Páginas

quinta-feira, 28 de junho de 2012

cupidos & serpentes






o calor             dos teus lábios
a ficarem retidos num segundo de mel
os meus pensamentos
a possuírem o teu corpo em papel dourado
e a desenharem um cigarro de sentidos
para fumarmos depois
enrolados nos lençóis onde partimos os dentes do siso

[agora              neste momento
em que os nossos nomes regressam: a consciência a chamar]
esqueçamo-nos da realidade absoluta que clama por Cupidos
e não reprimamos os corpos que amiúde transpiram serpentes

a perfeição sempre foi uma puta que não pudemos pagar



quarta-feira, 27 de junho de 2012

mãos no ar!




as cabeças baixas. os braços tombados. o Adamastor a ser mais forte.
e agora, o que vai ser de nós? agora, no momento em que retiramos as bandeiras e, depois de dobradas, as guardamos juntamente com o orgulho na nação numa gaveta escondida da luz; agora, no momento em que amaldiçoamos os espanhóis, os bárbaros que só anseiam por ver o Zé-Povinho a vergar a mola, os romenos dos semáforos e dos hipermercados, a quem dispensamos uma moeda só para satisfazermos os nossos valores morais, e os ucranianos que chacinam de forma selvagem cães e gatos que deambulam pelas ruas do seu país – não, nós, povo com uma forte tradição tauromáquica, não nos identificamos com tais actos, que gentinha! agora, no momento em que se desvaneceu toda a esperança e em que os navegadores portugueses e a sua coragem voltaram a ser um assunto distante, apenas lembrado para o exame nacional de História, antevemos a reanimação de algumas palavras que, como mortos-vivos, nos assombram: crise, austeridade, desemprego, défice. agora, no momento em que damos à costa, como náufragos orgulhosos de uma embarcação que se partiu com toda a pompa e circunstância, percebemos que afinal a realidade não parou para ver os golos e as fintas do Ronaldo. a realidade: ela esteve sempre por detrás dos nossos olhos absortos na televisão, como um zumbido ligeiro para os nossos ouvidos, como uma interferência ligeira na emissão do relato.
o que vai ser desta gente toda amanhã quando acordar, depois de abertos os olhos e da tomada de consciência da sua quase-cegueira e da sua quase-surdez? sim, eu sei, temos o dom da visão, caso contrário eu não estaria aqui a escrever este texto e vocês não estariam, neste momento, a lê-lo. (vês? afinal conseguimos ver!) sim, e também conseguimos ouvir! só não somos capazes de assimilar merda nenhuma, porque merda nenhuma nos interessa para além deste sonho europeu que jogámos dentro das quatro linhas. porém, para uma coisa nós somos altamente capacitados: para opinar. ah, sim! temos opinião sobre tudo, basta-nos ler as letras gordas dos jornais, basta-nos ver as capas das revistas cor-de-rosa para sermos capazes de julgar a vida dos outros. somos capazes de opinar sobre o que quer que seja! se o tema for a política, diremos que são uns corruptos, que são uns filhos da puta e que o povo é que as paga sempre. podemos dizê-lo, pois, se analisarmos bem, nunca nos ensinaram a democracia e a liberdade de expressão. tal como no futebol, aprendemos as regras e as tácticas por nós próprios, e todos nós somos óptimos treinadores de bancada. somos ou não somos, rapazes? assim é que se fala!
se nos falarem sobre arte, bem, nesse caso poderemos sempre falar sobre o tempo: “isto anda do avesso!” se nos falarem sobre o tempo, diremos que opinar acerca disso é estúpido e constitui uma perfeita perda de tempo. improvisamos e arranjaremos outro assunto. se nos perguntarem como estamos, diremos que vai-se andando e invocaremos o estado, as finanças, o sistemas nacional de saúde, o chefe de condomínio como causas de todos os nossos problemas e aborrecimentos. ou então queixar-nos-emos dos ossos: é o tempo que anda do avesso! se nos perguntarem o que pensamos fazer no futuro, diremos que imigrar é a única solução neste país da treta. se nos perguntarem o que achamos da escrita do Saramago, diremos que ele não sabia sequer escrever, que o Fernando Pessoa era um bêbado e que Camões fez anos agora em Junho. se nos falarem de religião, as respostas serão distintas. os jovens dirão com soberba que se trata de um embuste, de uma história para assustar criancinhas. se perguntarem aos velhos, eles dirão primeiro que lhes doem os ossos, que a culpa é do tempo e afirmarão que os jovens são um bando de drogados.
            podem-nos perguntar o quer que seja, temos opinião formada acerca de tudo. no entanto, amanhã, não nos falem sobre o jogo. respeitem a nossa dor. somos, apesar de tudo, um povo de boa gente e que, coitadinhos, merecíamos melhor sorte.
            ai, o que vai ser amanhã! o que vai ser de todos nós? vamos esperar os moços ao aeroporto, faltar ao trabalho, deixar de estudar, cancelar a ida ao cinema ou à praia, adiar a tarde de sexo com a namorada, etc e coisa tal. vamos todos esperá-los, com as mãos no ar, erguidas bem alto, e com as milhares de gargantas a entoar o hino nacional.
os pobres dos rapazes mereciam melhor sorte…

