontro deste lugar. Nunca se imaginou a fazer este percurso. Chega. Detém-se na proximidade de uma enorme estrutura pré-fabricada, coberta por um plástico impermeável branco, que, no meio da noite, se insurge como uma miragem cálida mas excruciante. A vergonha que sente de entrar e a necessidade de o fazer combatem entre si. Hesita. As lágrimas descobrem a saída do seu corpo, mas só uma é capaz de lhe escapar pelo rosto parado.
Depois de se recompor, olha para o interior daquele lar improvisado, alegoria de presépio, e apercebe-se de que dezenas de pessoas já ceiam. Parecem alegres. Outras, organizadas numa fila que se prolonga quase até à entrada, aguardam pela sua vez, pela sua refeição. Enquanto isso, conversam. Matam a fome, a solidão e as angústias. Ao fundo, num canto, um homem magro e velho, de cabelos e barbas grisalhas, vai tocando na harmónica músicas de natal.
Finalmente decide entrar, embora essa fosse a sua única alternativa. Junta-se à fila e aguarda. Não conversa com ninguém. Os olhos a fixarem o chão. Chega a sua vez e a senhora que o serve, com um sorriso vivo no rosto, pergunta-lhe, O que vai ser? Tremulamente responde-lhe, Queria três refeições para levar para casa, se faz favor. Ainda sorrindo, a senhora pergunta-lhe se é o primeiro ano que ali vai, enquanto vai enchendo três tupperwares com bacalhau, batatas, couves e cenouras cozidas; à parte, coloca numa caixa alguns sonhos e rabanadas. O homem acena afirmativamente com a cabeça e, em seguida, ela entrega-lhe tudo num saco plástico. Tem filhos pequenos?, insiste ainda. Ele solta um sim quase mudo e, perante essa resposta, a senhora coloca um pai natal de chocolate dentro do saco. Nesse momento, ele sorri também e, pela primeira vez na sua vida, percebe que a palavra obrigado é bonita. Obrigado, minha senhora! Muito obrigado!
Afasta-se agora da melodia viva da harmónica e das conversas das pessoas. O mundo exterior outra vez. A noite e o vento frio de novo. As ruas de novo, mas um novo alento também. A ânsia de chegar a casa, de abraçar emocionado a mulher que o espera e, depois, pousar o pai natal de chocolate, que leva na mão para não o partir, debaixo da árvore de natal
despida . Sentado no seu colo, depois do jantar, o seu pequeno e único filho rasgará a folha de prata envolvente e partirá o pai natal em pedaços. Todos rirão muito quando o pai disser, Mataste o Pai Natal!
Agora só lhe falta chegar a casa, mas pelo caminho o som da harmónica ainda ecoa no seu pensamento, fazendo-o pensar que a vida afinal é muito mais do que a sobrevivência. Tal como os alimentos, também os sentimentos hão-de chegar quentes a casa.
Um homem caminha dentro da noite. Uma noite caminha dentro do homem.



domingo, 1 de dezembro de 2013

Dégradé

Gosto de pensar em mim como um pintor
e não como um escrevinhador.
Se as imagens nos falam ao ouvido,
as palavras também pintam, para deleite  dos olhos.
Os dias que por mim passam sem grande alarde
são a minha gradiência.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

