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domingo, 19 de junho de 2011

PALAVRAS EM GUERRA (DEPOIS DE ABRIL)




De Lisboa até Beja passam-se três horas e meia na carreira. O ar é pouco e a gente muita. A velha carreira é lenta e o tempo também. Pela janela a paisagem apresenta-se quase imutável. A planície, resplandecente pelo sol alto da tarde quente, parece infinita. A minha cabeça, pousada sobre a minha mão cerrada, tem um peso mil vezes mais pesado que o seu peso: pensamentos.

Os meus pensamentos parecem infinitos, mas todos findam na mesma imagem, no mesmo rosto, na mesma voz que nunca escutei…mas conheço-a. Conheço-a tão bem. Falou comigo tantas vezes naquele mato mortal. Pediu-me tantas vezes que voltasse e eu, sem saber de mais nada, sabia apenas que um dia voltaria. Não era da razão que nascia a promessa, era da minha vontade rodeada de balas.

Trago no bolso da camisa uma fotografia, a única que tenho dela. Esteve sempre perto de mim, em diferentes bolsos. Na parte de trás tem uns rabiscos. Tem o nome do Damiano, escrito numa letra confusa, e tem o nome dela: Maria: escrito numa letra mais bela. Foi a última coisa que o Damiano fez antes de morrer. Escreveu o seu nome ao lado do nome daquela mulher, que já lá estava escrito ainda antes da nossa partida para a guerra, escrito ainda antes da chegada daquela guerra que levou o Damiano e me deixou a mim esta fotografia.

Olho-a mais uma vez. Demoro-me. Falta pouco para chegarmos a Beja. Guardo-a de novo. À minha volta os velhos vão falando. Não os oiço. À minha volta ninguém me chama. Consigo ouvi-la tão bem…

quarta-feira, 15 de junho de 2011

LEIAM E VOTEM

Decidi concorrer ao concurso "Conte Connosco", organizado pelo Banco Santander, com o trabalho "Palavras em Guerra". Vamos pessoal, leiam e votem, caso tenham gostado.

link: http://www.conteconnosco.com/trabalho-detalhe.php?id=686

Quero também agradecer pelo fantástico número de visitas ao blogue durante este mês.

A todos vocês o meu muito obrigado!

segunda-feira, 13 de junho de 2011

PALAVRAS EM GUERRA (CARTAS PARA A MINHA MÃE)


Luto por Portugal. Luto por todos nós e por nós sobrevivo, mãe.

Gostava de ver o teu orgulho ao ler estas palavras, que o meu rosto inexpressivo não te poderia nunca dar. Gostava de ser menino outra vez, gostava de pousar a minha cabeça no teu colo de novo. Gostava de poder chorar. Como eu gostaria mãe.

Aqui sou eu e os outros: uma guerra infindável entre soldados, que não são mais que meros peões. Tão cansados. Sinto-me cansado, mãe. Não digo que tenho medo, mas sinto medo. Não poderei nunca dize-lo. Porque o medo sem ser dito é apenas uma noite de Inverno. Cortante, arrepiante.

As noites aqui são quentes e os dias gelados, mãe. Penso nas histórias que me contavas e nos beijos que me davas para eu adormecer. Penso neles durante estes escuros dias. Mato homens diferentes, iguais a mim durante o dia mãe. A guerra é assim. Sou eu e os outros, separados por balas. Sou eu sem eu mesmo, matando, matando. É a minha voz sem o meu ímpeto, gritando, gritando.

Espero poder voltar. Prometo que voltarei mãe. Espero que me reconheças ainda quando voltar mãe. Não prometo que seja eu.

sábado, 11 de junho de 2011

AS PEDRAS DO VALE


fomos. somos. seremos.
seres fielmente enganados,
todos os dias trocados de mundos.

pessoas correm lá fora, cortantes
para os meus olhos programados.

segundos. horas. dias a fio,
permanecemos assim parados.
eu sem mim, eu sem nós
e tu, ignoras de longe, em silêncios profundos
todos os nomes,
todas as ruas por que passamos.

nós, contigo distante.
nós, um ser ofegante
dormindo ao abrigo das mentiras prometidas.

nós, sempre assim.
eu, agora por fim:
só, sem saber bem de ti…

sabendo apenas que nesse nós existi.

domingo, 5 de junho de 2011

PALAVRAS EM GUERRA



O dia volvera chuvoso e hoje jogava o Benfica. A guerra parava para respirar, para recuperar o seu fôlego mortal. No acampamento as coisas estavam calmas. Um silêncio de Domingo, por vezes cortado com gritos de golo. Era do Eusébio. Todo o regimento explodia de alegria, todos menos eu. Eu apenas escrevia. Mais uma carta: beijos caligrafados que tocam a face que nunca toquei.