domingo, 24 de junho de 2012

equinócio


Fotografia: Eduardo Lima


o tempo varia.
mais um dia que passa,
sem nós e sem casa.

[um eco a romper os ventos e acelerar a sua urgência,
alguém debruçado na ponte a contar motivos
e a soltar a súplica metafísica que corta a ciência.]

talvez seja porque crescemos precocemente,
talvez seja porque quase me desvanecemos,
também demasiado cedo, com aquela aurora.
guardamos dias em que fomos astronautas,
em que fizemos desenhos com sóis a sorrir,
por vezes vários sóis num mesmo desenho;
guardamos aguarelas de cores que não temos.

[a pátria dos homens sem voz a tornar-se império
e os motores dos automóveis como melodias,
indiferentes à derrocada da poesia e do mistério.]

hoje somos mais velhos, sonhos em pedra,
sabemos bem o que é o sol, estrela amarela,
temos uma ideia da sua constituição: H + He.
no entanto, ao contrário de qualquer criança,
não possuímos o brilho no sorriso, nos olhos,
nas entranhas mais profundas do nosso ser.
nosso corpo contorce-se, se exposto ao calor.

[o náufrago conformado no arquipélago perdido
entregue ao seu próprio sarcasmo e ao sal
da água de um mar, onde jaz um deus vencido.]

horas presas em segundos passam lentas.
e ninguém nos poderá dizer quem somos, ou que fomos.
pessoas metidas em fotografias riem sempre.
são indiferentes à passagem dos dias,
que não trazem essa luz nova, essa prometida.
impomos na voz um tom frio e lunar. sorrimos.
cristalizamos. a distância entre nós é um universo inteiro.


terça-feira, 19 de junho de 2012

falo em nome de todos os que me precederam




o Sol desponta
cedo. que se vá o teu medo!
o meu pouco conta.

ouve! eu sou o Poema que se segue e quero falar-te!
sim, a ti que me rediges, a ti que me lês e, por vezes,
te esqueces, por motivos que desconheces, de outros como eu.

antes de nasceres, alguém contemplou as estrelas,
passou as mãos suavemente pelo seu ventre cheio,
movimentos dentro dele, pontapés fortes no medo,
e encontrou num céu pontilhado de olhos microscópicos de luz
uma razão para acreditar. a tua Mãe aguardou-te e tu lá chegaste.

depois de nasceres, caminhaste solto pelas ruas.
os teus olhos esperançosamente abertos: a Vida
a ser-te bombeada nas veias sob a tua pela fina;
a Vida a fazer-te crescer. os sonhos antigos a despedaçarem-se
e a cortarem-te os pés. a Sina chamou-te, mas tu não acordaste.

agora, eu sei que tu já não acreditas em tudo, em mim;
agora, sei que já és graúdo para nos teus assuntos eu me meter.
no entanto, eu sei que nesta noite ainda existe um céu sem fim,
ainda existem as mesmas estrelas que te viram nascer.