o estéril lugar do moinho


o maior vazio surge quando nos sentimos já cheios de tudo.
o novo ano surgiu solarengo, com um sorriso tímido portador de uma esperança quase oculta e esquecida. como uma criança que acorda de manhã com sono, mas nos olhos de cristal tem embutida a promessa da felicidade utópica. ele – este que me escreve a mim – já não é uma criança. não é um adulto, é qualquer coisa sem uma definição estipulada. quando acorda pela manhã, sente normalmente o travo agridoce de um sonho sem sentido, desfeito, desmoronado. no momento em que encara o sol vespertino que o parece querer humilhar com a sua luz, ele lembra-se de outros dias, de outros acordares. lembra-se, amiúde, do moinho.
            quando era criança, no verão, em dias de sol como este mas mais quentes, costumava ir com a sua mãe para a praia. aproveitavam o sol das manhãs, de manhãs calmas como esta mas mais harmoniosas, e saiam de mão dada pela porta de casa. caminhavam de mão dada pela ruas, conheciam-nas perfeitamente, assim como elas os conheciam a eles e condescendiam em encurtar as suas distâncias, diminuindo assim o caminho que os levava até ao areal. durante esse percurso, o cansaço não caminhava com eles. durante esse percurso o tempo não caminhava com eles. o tempo era como o moinho: imóvel.
            quase todos os dias, com eles, iam também outros dois pequenos rapazes, da mesma idade que este que me escreve. um deles seguia vagaroso, o outro corria normalmente. talvez para ele o tempo já existisse, mas aquele miúdo corajoso tinha em si a força para o derrotar. quando chegavam à praia, as toalhas eram estendidas e dispostas lado a lado. a mãe sentava-se. não despia a camisola. não retirava o boné. não movia a sua atenção durante um único momento que fosse dos três rapazes que corriam pela praia, jogavam à bola ou fingiam andar à porrada, até que a exaustão ou a mão da mãe os chamasse para virem descansar, para colocarem protector solar, para comerem qualquer coisa…
            em quase todas essas ocasiões, o rapaz, que anteriormente havia corrido pelas ruas, nunca parava, a energia parecia-lhe inesgotável e, por vezes, vinha chamar os outros dois. passados alguns minutos, partiam de novo, tinham um mundo para conquistar. uma vez por dia, depois dessas pausas fugazes, diziam à mãe dele, vamos para o moinho. ela não gostava. ficava preocupada. mas deixava-os sempre ir. pedia-lhes para terem cuidado com os vidros que existiam dentro do moinho, que se podiam cortar. dizia-lhes ainda para não se demorarem, mas o tempo não existia.
            o moinho era já muito velho. tinha as paredes desbotadas pela salitra e pelo esquecimento de todos aqueles que nele já não encontravam nenhuma funcionalidade. mas para ele e para os outros dois rapazes, o moinho era um universo paralelo e incomensurável, tímido e soturno por já não estar acostumado a receber visitas. nele os rapazes montavam os mais diversos enredos fantasiosos, reproduziam cenas que viam nos desenhos animados ou inventavam diegeses novas e, aparentemente, sem grande sentido.
            no interior do moinho, as suas vozes multiplicavam-se e arrastavam-se em ecos. haviam três pisos. o primeiro estava inundado de areia, de cacos de vidro e dejectos de cães.  nele não existiam janelas, a claridade entrava apenas pelo lugar onde em tempos estivera a porta principal. no segundo patamar, existia uma janela maior, no terceiro várias um pouco mais pequenas. nunca chegaram a ascender a nenhum desses pisos, pois a passagem estava barrada por moveis descompostos e velhos. do cimo do moinho, descia um eixo vertical que se prolongaria, não estivesse ele quebrado, até à base. no centro do moinho encontrava-se um objecto estranho e complicado. era composto por um eixo horizontal, em torno do qual estava enrolada uma corda colocada com o auxilio de duas manivelas posicionadas em cada uma das extremidades. o objecto que descrevo assemelha-se, talvez, a um cabrestante de um navio, mas para os pequenos rapazes não se parecia com coisa nenhuma, nem tinha uma tipologia que pudesse sugerir qualquer tipo de história fantasiosa em torno dele.
            hoje, ele – este que me escreve – sabe que aquele corpo estranho é chamado de sarilho; sabe também que o eixo que descia desde o topo do moinho servia para rodar o capelo e, assim, alterar a posição das pás. hoje ele sabe muitos mais pormenores acerca de moinhos, pois desde essas manhãs tão longínquas, desde que o tempo começou a correr, que o seu interesse e a sua nostalgia em relação aos moinhos foram crescendo.
            no local onde existira o moinho, no local onde se perpetuaram tantas brincadeiras e tantas histórias e tantos mistérios de criança, não existe hoje mais do que nada. existe apenas a areia e os mesmos ou outros cacos de vidro. é nesse lugar estéril que ele se encontra neste momento, tentando descobrir alguns desses mistérios que ficaram por desvendar, tentando parar o tempo, retrocede-lo, erguer um moinho que transforma memórias em felicidade, girar o capelo na direcção oposta à do vento e contrariar a ácida lógica.
            subitamente, lembra-se dos seus dois amigos de infância. lembra-se dos sonhos que tinham. o Luís, o mais calmo e temeroso dos dois, nunca chegou a concretizar o sonho de ser trolha. este que me escreve e o Luís seguiram rumos diferentes, mas sempre paralelos, nunca perderam aquilo que os unia e ainda os une. já o Daniel, aquele que corria, sempre destemido e invencível, nunca chegou a ser jogador de futebol. dizem que emigrou, que já é pai e, quando pensa nisso, este que me escreve, imagina um miúdo que, tal como o pai num tempo passado, corre indisposto a parar.
agora estão longe, mas, aonde quer que estejam, por certo ainda guardam dentro de si um pouco daquilo que viram e inventaram dentro daquele moinho; por certo ainda recordam também o sonho que fazia mover as pás deste homem afogado em memórias que agora me escreve. também ele nunca chegou a ser aquilo que queria ser. não interessa o quê, pois nem ele sabe bem. só a mãe continuou a ser mãe. só ela continuou a olhar preocupada para todos os passos que ele dá e a dizer-lhe, com o mesmo olhar luminoso mas tenso, para ter cuidado e para não se cortar.         
hoje, agora, quando sentado sobre a areia e sobre os cacos onde antes estivera altivo o moinho, ele percebe que afinal o que lhe rasga a pele mora dentro do seu corpo. talvez o eixo vertical que o une ao seu sarilho esteja também ele quebrado. assim, sentado sozinho no estéril lugar do moinho, ele fica a revolver os fragmentos que traz no bolso da lembrança. em locais diferentes, em momentos diferentes, aqueles três rapazes encontrar-se-ão sempre aqui, neste moinho inexistente mas vivo.
a maior das plenitudes surge quando já não nos cansamos de nada.