Faz já mais de um mês que o meu companheiro, e único amigo, o Damiano, morreu. Uma mina destruiu o seu corpo perante os meus olhos parados, como que presos. Conhecera-o aqui: no mato que não conhecíamos. Éramos muito diferentes. O Damiano falava muito, ria muito, contava histórias da sua terra, do seu mundo, da sua terra…

Costumava falar muito da sua família: da sua mãe, do seu pai morto e dela, tão viva na sua lembrança. Maria. É este o seu nome, que para sempre me unirá ao Damiano. Era frequente ele falar-me dos sonhos que tinha. Todos eles envolviam a Maria. Descrevia-a de forma tão real. Eu não dizia nada, sorvia apenas todas aquelas palavras que iam criando um rosto, alguém belo no meu pensamento.

Estávamos há três semanas em Angola quando o Damiano me pediu, pela primeira vez, para escrever uma carta endereçada à sua moça. Mostrava-se um pouco embaraçado. Não sabia escrever. Sorri-lhe. Disse que escrevia. Ele agradeceu. Foi assim que começou.

Ele ditava tremulamente tudo aquilo que sentia. Enquanto ditava dizia-me constantemente: é uma bela moça; uma moça às direitas. Pedia-me sempre que fizesse uma letra bonita: a mais bonita que houvesse no mundo: pedia ele. Enquanto eu redigia a carta, o Damiano dizia que gostava de ter sido professor: como eu. Pediu-me também que o ensinasse a escrever. Já assinava o seu nome antes de morrer.

Os combates eram duros. A morte estava em todo lado. Nas pedras, no céu, nas árvores, nas águas. Enquanto furávamos pelo mato pisávamos cadáveres, companheiros e inimigos mortos lado a lado. Nos nossos olhos: cansaço; medo; quase morte. Era à noite, no acampamento, que nós soldados, nós homens, nós meninos assustados, encontrávamos algum pouco descanso. Alguns rezavam, outros cantavam. Eu escrevia. Antes escrevia para matar o tempo, agora escrevo para que as minhas palavras vivam no tempo: vivam um dia no coração dela.

Hoje é uma dessas noites, em que, esgotado, escrevo. Hoje o Damiano já não me dita as palavras, hoje as palavras são minhas: sou dono delas e entrego-lhas. Envio-lhas para longe, para Portugal. Para uma aldeia pequena perto de Beja, da qual nada conheço: apenas ela e nem ela conheço. Apenas uma fotografia, que encontrei metida nas coisas do Damiano.

É certo que por esta altura podem estar a pensar que o que faço é errado. Talvez seja mesmo errado. Mas mais do que errado, é inevitável. Ao longo de todas as cartas que lhe escrevi, de todas as que recebi e li para o Damiano, de todas as histórias contadas com palavras doces, de todos os detalhes narrados com pitadas picantes, esta mulher passou a fazer, inexplicavelmente, parte de mim. E eu…eu não a posso remover. Depois de Damiano morrer, tentei parar. Mas não consegui. Continuei a escrever-lhe cartas e mais cartas. Todas diferentes, todas iguais. E o mais espantoso: as minhas cartas tiveram retorno. Ela sentia o mesmo. Estava sozinha e eu, de maneira diferente, também estou.

É certo que estou rodeado de gente, mas estou sozinho. A vida por um fio: um fio de cabelo dela que nunca toquei. Hei-de voltar um dia, prometo isto a mim próprio. Tenho de a conhecer. Tenho de a ver: saber que é real.

Por isso vivo, por isso escrevo, por isso luto por Portugal.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A CASA DO VIOLONCELO - CAPÍTULO III - RESTOS DE REALIDADE




Passaram-se tantos anos desde aquele dia, mas para mim nenhum deixou marca. Nenhum trouxe ar. Nenhum te trouxe de novo. Meu querido David.



Passaram-se tantos anos mas ainda não consegui desprender-me do mundo: da minha casa, deles sobretudo: o meu filho e ela.

Todos os dias observo todos os movimentos que executam. Vejo-os acordar, vejo-os sentados, vejo-os ocupados com nada e depois vêem-me a mim, através de fotografias, mas não me falam. Eu falo com eles. Peço-lhes desculpa e depois choro. Eles não vêem.

Corpos vazios de propósitos vivem,
Comandados por suas células mortas.
Sons esguios, estranhos, me dizem
Velhos ditados que quase nem notas:

“As pessoas sempre seguem o caminho já traçado”

As células estão mortas
e o espírito foi roubado,

por alguém sem culpa sua,
num momento desencontrado.

