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domingo, 5 de junho de 2011

PALAVRAS EM GUERRA



O dia volvera chuvoso e hoje jogava o Benfica. A guerra parava para respirar, para recuperar o seu fôlego mortal. No acampamento as coisas estavam calmas. Um silêncio de Domingo, por vezes cortado com gritos de golo. Era do Eusébio. Todo o regimento explodia de alegria, todos menos eu. Eu apenas escrevia. Mais uma carta: beijos caligrafados que tocam a face que nunca toquei.

Faz já mais de um mês que o meu companheiro, e único amigo, o Damiano, morreu. Uma mina destruiu o seu corpo perante os meus olhos parados, como que presos. Conhecera-o aqui: no mato que não conhecíamos. Éramos muito diferentes. O Damiano falava muito, ria muito, contava histórias da sua terra, do seu mundo, da sua terra…

Costumava falar muito da sua família: da sua mãe, do seu pai morto e dela, tão viva na sua lembrança. Maria. É este o seu nome, que para sempre me unirá ao Damiano. Era frequente ele falar-me dos sonhos que tinha. Todos eles envolviam a Maria. Descrevia-a de forma tão real. Eu não dizia nada, sorvia apenas todas aquelas palavras que iam criando um rosto, alguém belo no meu pensamento.

Estávamos há três semanas em Angola quando o Damiano me pediu, pela primeira vez, para escrever uma carta endereçada à sua moça. Mostrava-se um pouco embaraçado. Não sabia escrever. Sorri-lhe. Disse que escrevia. Ele agradeceu. Foi assim que começou.

Ele ditava tremulamente tudo aquilo que sentia. Enquanto ditava dizia-me constantemente: é uma bela moça; uma moça às direitas. Pedia-me sempre que fizesse uma letra bonita: a mais bonita que houvesse no mundo: pedia ele. Enquanto eu redigia a carta, o Damiano dizia que gostava de ter sido professor: como eu. Pediu-me também que o ensinasse a escrever. Já assinava o seu nome antes de morrer.

Os combates eram duros. A morte estava em todo lado. Nas pedras, no céu, nas árvores, nas águas. Enquanto furávamos pelo mato pisávamos cadáveres, companheiros e inimigos mortos lado a lado. Nos nossos olhos: cansaço; medo; quase morte. Era à noite, no acampamento, que nós soldados, nós homens, nós meninos assustados, encontrávamos algum pouco descanso. Alguns rezavam, outros cantavam. Eu escrevia. Antes escrevia para matar o tempo, agora escrevo para que as minhas palavras vivam no tempo: vivam um dia no coração dela.

Hoje é uma dessas noites, em que, esgotado, escrevo. Hoje o Damiano já não me dita as palavras, hoje as palavras são minhas: sou dono delas e entrego-lhas. Envio-lhas para longe, para Portugal. Para uma aldeia pequena perto de Beja, da qual nada conheço: apenas ela e nem ela conheço. Apenas uma fotografia, que encontrei metida nas coisas do Damiano.

É certo que por esta altura podem estar a pensar que o que faço é errado. Talvez seja mesmo errado. Mas mais do que errado, é inevitável. Ao longo de todas as cartas que lhe escrevi, de todas as que recebi e li para o Damiano, de todas as histórias contadas com palavras doces, de todos os detalhes narrados com pitadas picantes, esta mulher passou a fazer, inexplicavelmente, parte de mim. E eu…eu não a posso remover. Depois de Damiano morrer, tentei parar. Mas não consegui. Continuei a escrever-lhe cartas e mais cartas. Todas diferentes, todas iguais. E o mais espantoso: as minhas cartas tiveram retorno. Ela sentia o mesmo. Estava sozinha e eu, de maneira diferente, também estou.

É certo que estou rodeado de gente, mas estou sozinho. A vida por um fio: um fio de cabelo dela que nunca toquei. Hei-de voltar um dia, prometo isto a mim próprio. Tenho de a conhecer. Tenho de a ver: saber que é real.

Por isso vivo, por isso escrevo, por isso luto por Portugal.

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