eu, este texto, penso que deixamos de viver quando nos perdemos nas nossas memórias.
o novo ano surgiu solarengo, com um sorriso tímido portador de uma esperança quase oculta e esquecida. como uma criança que acorda de manhã com sono, mas nos olhos de cristal tem embutida a promessa da felicidade utópica. ele – esse que me escreve a mim – já não é uma criança. não é um adulto, é qualquer coisa sem uma definição estipulada. quando acorda pela manhã, sente normalmente o travo agridoce de um sonho sem sentido, desfeito, desmoronado. no momento em que encara o sol vespertino que o parece querer humilhar com a sua luz, ele lembra-se de outros dias, de outros acordares. lembra-se, amiúde, do moinho.
            quando era criança, no verão, em dias de sol como este mas mais quentes, costumava ir com a sua mãe para a praia. aproveitavam o sol das manhãs, de manhãs calmas como esta mas mais harmoniosas, e saiam de mão dada pela porta de casa. caminhavam de mão dada pela ruas, conheciam-nas perfeitamente, assim como elas os conheciam a eles e condescendiam em encurtar as suas distâncias, diminuindo assim o caminho que os levava até ao areal. durante esse percurso, o cansaço não caminhava com eles. durante esse percurso o tempo não caminhava com eles. o tempo era como o moinho: imóvel.
            quase todos os dias, com eles, iam também outros dois pequenos rapazes, da mesma idade que este que me escreve. um deles seguia vagaroso, o outro corria normalmente. talvez para ele o tempo já existisse, mas aquele miúdo corajoso tinha em si a força para o derrotar. quando chegavam à praia, as toalhas eram estendidas e dispostas lado a lado. a mãe dele sentava-se. não despia a camisola. não retirava o boné. não movia a sua atenção durante um único momento que fosse dos três rapazes que corriam pela praia, jogavam à bola ou fingiam andar à porrada, até que a exaustão ou a mão dele os chamasse para virem descansar, para colocarem protector solar, para comerem qualquer coisa…
            em quase todas essas ocasiões, o rapaz que anteriormente houvera corrido pelas ruas nunca parava, a energia parecia-lhe inesgotável e, por vezes, vinha chamar os outros dois. passados alguns minutos, partiam de novo, tinham um mundo para conquistar. uma vez por dia, depois dessas pausas fugazes, diziam à mãe dele, vamos para o moinho. ela não gostava. ficava preocupada. mas deixava-os sempre ir. pedia-lhes para terem cuidado com os vidros que existiam dentro do moinho, que se podiam cortar. dizia-lhes ainda para não se demorarem, mas o tempo não existia.
            o moinho era já muito velho. tinha as paredes desbotadas pela salitre e pelo esquecimento de todos aqueles que nele já não encontravam nenhuma funcionalidade. mas para ele e para os outros dois rapazes, o moinho era um universo paralelo e incomensurável, tímido e soturno por já não estar acostumado a receber visitas. nele os rapazes montavam os mais diversos enredos fantasiosos, reproduziam cenas que viam nos desenhos animados ou inventavam diegeses novas e, aparentemente, sem grande sentido.
            no interior do moinho, as suas vozes multiplicavam-se e arrastavam-se em ecos. haviam três pisos. o primeiro estava inundado de areia, de cacos de vidro e dejectos de cães.  nele não existiam janelas, a claridade entrava apenas pelo lugar onde em tempos estivera a porta principal. no segundo patamar, existia uma janela maior, no terceiro várias um pouco mais pequenas. nunca chegaram a ascender a nenhum desses pisos, pois a passagem estava barrada por moveis descompostos e velhos. do cimo do moinho, descia um eixo vertical que se prolongaria, não estivesse ele quebrado, até à base. no centro do moinho encontrava-se um objecto estranho e complicado. era composto por um eixo horizontal, em torno do qual estava enrolada uma corda colocada com o auxilio de duas manivelas posicionadas em cada uma das extremidades. o objecto que descrevo assemelha-se, talvez, a um cabrestante de um navio, mas para os pequenos rapazes não se parecia com coisa nenhuma, nem tinha uma tipologia que pudesse sugerir qualquer tipo de história fantasiosa em torno dele.
            hoje, ele – este que me escreve – sabe que aquele corpo estranho é chamado de sarilho; sabe também que o eixo que descia desde o topo do moinho servia para rodar o capelo e, assim, alterar a posição das pás. hoje ele sabe muitos mais pormenores acerca de moinhos, pois desde essas manhãs tão longínquas, desde que o tempo começou a correr, que o seu interesse e a sua nostalgia em relação aos moinhos foram crescendo.
            no local onde existira o moinho, no local onde se perpetuaram tantas brincadeiras e tantas histórias e tantos mistérios de criança, não existe hoje mais do que nada. existe apenas a areia e os mesmos ou outros cacos de vidro. é nesse lugar estéril que ele se encontra neste momento, tentando descobrir alguns desses mistérios que ficaram por desvendar, tentando parar o tempo, retrocede-lo, erguer um moinho que transforma memórias em felicidade, girar o capelo na direcção oposta à do vento e contrariar a ácida lógica.
            subitamente, lembra-se dos seus dois amigos de infância. lembra-se dos sonhos que tinham. o Luís, o mais calmo e temeroso dos dois, nunca chegou a concretizar o sonho de ser trolha. este que me escreve e o Luís seguiram rumos diferentes, mas sempre paralelos, nunca perderam aquilo que os unia e ainda os une. já o Daniel, aquele que corria, sempre destemido e invencível, nunca chegou a ser jogador de futebol. dizem que emigrou, que já é pai e, quando pensa nisso, este que me escreve, imagina um miúdo que, tal como o pai num tempo passado, corre indisposto a parar.
agora estão longe, mas, aonde quer que estejam, por certo ainda guardam dentro de si um pouco daquilo que viram e inventaram dentro daquele moinho; por certo ainda recordam também o sonho que fazia mover as pás deste homem afogado em memórias que agora me escreve. também ele nunca chegou a ser aquilo que queria ser. não interessa o quê, pois nem ele sabe bem. só a mãe continuou a ser mãe. só ela continuou a olhar preocupada para todos os passos que ele dá e a dizer-lhe, com o mesmo olhar luminoso mas tenso, para ter cuidado e para não se cortar.         
hoje, agora, quando sentado sobre a areia e sobre os cacos onde antes estivera altivo o moinho, ele percebe que afinal o que lhe rasga a pele mora dentro do seu corpo. talvez o eixo vertical que o une ao seu sarilho esteja também ele quebrado. assim, sentado sozinho no estéril lugar do moinho, ele fica a revolver os fragmentos que traz no bolso da lembrança. em locais diferentes, em momentos diferentes, aqueles três rapazes encontrar-se-ão sempre aqui, neste moinho inexistente mas vivo.

ele, este que me escreve, pensa que começamos a morrer quando perdemos as nossas memórias.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Quando formos um

Quando formos um o mar será brando para os nossos recifes
o sol iluminará as nossas pegadas na areia
gravadas em compassos perfeitos pelos nossos pés descalços
e a maresia entrar-nos-á pelas narinas
saindo indelével em cada verso que emprestarmos a um poema

Quando formos um seremos um oceano de sensações secretas
o céu tocar-nos-á na linha do horizonte
para onde vão os pássaros chilreando nos seus múltiplos idiomas

Por enquanto somos dois e caminhamos sobre sonhos adiados
por terras sobrecarregadas de significados
sobre palavras que não dizemos sempre porque as gastaram
os homens a que o acaso nos moldou semelhantes
por fetish vanguardista de pintar para lá da linha de contorno

Por enquanto somos dois, somos um texto em construção
que ainda não deve ser lido por um historiador
mas capaz de embalar uma criança esperta nestas noites burras de amor

que inundam       unificam               e no entanto não diluem

Todos os rios do mundo cavalgam e confluem na nossa direcção
dá-me a tua mão
porque esta noite usaremos a lua como bóia

Esta noite seremos um

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

princípios de hipotermia

I

nós, humanos, tantas vezes,
usamos os sentimentos como moedas
e as moedas como evidência do sentir.
mas nem mesmo as moedas têm um valor inalterável.