Por vezes o amor mata,
por vezes o verso é feio,

mas o poema é só um corpo,
por vezes partido ao meio.

Uma vida com falsas razões
movida por linhas confusas:

sensações; palavras obtusas;

células vivas num corpo morto.



Por vezes sinto-me vivo numa realidade morta. É como se tudo aquilo em que toco, fosse vazio. O tempo traiu-me e o espaço encolheu. Vivo preso a esta casa, tal como o violoncelo vive preso ao canto do meu quarto.

A minha mãe por vezes tenta explicar-me mas eu não quero ouvir. Eu quero viver. Eu quero deixar o passado para trás. Eu queria que aquele dia não tivesse existido, mas a nossa vontade é apenas vontade. É algo formado de papel molhado. O meu pai não será amanhã mais do que a fotografia que é hoje.

Há um corpo que se mexe por mim,
uma boca dizente, inventora de palavras,
significados molhados sem fim.

Eu não sei se sou diferente,
se sou igual, ou se um reles animal
domesticado, preso por gente.

Por vezes eu sinto a corda que aperta
e a alma que parece querer explodir,
criar milhares de estilhaços,
pedaços cortantes que atingem o olho cego.

Não nego que gostava de ser um desses bocados,
digo-o com o meu silêncio rouco pelo tempo forjado.
Mas os pedaços eram cobiça,
eram barcos de papel rasgado.

O mundo sabe bem que no fundo eu sou manso,
eu sou mais uma vida comandada pela preguiça.

Ao ser isto assim assim,
em mim quase tenho descanso.

Eu não sou mais do que finjo ser,
sempre tão recto, sempre tão certo.
Por vezes o mundo parece saber
quase que correcto, que eu não estou perto,

que eu não estou perto...



Mas a vida tem de continuar. O meu pai havia de gostar que a nossa vida continuasse. Sei que sim.



A Elisa não costumava falar muito, havia nela algo que era escuro, algo que era só seu. Algo que eu não compreendia. Algo que a minha mãe fingia não compreender. Algo que o meu pai se esforçava por esconder. Durante vários anos foi assim.

Não tinha amigas, apenas a Francisca, sempre se deram muito bem. A minha irmã era mais velha mas gostava de ouvir as histórias da Francisca. Eram histórias em que eu entrava, histórias que nunca a minha irmã tinha vivenciado. Algo lhe foi roubado, algo que eu não compreendia.

- Porque não vens connosco? Vamos passear. A Francisca também gostava que viesses – dizia eu, conhecendo de cor a sua resposta.
- Não posso…
- Porquê? É Domingo! Não trabalhas hoje, se quiseres peço eu ao pai...
-Já disse que não quero!

Nesse momento, algo me fazia desistir, algo que eu não compreendia, talvez fosse o cansaço, talvez fosse a certeza de que o meu esforço nada valia contra a natureza das coisas. Por vezes eu não compreendia a natureza das coisas. Natureza tão pútrida aquela! Mas naquela altura, eu apenas desistia de a perceber.

Antes de sair, pedia dinheiro à minha mãe para um gelado, para uma laranjada, para o que quer que fosse, afinal nada disso era realmente importante. Depois saía, o meu passo era rápido. Tinha todo o tempo do mundo, mas o ritmo da romântica máquina, que em meu peito batia, fazia com que o tempo corresse rápido. Corresse contra a minha vontade, corresse contra mim, corresse contra nós.

Costumávamos passear junto ao rio, depois subíamos, em direcção à Trindade, calmamente, mas num passo acelerado, típico de duas almas jovens. Na rua existia muita gente. Todo um universo de gente: casais idosos passeando naquele Outono, jovens em grupos com rumos quase tão desorientados como as suas palavras, vendedoras de castanhas com as mãos quentes pelo fumo brando, putas encostadas em cada esquina de uma rua duvidosa. Pessoas bem vestidas, pessoas em farrapos, pessoas gordas, pessoas magras, pessoas ricas, pessoas pobres…pessoas.

Nós seguíamos, naquela mancha de gente, coisa de Domingo, olhando as montras, olhando as esplanadas, olhando tudo, olhando nada. Olhávamo-nos mais que tudo.

Tanto tempo depois, ainda não me cansei de a olhar. Parece mais bela todos os dias, mas igual a si mesma em todos eles.



Lembro-me bem do dia em que conheci realmente o meu pai,



Lembro-me bem do dia em que conheci realmente o meu pai,



Sinto falta do meu pai.

Restos de realidade marcam feridas de presença.
Deixadas por meus pais,
deixadas por meus ais,
e pela tua boca calada.

Não, eu não serei mais!