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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

princípios de hipotermia

I

nós, humanos, tantas vezes,
usamos os sentimentos como moedas
e as moedas como evidência do sentir.
mas nem mesmo as moedas têm um valor inalterável.

II

o medo é um monstro cobarde.
sonda-nos sobretudo quando estamos sozinhos,
entregues a nós mesmos:
a tudo aquilo que desconhecemos.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

vista nocturna de uma manhã citadina

as ruas foram despojadas de caminhos
não sabem para onde vão       mas seguem
encontram-se casualmente nas encruzilhadas
onde também as multidões param e avançam
também elas perdidas
também elas cansadas da poética das cidades

um avião traça nos céus uma linha de fumo
e ninguém suspeita para onde se dirige

lá do alto parecemos pequenos e irrisórios
vistos da terra parecemos provisórios espelhos
baços por tudo aquilo que nos rodeia

à parte disto sobra-nos a arte de pasmar
com a nossa própria efémera e curta significância
porque aqueles que se julgam maiores são deuses

e de nada serve ser divino em cidades sem crenças

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

bucólica melodia

vagueiam pelos reinos desta noite jovem os gastos dias
arrastam-se
tropeçam
moribundos como cartas de primaveras distantes que ardem
agora no interior do silêncio
e do medo niilista

à chuva
um pedante pedinte dança envolto numa bucólica melodia
e um cão vadio corre em círculos em seu redor

os dois sabem
que nada têm a celebrar senão a fome que os faz sentir vivos

no interior da casa e de estômagos cheios
eu e a insónia deixamo-nos ficar
a contemplar pela janela entreaberta a estranha dança da vida

porque pode ser que nos atire uma moeda

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Conversa de ocasião numa tarde de Outubro

- Então que tal vai a vida?
- Sabes como são aqueles momentos
em que te sentes cansado de tudo
e, no entanto, não sabes bem qual é o motivo,
nem tampouco consegues explicar
esse cansaço a outra pessoa?
- Sei.
- Pois!... Mas não é bem isso!
- Então?
- Não sei.
- Não sabes ou não queres contar?
- Não sei se quero, portanto sei que não sei.

- E, de resto, está tudo bem?
- Sim, está tudo bem.
- O tempo tem estado uma merda!...
Parece que o Inverno veio mais cedo.
- Não valia a pena esperar. Fez bem em vir!
- Porquê?
- Porque, para mim, o Outono é perpétuo.
- Pareces os velhos a falar…
- Sabes o que faz cair as folhas das árvores?
- Não.
- Não tem a ver com o tempo.
- Então?
- Com a falta de luz.

- Não gosto quando te pões com metáforas.
- Desculpa! Pago-te um copo para compensar.
- E brindamos a quê?
- Não sei.