II

o medo é um monstro cobarde.
sonda-nos sobretudo quando estamos sozinhos,
entregues a nós mesmos:
a tudo aquilo que desconhecemos.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

vista nocturna de uma manhã citadina

as ruas foram despojadas de caminhos
não sabem para onde vão       mas seguem
encontram-se casualmente nas encruzilhadas
onde também as multidões param e avançam
também elas perdidas
também elas cansadas da poética das cidades

um avião traça nos céus uma linha de fumo
e ninguém suspeita para onde se dirige

lá do alto parecemos pequenos e irrisórios
vistos da terra parecemos provisórios espelhos
baços por tudo aquilo que nos rodeia

à parte disto sobra-nos a arte de pasmar
com a nossa própria efémera e curta significância
porque aqueles que se julgam maiores são deuses

e de nada serve ser divino em cidades sem crenças

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

bucólica melodia

vagueiam pelos reinos desta noite jovem os gastos dias
arrastam-se
tropeçam
moribundos como cartas de primaveras distantes que ardem
agora no interior do silêncio
e do medo niilista

à chuva
um pedante pedinte dança envolto numa bucólica melodia
e um cão vadio corre em círculos em seu redor

os dois sabem
que nada têm a celebrar senão a fome que os faz sentir vivos

no interior da casa e de estômagos cheios
eu e a insónia deixamo-nos ficar
a contemplar pela janela entreaberta a estranha dança da vida

porque pode ser que nos atire uma moeda

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Conversa de ocasião numa tarde de Outubro

- Então que tal vai a vida?
- Sabes como são aqueles momentos
em que te sentes cansado de tudo
e, no entanto, não sabes bem qual é o motivo,
nem tampouco consegues explicar
esse cansaço a outra pessoa?
- Sei.
- Pois!... Mas não é bem isso!
- Então?
- Não sei.
- Não sabes ou não queres contar?
- Não sei se quero, portanto sei que não sei.

- E, de resto, está tudo bem?
- Sim, está tudo bem.
- O tempo tem estado uma merda!...
Parece que o Inverno veio mais cedo.
- Não valia a pena esperar. Fez bem em vir!
- Porquê?
- Porque, para mim, o Outono é perpétuo.
- Pareces os velhos a falar…
- Sabes o que faz cair as folhas das árvores?
- Não.
- Não tem a ver com o tempo.
- Então?
- Com a falta de luz.

- Não gosto quando te pões com metáforas.
- Desculpa! Pago-te um copo para compensar.
- E brindamos a quê?
- Não sei.

sábado, 21 de setembro de 2013

artéria nova

Lua. ninguém pode apreciar hoje o teu brilho,
quando nua iluminas à noite os corpos que se escondem.
sob a tua presença, luzes eléctricas atraem insectos
e o mundo já não passa sem elas.

tudo é aparato, tudo são artifícios…
a sociedade vive para a ribalta, para as palmas,
embora, como tu, esconda sempre uma das suas faces.

dizem os sábios que o teu brilho não é próprio
e que a tua existência está condenada à subordinação.

como tu, também os homens giram perpetuamente,
gastam a vida às voltas
e, por vezes, são atraídos para buracos negros
onde à luz da razão lhes falham os silogismos.

eu sou um desses que vive para a antimatéria,
para os abismos!...

Lua, vem comigo! encontremos uma artéria nova
e que ela em nós faça correr um brilho novo,
sem dono nem leis.

contemos até seis
e esperemos que Mefistófeles nos leve,
como com Fausto fez,

pela terra, em direcção a um céu que não este.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

o mais miserável herói

os pássaros da minha terra têm a liberdade rasgada,
tal como este povo, que os fita como fátuas velas.
são agora estátuas de memórias dissolvidas em nada,
levadas pelos mares onde se danaram caravelas.

é verdade! permanecem conservados os versos ainda,
que esta terra elevaram corrompendo clássicas epopeias.
triste sina cantar a pátria, o rei decrépito e a sua vinda,
mas a isso condena a fome e a necessidade das plateias.

somos talvez o mais miserável herói que a literatura conhece
pois, mesmo apesar dos golpes, em nós a revolta não cresce.
pela perfídia do orgulho necrófago, Lisboa está morta!
não a cidade! essa pouco importa! 
(pois que viva, se do estrangeiro obtiver concordância!) 
o que morreu foi a esperança, 
de lonjura em relação à substância.

pode ser que um dia retorne Ulisses e nos pague a fiança…

palavras paparazzi

é noite. dentro das profundezas do meu ser um candelabro,
uma ideia disforme que me vai sussurrando incessantemente
contra qualquer sono que me rapte nos seus braços de veludo.

as palavras que conheço e que já tantas vezes dispus
tentam assomar-se para relatar a ocorrência bizarra
de um motim no interior do homem a que se subordinam.

na verdade, esta ideia não me pertence
tal como eu não lhes pertenço.
a vida – é – assim –  mesmo.


o rio corre para o mar que não conhece
não para a montanha que o pariu
e que ainda lhe lança um olhar altivo.
encontrámo-nos casualmente, bebemos uns copos a mais,
e agora estamos os dois às voltas na cama, 
inquietos,
a debater-nos, a esventrar-nos,
a procurar a essência orgásmica da poesia secreta dos colibris.

amanhã, quando acordarmos,
não saberemos muito bem o que fazer um com o outro
mas o mal já está feito – as palavras retrataram o nosso affair.

amamo-nos hoje. negamo-nos amanhã.
a luz levará até as nossas sombras
e para trás ficarão, como postais, as nossas peles.

