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sábado, 15 de junho de 2013

Molem agitat mens

A Mário Cesariny


«Ser poeta é ser mais alto.» Nada tão errado como isto.
É inegável que a escrita funciona sempre como um meio amplificador da essência de cada autor. Cada poeta é um mundo, tal como cada pessoa o é, este apenas o consegue sublimar e torná-lo mais denso. E esse mundo, despojado da sua ordinariedade, válido apenas pela atração do ser humano pela Metáfora – femme fatale -, é recebido, assimilado e transformado num universo por aqueles que o lêem. O leitor acaba então por ser a foz de cada poeta, de cada romancista, de cada artista. O rio encontra finalmente o oceano que vislumbrou ao abandonar as encostas íngremes da montanha.
Assim sendo, o artista principia sempre a sua obra com um olhar abrangente e altivo. Observa o que o rodeia, mas devido à distância a que se encontra da terra, acaba por não conseguir focar os mais pequenos detalhes cintilantes do meio que o circunda e envolve. Desse modo, deve habitar sempre na «alma» do artista a atracção pelo abismo. A melhor forma de entender e apreciar o mundo é rastejando através dele. Tudo se torna maior, nada pode escapar à sua percepção. O artista fica então em alerta máximo para os mais pequenos acontecimentos: o leve restolhar da vida sobre a morte torna-se então perceptível.
O artista é uma serpente que não se presta à camuflagem que a lógica lhe oferece. É aquele que não se esconde da morte para não deixar de viver em pleno; é aquele que usurpa e subverte os alicerces mais profundos do pensamento. Numa derradeira análise, o artista é tudo aquilo que conquista através do furto à substância.
A sua essência reside em exibir através do pó terrestre, que traz agarrado à usa existência, a mágica que a brancura das nuvens não reflecte. Enquanto que o sol se torna brando no horizonte, o artista incendeia-se em sensações. Queima, ilumina e germina. Depois disso sobe de novo à montanha. Mas não para olhar a planície. Somente para se precipitar outra vez no vício das cicatrizes.
Molem agitat mens.


sábado, 8 de junho de 2013

utopias tetraplégicas


prometem-te que não morrerás,
mas nunca terás tampouco vivido
e cerrarás os olhos com o orgulho gordo…

escondes-te da morte
e,
ao mesmo tempo,
escondes-te irremediavelmente da vida
– o tempo como veneno.
despertar todos os dias é nocivo,
mas o segredo é não o negar,
deixá-lo alastrar pela carne
e definhar a perfeição
que alguém nos vendeu estragada:
o pior dos vícios é a moral.

dizem-te

não penses,
não corras,
não comas,
não bebas,
não fumes,
não quebres,
não injectes,
não pises,
não grites de prazer ou de raiva,
não vomites a justiça que herdaste, meu filho pródigo!

o que tu não suspeitas é de que és a tua própria epifania
e de que tens concentrada em ti toda a revolta necessária
para pôr fim à tirania da consciência e da estética.

a beleza é o expoente máximo daquilo que os olhos não alcançam,
aquilo que a ética monta no palco perpetuadamente
onde à noite os sonhos que trouxeste de França dançam só para ti.


triste espectáculo este de utopias tetraplégicas!

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Loucos pela Maçã



Sete passos para a verdade humana


I

Penso: o universo é uma obra cubista - de Picasso ou Braque, não importa! A realidade é, per se, uma mera questão de perspectiva. Uma verdade, não importa qual, é sempre um decreto comummente aceite por uma sociedade organizada; é uma convenção estabelecida pela forma como olhamos ou como pensamos. No entanto, serão os nossos sentidos - o olhar em particular - sensores exactos? Não sei!...
Uma verdade pode abranger toda a humanidade ou apenas uma civilização local. A realidade é maleável e a retórica sabe esculpi-la. Se mudarmos as nossas palavras, mudamos o mundo, mudamos a verdade. A equação é simples. A incógnita somos nós. E todos somos diferentes. Obtemos múltiplos resultados. Habitamos, assim, por consequência, distintos mundos.
Acredito na força dos factos, mas todas as conclusões deles extraídas são sempre subjectivas. Então, posto isto, a boa retórica é aquela que nos embala, acalma a existência e nos abranda o batimento cardíaco. Todos gostamos de um bom conto ao adormecer. «E foram felizes para sempre!...» A retórica é a aliança onírica que se molda ao tamanho de qualquer dedo, apontado em prol de qualquer propósito.


