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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Éter

Pedes-me a eternidade e eu dou-te simplesmente este momento,
esperando que o enlaces nos teus dedos de veludo delicado
– dois fortes nós com o débil cordel da memória. Segura-o bem,
exibe-o como uma criança a quem ofereceram um balão colorido.
Corre de olhos fechados, deixa-te levitar e lê os poemas do vento,

mas não agora.

Pedes-me a rectidão, a mim condenado a uma existência elíptica,
a todos os contra-sensos que os dias me deixam no baço espelho.
É simples o que te prometo: não a lonjura do mar ou das estrelas,
mas antes um passeio que os nossos beijos tornarão cruelmente curto
porque o tempo, deus sempre ciumento, nunca se esquece de nós,
mesmo quando num compasso lento e doce nos olvidamos da sua sombra.

Agora, enquanto escrevo estas palavras, Dezembro deita-se nas ruas,
pois todos os homens ignoram a sua presença e tentam dormir.
Mas eu e tu sabemos extrair o sublime destas noites áridas e gélidas,
pois são elas que nos lembram o lugar de tudo o que nos mantem quentes
- cobertores: armário grande – e que nos levam sempre a concluir
que acreditar também aconchega. E o tempo confirma. Eterno é nada.

Dezembro há-de morrer. Nesse momento, espero que saias à rua,
que corras, que desafies o vento e que, por fim, percas o teu balão.
Porque entretanto ele perderá a cor,
mas nesse instante, julgo, terei ainda ar para encher um outro.

Assim sendo, apenas te peço que sejas o éter.



sábado, 21 de dezembro de 2013

Passagem


Um homem caminha dentro da noite. Uma noite caminha dentro do homem. Um vento vindo do ártico assoma-se dos sentidos quase anulados. As pálpebras pesadas. As mãos recolhidas nos bolsos do sobretudo velho. As orelhas tapadas pelo gorro. O nariz congestionado por uma constipação que não passa. O paladar quase esquecido do sabor de uma refeição quente. Pelas ruas da cidade, nunca tão longas como hoje, um homem prossegue na sua lenta e triste marcha. A vida, por vezes, resume-se à sobrevivência. Resistir. Continuar apenas para não desistir.
As ruas passam, como efémeros souvenirs, por este homem de olhos cristalizados e perdidos, de propósitos abandonados. As memórias como mortos cardos. Dias passados e esbatidos, como retratos antigos, esquecidos pelo sarcasmo do tempo. O tempo que lhe é escasso. O rio sempre passa e o seu passo é mais lento. Os seus pés estão trocados e ele não sabe para onde ir. Todos os rios são levados até o mar os engolir.
As fachadas tristes dos velhos prédios estão iluminadas. As luzes eléctricas das casas estão acesas – forma gélida de manter distante o frio e as trevas. Mas a noite permanece à janela, debruçada no parapeito, à espera que alguém, no âmago da solidão, a cumprimente e se apaixone pelas estrelas e pelos sonhos que a elas estão abraçados. Dentro dessas casas, nas salas de jantar, famílias inteiras estão reunidas. As crianças correm alvoraçadas pelos corredores, na urgência característica de quem não compreende ainda o compasso amargo dos relógios; na avidez de desembrulharem presentes. Sentados à mesa, os homens contam as mesmas histórias de todos os anos e depois perguntam pelo jantar, apesar da mesa estar recheada de doces e frutos secos. Na cozinha, as mulheres atarefadas entreajudam-se e aborrecem-se com o bacalhau que nunca mais coze, mas sorriem porque é costume neste dia. Enquanto isto, as luzes da árvore de natal brilham intermitentemente e iluminam mesmas bolas e as mesmas fitas que a ornamentam desde sempre e que dizem “Bom Natal e Feliz Ano Novo”.
O ventou acalmou agora um pouco e, lá fora, o transeunte está prestes a chegar ao seu destino. É a primeira vez que vem ao encontro deste lugar. Nunca se imaginou a fazer este percurso. Chega. Detém-se na proximidade de uma enorme estrutura pré-fabricada, coberta por um plástico impermeável branco, que, no meio da noite, se insurge como uma miragem cálida mas excruciante. A vergonha que sente de entrar e a necessidade de o fazer combatem entre si. Hesita. As lágrimas descobrem a saída do seu corpo, mas só uma é capaz de lhe escapar pelo rosto parado.
Depois de se recompor, olha para o interior daquele lar improvisado, alegoria de presépio, e apercebe-se de que dezenas de pessoas já ceiam. Parecem alegres. Outras, organizadas numa fila que se prolonga quase até à entrada, aguardam pela sua vez, pela sua refeição. Enquanto isso, conversam. Matam a fome, a solidão e as angústias. Ao fundo, num canto, um homem magro e velho, de cabelos e barbas grisalhas, vai tocando na harmónica músicas de natal.
Finalmente decide entrar, embora essa fosse a sua única alternativa. Junta-se à fila e aguarda. Não conversa com ninguém. Os olhos a fixarem o chão. Chega a sua vez e a senhora que o serve, com um sorriso vivo no rosto, pergunta-lhe, O que vai ser? Tremulamente responde-lhe, Queria três refeições para levar para casa, se faz favor. Ainda sorrindo, a senhora pergunta-lhe se é o primeiro ano que ali vai, enquanto vai enchendo três tupperwares com bacalhau, batatas, couves e cenouras cozidas; à parte, coloca numa caixa alguns sonhos e rabanadas. O homem acena afirmativamente com a cabeça e, em seguida, ela entrega-lhe tudo num saco plástico. Tem filhos pequenos?, insiste ainda. Ele solta um sim quase mudo e, perante essa resposta, a senhora coloca um pai natal de chocolate dentro do saco. Nesse momento, ele sorri também e, pela primeira vez na sua vida, percebe que a palavra obrigado é bonita. Obrigado, minha senhora! Muito obrigado!
Afasta-se agora da melodia viva da harmónica e das conversas das pessoas. O mundo exterior outra vez. A noite e o vento frio de novo. As ruas de novo, mas um novo alento também. A ânsia de chegar a casa, de abraçar emocionado a mulher que o espera e, depois, pousar o pai natal de chocolate, que leva na mão para não o partir, debaixo da árvore de natal
despida . Sentado no seu colo, depois do jantar, o seu pequeno e único filho rasgará a folha de prata envolvente e partirá o pai natal em pedaços. Todos rirão muito quando o pai disser, Mataste o Pai Natal!
Agora só lhe falta chegar a casa, mas pelo caminho o som da harmónica ainda ecoa no seu pensamento, fazendo-o pensar que a vida afinal é muito mais do que a sobrevivência. Tal como os alimentos, também os sentimentos hão-de chegar quentes a casa.
Um homem caminha dentro da noite. Uma noite caminha dentro do homem.



domingo, 1 de dezembro de 2013

Dégradé

Gosto de pensar em mim como um pintor
e não como um escrevinhador.
Se as imagens nos falam ao ouvido,
as palavras também pintam, para deleite  dos olhos.
Os dias que por mim passam sem grande alarde
são a minha gradiência.