Ideia, ainda me consegues ouvir?
acho que bebemos um pouco de mais!...

a vida –  é –  assim –  mesmo;
mesmo –  assim –  a vida – é
um estúpido jogo de sentidos.

o homem leva as sementes e lança-as sobre os baldios,
tal como faz o poeta com as ideias e o barulho 
que despeja na fria mas cálida folha de papel.

se ao homem cabe colher o fruto e com ele saciar a fome,
ao poeta resta-lhe somente continuar a plantar ideias e febres
na ânsia de entreter e comover aqueles que o leem
nas horas em que o alimento não enche o cálice da existência.

Ideia, ainda me consegues ouvir? 
fazemos mais um brinde à poética decadência?

[mas nem tu és poeta nem eu sou decadente!
sou uma ideia livre e não me tomes como tua!] 
desculpa! se fosses mulher, os pudicos chamar-te-iam puta
com todo o respeito.

vamos dormir! é dia.

domingo, 8 de setembro de 2013

Cegueira Espraiada


Era um belo dia solarengo para todos aqueles que o podiam ver. Para todos os outros era apenas mais um dia. Negro. A cor do silêncio que berra dentro de cada homem vivo. Nas ruas, a azáfama crescente de uma cidade a despertar. Os automóveis a criarem fluxos monótonos; os semáforos a variarem previsivelmente de cor; os prédios devolutos a tentarem esconder a sua vergonha das fotografias dos turistas; o porteiro a abrir o portão do mercado das flores, enquanto que, num outro ponto da cidade, alguém deixa uma orquídea e uma prece pousada no mármore frio, que cobre um corpo já sem essência; as pessoas a saírem apressadamente pelas portas do metro numa massa compacta, que depois se dilui pelas várias artérias da cidade. Aí, tornam-se pessoas. Desconhecidas. Seres individuais. Tomam rumos diferentes e não se olham. Por vezes, dão o «bom dia» a alguém conhecido. Hmmm! Alguém conhecido!...
            Justo é mais uma dessas pessoas que caminha por ruas que já conhece. Nunca as viu, mas os seus passos são autómatos. Prossegue. A brisa toca-lhe a pele espessa e marcada do rosto. O seu nariz pontiagudo segura o peso dos óculos, que não têm qualquer efeito óptico, apenas escondem os seus olhos de um mundo que não consegue enxergar. Nasceu assim. Tudo aquilo que conhece não tem aspecto. Apesar disso, gosta de ir sentado junto ao vidro durante as viagens de metro, eléctrico ou autocarro. Durante essas viagens mete sempre conversa com alguém que, ao seu lado, de pé, lhe cede o lugar. Quando se despede dessas pessoas, em jeito de brincadeira, costuma dizer:
            - Nunca mais nos voltaremos a ver!...
            Naquele dia, caminhava em direcção à praia. Sempre que está bom tempo, gosta de ir pescar. Esse era um desses dias em que tinha acordado cedo, se tinha vestido sozinho, fumado um cigarro e lavado os dentes diante de um espelho, colocado inutilmente na casa de banho. Havia sido o próprio Justo quem o comprou e lá o colocou. Porquê? Ora essa!... Isso não sei! Por que raio haveria eu de saber? Sou somente o narrador, mais nada! Acerca do pensamento das personagens nada sei, apenas as vejo deambular nas minhas cidades interiores.
            A maresia invadia-lhe já todos os quatro sentidos apurados que possuía, atenuando dessa forma o cansaço daquela caminhada, aumentado pelo peso de todo o material pescatório que transportava consigo. A cana, a linha, o carreto, o balde e os iscos previamente preparados em casa. Tudo isso se juntava ao peso do seu corpo e tornava os seus passos mais vagarosos. No entanto, o seu ritmo era certo e paciente, sempre marcado pelo toc-toc-toc da bengala, até ao momento em que lhe pareceu ter escutado a voz da sua velha amiga Ana Lepse.
            Haviam-se conhecido casualmente há uns anos, desde que Justo começou a ir pescar todos os dias. Sempre que está bom tempo. Ana vende refrigerantes, pipocas e bolas de berlim pela praia. Ou, melhor, Ana apregoa esses produtos ao longo do areal, porque vender, na verdade, pouco consegue. Sempre que se encontram, Ana pára um pouco para conversar. Logo no primeiro dia em que se conheceram, dez minutos foram largos para narrar a Justo todos os principais episódios da sua vida. O marido havia sucumbido de cancro no fígado, o filho morava na capital e poucas vezes a vinha visitar, às terças e sextas fazia limpezas na casa de uma família outrora abastada, tinha sido emigrante em França e raramente conseguia dormir uma noite completa, muito por causa da vizinha brasileira, que morava no andar de cima e todos os dias recebia senhores na sua casa – «É um pandemónio!» Ana falava, falava, falava e quando a conversa parecia estar a diluir-se na foz do silêncio, ela recomeçava e repetia, repetia, repetia tudo outra vez, outra vez, outra vez. Apesar disso, Justo achava-lhe graça. Ria-se sempre dos mesmos pormenores e construía um ar grave na sua face ao ouvir os mesmos infortúnios que lhe eram narrados. A conversa termina, sempre abruptamente, quando Ana olha para o relógio. Nesse momento, ambos concluem à boa maneira portuguesa: «É a vida!»
            Porém, naquele dia, não era ela. O hábito leva a que os sentidos se acomodem e até mesmo um cego cede, por vezes, a esse erro. Justo sentou-se então no paredão. Descalçou os sapatos, tirou as meias e arregaçou as calças até aos joelhos. Fumou um último cigarro. Enquanto isso, o mar emitia um rugido entorpecido, talvez cansado de banhar aquelas areias. Enquanto isso, definhava-se esporadicamente a intensidade com que o sol incidia nos seres e nas coisas, tapado por uma ou outra nuvem, também ele cansado de aquecer um povo que espera a salvação num dia de nevoeiro.
            O tempo mostrava-se indiferente e obrigava o sol a mover-se no firmamento. As ondas do mar remexiam as pequenas pedras indolentes e traziam e levavam pequenas algas. Junto à água brincavam algumas crianças e, por vezes, uma gaivota grasnava. Justo estava há, mais ou menos, meia hora, sentado, segurando a cana, a pescar. A paciência é uma virtude, assim dizem os homens conformados e, esses sim, cegos. Os homens que não têm a ânsia da novidade petrificam e tornam-se nas pequenas pedras que o mar revolve. Justo está mais próximo do mar do que da terra, e esta não é uma simples indicação cénica, pois o mar é a manifestação suprema da natureza. Para ele a terra e os assuntos irrisórios da humanidade já não o envolvem, inquietam e subordinam. A humanidade, como um rio, flui sem vontade, agarra-se à ética e à estética, aspirando ao sublime.
            Dias há em que os dias são agulhas. Este dia era um como tantos outros para Justo. De cada vez que pescava mais um peixe, o mesmo ciclo repetia-se. Segurava o pescado, ainda vivo, com uma mão e com a outra, que segurava o anzol, extraía-lhes das órbitas os olhos. A vida contorce-se dentro daqueles corpos escamosos, até ao momento em que Justo coloca os peixes no balde com água fresca, tingida de sangue. Mais tarde, quando decide regressar a casa, devolve-os ao mar. Se sobrevivem ou sucumbem? Não se sabe! Justo não pode ver e eu virei a cara naquele momento. Porquê esta rotina? Já disse que não posso saber isso, apenas narro aquilo a que assisto na minha mente. Tudo o resto são especulações e juízos de valor, e cabe ao leitor, não a mim, catalogar moralmente cada uma das personagens.
            Não o julgo ou aprovo. Sigo. Volto também para casa, para o esquecimento. Como todos nós. Porque somos como peixes; porque dias há em que os dias são noites. A este conto falta-lhe um pouco de luz, um pouco de sentido e um saber doce a pipocas ou a bolas de berlim. Também disso me ilibo! Não é culpa minha que, estranhamente, Ana Lepse tenha faltado naquele dia ao trabalho.
            Entrei em casa. Fumei incompletamente um cigarro e deixei-o a morrer no cinzeiro, tal como faço com a maioria das personagens que no meu pensamento circulam. Pego nelas, dou-lhes voz e depois deixo que o tempo e o esquecimento as envolvam em escuridão. Cego-as. Mas ao contrário de Justo, o meu processo de tortura e indiferença é mais arrastado. Serei, também eu, uma personagem avistada por um narrador sádico?