II

No discurso dos pensadores gregos Sócrates e Górgias, existe uma plena consciência do poder persuasivo e encantador da palavra. Ambos têm a plena noção de que em muitos assuntos não é possível apurar uma verdade omnipotente. Mas enquanto que para Sócrates o discurso que não se fundamenta na verdade e se centra, sobretudo, na opinião só poderá dar frutos envenenados a quem dele se alimentar, para Górgias o discurso é um «corpo diminuto e quase imperceptível que leva a cabo acções divinas.» Górgias concebe a retórica como uma arte, como um encantamento dos deuses, que, tal como a Poesia, se serve de alguns artifícios, como a melodia e o ritmo, para dessa forma conseguir activar determinados sentimentos nos receptores da mensagem. Por sua vez, Sócrates, também ele, reconhecia que não basta conhecer a realidade; é também necessário saber usar a palavra com engenho. Ele próprio reconhece que o orador sente a necessidade de conhecer quantas formas tem a alma, para, dessa, forma, tornar o seu discurso mais eficaz.
            No fundo, julgo que o principal ponto em que diferem estes dois pensadores é nas suas definições de arte. Sócrates pensa que a arte discursiva deve estar subjugada à verdade, deve provir dela; Górgias passa a verdade e realidade para segundo plano, embora saiba que a retórica pode servir para enganar o espírito, e dá primazia às técnicas e encantos discursivos, que acabam por conseguir moldar os factos. Porém, a meu ver, essa lapidação dos factos não constitui nenhuma imoralidade, pois as conclusões que deles retiramos são sempre subjectivas.

III

Aristóteles, na sua concepção da retórica, demarca-se nitidamente de Platão e de Górgias. Ele concebe a retórica como uma técnica que, sendo bem usada, quando usada de boa-fé, pode ser muito útil. Ao contrário de outras disciplinas, a retórica é flexível. Isso já o dizia Górgias, um sofista, que tinha uma perfeita consciência do poder mágico e encantador da palavra. Ao contrário de Sócrates, que defendia que antes de se partir para qualquer argumentação se deveria ter um conhecimento pleno da verdade e do justo, reduzindo a realidade a uma figura plana, Górgias encarava a realidade e a verdade como um poliedro, passível de ser interpretado através de diversas perspectivas. Este é um ponto em que Aristóteles e Górgias coincidem.
            No entanto, enquanto Górgias considerava a retórica uma arte, Aristóteles encara-a como uma técnica. Ou seja, a retórica não é nem um veneno nem uma poção mágica: é uma ferramenta. Há, portanto, que saber “manuseá-la”. A forma deve sempre coadunar-se com o conteúdo; não deve distorcê-lo. Ainda que o conteúdo seja esse poliedro confuso que referi.

IV

O Homem, culpado ou não por ter criado dentro de si uma série de teias e conexões perigosas e frágeis, mas que ao mesmo tempo lhe dão a desejada sensação de superioridade, vê-se mergulhado numa série de convenções. A verdade e a mentira, o bem e mal, a moral e a imoralidade, o certo e errado, tudo conceitos que toldam a sua percepção e o seu universo, embora aparentemente o expandam. O ser humano usa a palavra como um signo para tudo aquilo que percepciona e racionaliza, sem compreender a falácia em que incorre ao proceder a uma generalização. E, arrisco-me a dizer, todas as generalizações estão providas do erro, incluindo esta.
Perdemos assim a nossa centelha da genuinidade, tornámo-nos seres calculistas, redutores em relação a tudo aquilo que nos rodeia na tentativa de nos amplificarmos e encontrarmos na Maçã a realização plena. Temos nomes que nada dizem acerca de nós próprios. Temos números que logicamente provam aquilo que não podemos verificar. Temos conceitos e valores enraizados que nos conduzem a cada acção que tomamos. Temos deuses como solução para aquilo que não poderemos nunca perceber. Tomamos o acaso como a principal pedra no sapato, quando, na verdade, o maior de todos os nossos problemas é a pouca homogeneidade e compactação entre tudo aquilo que vamos convencionando.
E o que fazemos quando uma nova ideia põe em causa todas aquelas que entretanto já estão solidificadas, emaranhadas umas com as outras? Activamos o nosso sentido prático! Rejeitamos aquilo que nos desafia e que obrigaria a uma total reformulação. No entanto, o tempo passa e essa ideia assaltará um outro alguém e depois um outro e depois um outro ainda. E começamos a perceber que afinal o impossível batia certo. Raios partam os loucos!...