[mas eu vi o céu cair,
eu vi o sol queimar os corpos
dos meus velhos soldados mortos.

eu vi o céu cair
e a lua sucumbir,
desvanecendo-se no espaço.

eu vi o céu cair
e deus não assumir
a patente do fracasso.]

só tens de abrir a janela, pontapear os medos de uma vez
e vê-los, deixá-los morrer. lê-me: impossível é não acreditar!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

planos para amanhã



fiquei de te escrever um poema que falasse dos teus olhos,
como se eles, essas criaturas de um cristal utópico e onírico,
pudessem ser resumidos, compactados em versos rimados.

fiquei de me colar um bilhete na memória volátil dos dias,
do quotidiano vertiginoso das colinas perdidas no horizonte,
que me lembrasse dos timbres impossíveis dos teus passos.

fiquei de te trazer uma lembrança do cruzeiro transatlântico,
que iniciei há duas horas na tentativa de esquecer a tua falta.
mas, por  capricho, não icei a âncora da nossa casa em ruínas.

ah, disto não me posso mesmo esquecer! as estrelas do sul…
tenho de te falar delas, das figuras que compõem nas noites
em que as nuvens nada podem contra os sonhos do mundo.

daqui a pouco, quando esta noite chegar, quando eu chegar,
só a insónia me esperará sentada na soleira torta da porta,
aconchegada por mantas esquecidas com padrões de urtigas.

perguntará o que faço com um papel e uma caneta numa mão,
um barco de borracha na outra, um bilhete estampado na testa
e um saco de pirilampos pendurado às costas, vindo da floresta.

e eu direi: são planos para amanhã! são planos para amanhã…

segunda-feira, 11 de junho de 2012

lá anda o Nietzsche...




não guardo à razão nenhum rancor em particular,
somente não me sinto vertiginosamente atraído por ela,
pela sua essência altiva e pelo seu teor burlesco.

eu sei lá porquê! talvez a minha mente seja esquiva,
ou, por ventura, seja apenas a tentação do facilitismo.
– o mundo de Dalí é tão mais simples e garrido!
talvez seja do meu jeito, do meu pensamento falacioso
e com rasuras de sentido propícios à contradição.

que raio estou eu a afirmar ou a sugerir?
o meu pensamento nunca se contradiz,
e se alguma vez sucedeu, terá sido em tom harmonioso!  

[vedes? deu o dito por não-dito…]

lá anda o Nietzsche, de martelo na mão,
a destruir-nos as paredes da biblioteca!