domingo, 1 de setembro de 2013

locomotiva de hiatos


antes de partir, contemplei o mármore frio que te cobre.

sou um comboio de memórias que pedem misericórdia.
o seu único anseio é que as deixem repousar,
apartadas dos espelhos e do tempo,
longe da ética, da estética e das bagatelas do quotidiano.

dançam em sonhos crepusculares os corvos e as pombas
que sobrevoam esta locomotiva de hiatos,
transportadora da morte e da vida, juntas por engano,
mergulhadas no profano desejo de um impossível abraço.

tudo se desloca para um paradeiro incerto,
mas a marcha não pode ser interrompida
e dentro de alguns anos alcanço a pátria do esquecimento.

antes de partir, pensei em verso branco no teu morto rosto.

 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013


Lá fora, indolente, arde um país,
em terras onde outrora medrou a vida.
Dentro de mim, arde uma ferida,
em memórias que hoje volveram cicatriz.

sábado, 15 de junho de 2013

Molem agitat mens

A Mário Cesariny


«Ser poeta é ser mais alto.» Nada tão errado como isto.
É inegável que a escrita funciona sempre como um meio amplificador da essência de cada autor. Cada poeta é um mundo, tal como cada pessoa o é, este apenas o consegue sublimar e torná-lo mais denso. E esse mundo, despojado da sua ordinariedade, válido apenas pela atração do ser humano pela Metáfora – femme fatale -, é recebido, assimilado e transformado num universo por aqueles que o lêem. O leitor acaba então por ser a foz de cada poeta, de cada romancista, de cada artista. O rio encontra finalmente o oceano que vislumbrou ao abandonar as encostas íngremes da montanha.
Assim sendo, o artista principia sempre a sua obra com um olhar abrangente e altivo. Observa o que o rodeia, mas devido à distância a que se encontra da terra, acaba por não conseguir focar os mais pequenos detalhes cintilantes do meio que o circunda e envolve. Desse modo, deve habitar sempre na «alma» do artista a atracção pelo abismo. A melhor forma de entender e apreciar o mundo é rastejando através dele. Tudo se torna maior, nada pode escapar à sua percepção. O artista fica então em alerta máximo para os mais pequenos acontecimentos: o leve restolhar da vida sobre a morte torna-se então perceptível.
O artista é uma serpente que não se presta à camuflagem que a lógica lhe oferece. É aquele que não se esconde da morte para não deixar de viver em pleno; é aquele que usurpa e subverte os alicerces mais profundos do pensamento. Numa derradeira análise, o artista é tudo aquilo que conquista através do furto à substância.
A sua essência reside em exibir através do pó terrestre, que traz agarrado à usa existência, a mágica que a brancura das nuvens não reflecte. Enquanto que o sol se torna brando no horizonte, o artista incendeia-se em sensações. Queima, ilumina e germina. Depois disso sobe de novo à montanha. Mas não para olhar a planície. Somente para se precipitar outra vez no vício das cicatrizes.
Molem agitat mens.