V

A realidade é isto.
Imaginemos a realidade como um ser, híbrido e mutável, como qualquer outro, sujeito a uma evolução natural. A construção da realidade é feita a cada instante; é, por fim, até ao fim, o encadeamento das várias verdades que se vão conectando e sobrepondo umas às outras. Contemplemos a realidade como uma obra cubista, onde vários planos se cruzam; uma intersecção de perspectivas. A catharsis do real reside no infinito, pois a imaginação e a necessidade humana não têm limites.
            A eternidade é feita de uma sucessão infindável de momentos. E é desta forma, também, que o real, passo-a-passo, continua o seu caminho de forma a ajustar-se a um universo sem limites. Aquilo que racionalizamos e sistematizamos – o verdadeiro e o falso, o positivo e o negativo, o puro e o impuro, justo e o injusto – é então um legado inacabado, embora, muitas vezes, aos nossos olhos, nos pareça uma obra perfeita. Somos os herdeiros, o resultado, da operação plástica que impusemos a tudo aquilo que nos rodeia. Mas somos mais do que isso! Somos, enquanto espécie, os seus obreiros perpétuos.
            A realidade não está, por conseguinte, dependente do ponto de vista de cada ser pensante que a contempla e julga poder agarrar a sua sempiternidade. As nossas mãos apenas a podem impelir numa ou noutra direcção; podemos esticá-la um pouco mais, reduzi-la, ajustá-la às nossas feições e aos nossos interesses.
            Esqueçam a frase com que iniciei este texto. Afinal, agora, a realidade é isto. Daqui a instantes, será isto e também aquilo que está por vir. Assim, sucessivamente, durante todas as eras futuras deste mundo e desta espécie sujeita a evolução, ela será isto e aquilo, isto e aquilo, isto e aquilo, isto e aquilo…

VI

Futuro. Progresso. Conceitos inconcretos, mas alinhavantes do pensamento modernista, que se tornaram, durante a primeira metade do séc.XX, quase dogmas unificadores da sociedade capitalista ocidental. O modernismo surge como uma nova crença, apoiada nos avanços científicos e tecnológicos, tida como o caminho que o Homem trilha em direcção à omnipotência e à libertação dos medos. Ao contrário de um mito, que sustenta a sua existência num hipotético acontecimento passado, o modernismo olha em frente, apontando para o Übermensh de que Zaratustra falava.
Embora, per se, a era modernista tivesse um carácter quase profético acabou por se diferenciar do plano mítico na medida em que fez da ciência e do positivismo o seu santo graal. Imperou nessa época uma total acreditação nas capacidades e nos valores da humanidade. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a raça humana conheceu-se, de forma cruel, a si própria e percebeu que o conhecimento não lhe retirou por completo a bestialidade que tentara expulsar durante toda a sua evolução enquanto espécie.
E assim morreu mais uma crença, talvez a última que vingou no mundo ocidental. O ultra-humano foi desacreditado e emergiu, por fim, o homem niilista: aquele que não “desbrava florestas virgens”, pois o cansaço nasceu com ele; aquele que não olha nem para o futuro nem para o passado; aquele que não aponta o caminho a ninguém, talvez por também se encontrar perdido.


“Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”

José Régio, in Cântico Negro

VII

Para o filósofo niilista John Gray, o Homem – não a humanidade, pois para o autor esse conceito não contém um significado real – é apenas mais uma espécie que constitui a biodiversidade do (nosso planeta) planeta que habitamos. É inerente à condição humana a ideia de que somos responsáveis por nós, enquanto colectivo, e pelo mundo. Desenvolvemos formas de controlar e manipular tudo aquilo que nos rodeia. Criamos a moral, códigos de conduta, para dessa forma camuflarmos os nossos instintos mais básicos. Arquitectamos grandes narrativas, construímos sonhos colossais. Movemo-nos em nome do progresso, do bem comum e tendemos a anular o carácter individual da nossa existência. Não somos mais do que hóspedes neste mundo, mas tomamo-lo como uma herança. E, sabe-se, onde há herança, há irmãos que guerreiam.
Assim acontece entre todos nós, homens de todo o mundo. Por querermos ser deuses, inventámos demónios de veludo – a ciência. Ela não é mais do que uma utopia sofisticada – uma “versão secular do cristianismo” segundo o autor. Usamos o avanço tecnológico contra nós mesmos; somos predadores e presas de nós mesmos. Per se, um animal não é bom ou mau. É. Simplesmente. Mais nada! Mas o Homem deseja ser mais, pois sabe ser menos do que a entidade que inventou: deus.
Somos uns mais ou somos mais uns? Somos universos caóticos dentro dos mundos que são os nossos corpos. Queimamos e queimamo-nos pelo fogo que Prometeu ousou roubar.