sábado, 8 de junho de 2013

utopias tetraplégicas


prometem-te que não morrerás,
mas nunca terás tampouco vivido
e cerrarás os olhos com o orgulho gordo…

escondes-te da morte
e,
ao mesmo tempo,
escondes-te irremediavelmente da vida
– o tempo como veneno.
despertar todos os dias é nocivo,
mas o segredo é não o negar,
deixá-lo alastrar pela carne
e definhar a perfeição
que alguém nos vendeu estragada:
o pior dos vícios é a moral.

dizem-te

não penses,
não corras,
não comas,
não bebas,
não fumes,
não quebres,
não injectes,
não pises,
não grites de prazer ou de raiva,
não vomites a justiça que herdaste, meu filho pródigo!

o que tu não suspeitas é de que és a tua própria epifania
e de que tens concentrada em ti toda a revolta necessária
para pôr fim à tirania da consciência e da estética.

a beleza é o expoente máximo daquilo que os olhos não alcançam,
aquilo que a ética monta no palco perpetuadamente
onde à noite os sonhos que trouxeste de França dançam só para ti.


triste espectáculo este de utopias tetraplégicas!

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Loucos pela Maçã



Sete passos para a verdade humana


I

Penso: o universo é uma obra cubista - de Picasso ou Braque, não importa! A realidade é, per se, uma mera questão de perspectiva. Uma verdade, não importa qual, é sempre um decreto comummente aceite por uma sociedade organizada; é uma convenção estabelecida pela forma como olhamos ou como pensamos. No entanto, serão os nossos sentidos - o olhar em particular - sensores exactos? Não sei!...
Uma verdade pode abranger toda a humanidade ou apenas uma civilização local. A realidade é maleável e a retórica sabe esculpi-la. Se mudarmos as nossas palavras, mudamos o mundo, mudamos a verdade. A equação é simples. A incógnita somos nós. E todos somos diferentes. Obtemos múltiplos resultados. Habitamos, assim, por consequência, distintos mundos.
Acredito na força dos factos, mas todas as conclusões deles extraídas são sempre subjectivas. Então, posto isto, a boa retórica é aquela que nos embala, acalma a existência e nos abranda o batimento cardíaco. Todos gostamos de um bom conto ao adormecer. «E foram felizes para sempre!...» A retórica é a aliança onírica que se molda ao tamanho de qualquer dedo, apontado em prol de qualquer propósito.


II

No discurso dos pensadores gregos Sócrates e Górgias, existe uma plena consciência do poder persuasivo e encantador da palavra. Ambos têm a plena noção de que em muitos assuntos não é possível apurar uma verdade omnipotente. Mas enquanto que para Sócrates o discurso que não se fundamenta na verdade e se centra, sobretudo, na opinião só poderá dar frutos envenenados a quem dele se alimentar, para Górgias o discurso é um «corpo diminuto e quase imperceptível que leva a cabo acções divinas.» Górgias concebe a retórica como uma arte, como um encantamento dos deuses, que, tal como a Poesia, se serve de alguns artifícios, como a melodia e o ritmo, para dessa forma conseguir activar determinados sentimentos nos receptores da mensagem. Por sua vez, Sócrates, também ele, reconhecia que não basta conhecer a realidade; é também necessário saber usar a palavra com engenho. Ele próprio reconhece que o orador sente a necessidade de conhecer quantas formas tem a alma, para, dessa, forma, tornar o seu discurso mais eficaz.
            No fundo, julgo que o principal ponto em que diferem estes dois pensadores é nas suas definições de arte. Sócrates pensa que a arte discursiva deve estar subjugada à verdade, deve provir dela; Górgias passa a verdade e realidade para segundo plano, embora saiba que a retórica pode servir para enganar o espírito, e dá primazia às técnicas e encantos discursivos, que acabam por conseguir moldar os factos. Porém, a meu ver, essa lapidação dos factos não constitui nenhuma imoralidade, pois as conclusões que deles retiramos são sempre subjectivas.

III

Aristóteles, na sua concepção da retórica, demarca-se nitidamente de Platão e de Górgias. Ele concebe a retórica como uma técnica que, sendo bem usada, quando usada de boa-fé, pode ser muito útil. Ao contrário de outras disciplinas, a retórica é flexível. Isso já o dizia Górgias, um sofista, que tinha uma perfeita consciência do poder mágico e encantador da palavra. Ao contrário de Sócrates, que defendia que antes de se partir para qualquer argumentação se deveria ter um conhecimento pleno da verdade e do justo, reduzindo a realidade a uma figura plana, Górgias encarava a realidade e a verdade como um poliedro, passível de ser interpretado através de diversas perspectivas. Este é um ponto em que Aristóteles e Górgias coincidem.
            No entanto, enquanto Górgias considerava a retórica uma arte, Aristóteles encara-a como uma técnica. Ou seja, a retórica não é nem um veneno nem uma poção mágica: é uma ferramenta. Há, portanto, que saber “manuseá-la”. A forma deve sempre coadunar-se com o conteúdo; não deve distorcê-lo. Ainda que o conteúdo seja esse poliedro confuso que referi.

IV

O Homem, culpado ou não por ter criado dentro de si uma série de teias e conexões perigosas e frágeis, mas que ao mesmo tempo lhe dão a desejada sensação de superioridade, vê-se mergulhado numa série de convenções. A verdade e a mentira, o bem e mal, a moral e a imoralidade, o certo e errado, tudo conceitos que toldam a sua percepção e o seu universo, embora aparentemente o expandam. O ser humano usa a palavra como um signo para tudo aquilo que percepciona e racionaliza, sem compreender a falácia em que incorre ao proceder a uma generalização. E, arrisco-me a dizer, todas as generalizações estão providas do erro, incluindo esta.
Perdemos assim a nossa centelha da genuinidade, tornámo-nos seres calculistas, redutores em relação a tudo aquilo que nos rodeia na tentativa de nos amplificarmos e encontrarmos na Maçã a realização plena. Temos nomes que nada dizem acerca de nós próprios. Temos números que logicamente provam aquilo que não podemos verificar. Temos conceitos e valores enraizados que nos conduzem a cada acção que tomamos. Temos deuses como solução para aquilo que não poderemos nunca perceber. Tomamos o acaso como a principal pedra no sapato, quando, na verdade, o maior de todos os nossos problemas é a pouca homogeneidade e compactação entre tudo aquilo que vamos convencionando.
E o que fazemos quando uma nova ideia põe em causa todas aquelas que entretanto já estão solidificadas, emaranhadas umas com as outras? Activamos o nosso sentido prático! Rejeitamos aquilo que nos desafia e que obrigaria a uma total reformulação. No entanto, o tempo passa e essa ideia assaltará um outro alguém e depois um outro e depois um outro ainda. E começamos a perceber que afinal o impossível batia certo. Raios partam os loucos!...

V

A realidade é isto.
Imaginemos a realidade como um ser, híbrido e mutável, como qualquer outro, sujeito a uma evolução natural. A construção da realidade é feita a cada instante; é, por fim, até ao fim, o encadeamento das várias verdades que se vão conectando e sobrepondo umas às outras. Contemplemos a realidade como uma obra cubista, onde vários planos se cruzam; uma intersecção de perspectivas. A catharsis do real reside no infinito, pois a imaginação e a necessidade humana não têm limites.
            A eternidade é feita de uma sucessão infindável de momentos. E é desta forma, também, que o real, passo-a-passo, continua o seu caminho de forma a ajustar-se a um universo sem limites. Aquilo que racionalizamos e sistematizamos – o verdadeiro e o falso, o positivo e o negativo, o puro e o impuro, justo e o injusto – é então um legado inacabado, embora, muitas vezes, aos nossos olhos, nos pareça uma obra perfeita. Somos os herdeiros, o resultado, da operação plástica que impusemos a tudo aquilo que nos rodeia. Mas somos mais do que isso! Somos, enquanto espécie, os seus obreiros perpétuos.
            A realidade não está, por conseguinte, dependente do ponto de vista de cada ser pensante que a contempla e julga poder agarrar a sua sempiternidade. As nossas mãos apenas a podem impelir numa ou noutra direcção; podemos esticá-la um pouco mais, reduzi-la, ajustá-la às nossas feições e aos nossos interesses.
            Esqueçam a frase com que iniciei este texto. Afinal, agora, a realidade é isto. Daqui a instantes, será isto e também aquilo que está por vir. Assim, sucessivamente, durante todas as eras futuras deste mundo e desta espécie sujeita a evolução, ela será isto e aquilo, isto e aquilo, isto e aquilo, isto e aquilo…

VI

Futuro. Progresso. Conceitos inconcretos, mas alinhavantes do pensamento modernista, que se tornaram, durante a primeira metade do séc.XX, quase dogmas unificadores da sociedade capitalista ocidental. O modernismo surge como uma nova crença, apoiada nos avanços científicos e tecnológicos, tida como o caminho que o Homem trilha em direcção à omnipotência e à libertação dos medos. Ao contrário de um mito, que sustenta a sua existência num hipotético acontecimento passado, o modernismo olha em frente, apontando para o Übermensh de que Zaratustra falava.
Embora, per se, a era modernista tivesse um carácter quase profético acabou por se diferenciar do plano mítico na medida em que fez da ciência e do positivismo o seu santo graal. Imperou nessa época uma total acreditação nas capacidades e nos valores da humanidade. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a raça humana conheceu-se, de forma cruel, a si própria e percebeu que o conhecimento não lhe retirou por completo a bestialidade que tentara expulsar durante toda a sua evolução enquanto espécie.
E assim morreu mais uma crença, talvez a última que vingou no mundo ocidental. O ultra-humano foi desacreditado e emergiu, por fim, o homem niilista: aquele que não “desbrava florestas virgens”, pois o cansaço nasceu com ele; aquele que não olha nem para o futuro nem para o passado; aquele que não aponta o caminho a ninguém, talvez por também se encontrar perdido.


“Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”

José Régio, in Cântico Negro

VII

Para o filósofo niilista John Gray, o Homem – não a humanidade, pois para o autor esse conceito não contém um significado real – é apenas mais uma espécie que constitui a biodiversidade do (nosso planeta) planeta que habitamos. É inerente à condição humana a ideia de que somos responsáveis por nós, enquanto colectivo, e pelo mundo. Desenvolvemos formas de controlar e manipular tudo aquilo que nos rodeia. Criamos a moral, códigos de conduta, para dessa forma camuflarmos os nossos instintos mais básicos. Arquitectamos grandes narrativas, construímos sonhos colossais. Movemo-nos em nome do progresso, do bem comum e tendemos a anular o carácter individual da nossa existência. Não somos mais do que hóspedes neste mundo, mas tomamo-lo como uma herança. E, sabe-se, onde há herança, há irmãos que guerreiam.
Assim acontece entre todos nós, homens de todo o mundo. Por querermos ser deuses, inventámos demónios de veludo – a ciência. Ela não é mais do que uma utopia sofisticada – uma “versão secular do cristianismo” segundo o autor. Usamos o avanço tecnológico contra nós mesmos; somos predadores e presas de nós mesmos. Per se, um animal não é bom ou mau. É. Simplesmente. Mais nada! Mas o Homem deseja ser mais, pois sabe ser menos do que a entidade que inventou: deus.
Somos uns mais ou somos mais uns? Somos universos caóticos dentro dos mundos que são os nossos corpos. Queimamos e queimamo-nos pelo fogo que Prometeu ousou roubar.