domingo, 10 de junho de 2012

A Casa do Violoncelo - Capítulo final: Caminho para o silêncio




A culpa foi minha.
Quando, pela primeira vez, eu vi o David entrar no meu consultório, estava longe de conseguir imaginar tudo aquilo que agora se mostra real. Estava longe de conseguir saber que este violoncelo me haveria, tragicamente, de vir parar às mãos.
Não passou muito tempo até eu perceber que aquele não era apenas mais um caso. O David parecia não estar na mesma sala do que eu. Era como se eu não estivesse ali, e ele também não, enquanto os seus relatos nos levavam por diferentes cenários: ruas, matos, casas, guerras – interiores e exteriores a si -, palcos maravilhosos onde várias palmas se ouviam.
Mas existia algo que era constante a todos esses lugares. Um violoncelo. Um violoncelo que viajou vários quilómetros, percorreu várias casas e sentiu, através do seu arco, várias mãos. Mãos suaves e delicadas, mãos de amantes e depois rudes, mãos pequenas e mais tarde criminosas.
Aquele, para mim, imaginário violoncelo foi imortal até todos abandonarem a casa: A Casa do Violoncelo. Resistiu a todas as mortes que o pouparam, foi ele, mesmo quando sozinho, mesmo quando esquecido.
O David foi provavelmente o seu último amigo. Choraram juntos muitas vezes, sorriram muitas vezes, existiram os dois, falsamente acompanhados, durante muito tempo, durante tempo demais para o sofrimento do David. Por isso partiu.
Por julgar estar sozinho, quase morto, abandonou o mundo que, verdade seja dita, nunca esteve a seu lado. Mas eles sempre estiveram. Existiam pessoas dentro daquele violoncelo agarradas às cordas velhas: existem em almas traduzidas nas melodias. Alma: vocábulo estranho para um psicólogo, porém o caso do David ensinou-me a usá-lo.
Naquele instrumento viviam pessoas novas e velhas. Lá morava alguém muito antigo, alguém que aquela família nunca conheceu. Chama-se Maria e, agora, talvez ande de mão dada com o pai do David. Juntos talvez olhem o silêncio, longe, muito longe. Lá moram a Francisca e o João, que morreram num trágico acidente. Nessa altura, eles e o David eram felizes, riam muito. Desse acidente apenas um sobreviveu. O pai, o marido, o filho, o irmão: o David. Porém, também ele, ao seu jeito, morreu. O mundo morreu-lhe nesse dia, da mesma forma que anos antes ele próprio havia morto o seu pai, aquando daquela terrível visão, aquando daquela terrível descoberta. Ainda adolescente, o David descobriu que o pai, aquele homem que durante tanto tempo viu com admiração, afinal tinha sido o responsável pelo sorriso roubado, para sempre, à sua irmã. A Elisa fora, durante muito tempo, violada pelo pai. sofreu em silêncio e o silêncio tem sido, ao longo da sua vida, o seu melhor confidente. Ele sabe tudo. Tal como este violoncelo, ele sabe tudo…
As semelhanças com uma pessoa que nunca conheceu foram a sua condenação ao martírio. O sorriso não existia na sua face, não podia executá-lo. Não podia. Por isso, no dia em que, em sua casa, perante os seus olhos, viu o seu irmão disparar a arma que, há muitos anos, tinha, pela mão do seu pai, abatido javalis lá para o Alentejo, a Elisa não teve lágrimas para chorar a morte do seu pai. Dois tiros, dilacerantes para a pele, entorpecedores para a Elisa, chagas futuras para o seu irmão. Memórias desse dia que perduraram pelos anos, dilacerantes para todo o ser. Até no sentido mais metafísico do ser.
            No dia daquele trágico acidente de automóvel, somente o David sobreviveu, vendo assim partir a sua mulher, a Francisca, e o seu filho, o seu João. De certa forma, o David também morreu naquele dia, ou melhor, na sua razão, apenas ele próprio tinha morrido. Durante todas as sessões de terapia que teve comigo, referiu-se sempre a si mesmo como sendo um objecto cheio de vácuo, repleto de morte. Todavia, era capaz de imaginar a continuação da vida daqueles que viu partir, exceptuando o seu pai. Todos os anos, no dia de aniversário do seu filho João, ele comprava um bolo, acreditando na felicidade do seu filho. Via-o crescer. A Francisca continuava resistente ao tempo, as suas formas eram as mesmas, a sua magia era maior. As noites de amor de outrora eram poemas agora, com um som subtil de liras. As promessas de uma velhice conjunta eram agora láminas. Explodiam supernovas nos olhos do David sempre que falava deles, tal como quando falava da sua mãe, tal como quando falava da sua irmã.
            O David iniciou a terapia por insistência da mãe. Custava-lhe ver o filho morrer daquela forma, ainda que metaforicamente. Aquela mulher que anos antes tinha assumido a culpa de um crime que não era seu, pelo menos não totalmente. A história que vigorou pelos anos foi que se havia tratado de um crime passional, de um acto em legítima defesa. O que não é de todo mentira, sabemos disso. podemos interpretar aquele dia, aquela morte, de diferentes ângulos, mas somos obrigados, em parte, a perceber os motivos que levaram àquele final trágico.
            Aquela mulher, que durante tanto tempo se viu anulada, confundida com uma pessoa morta e que ela nunca conheceu. Aquela mãe, que criou, educou e sonhou o melhor para os seus filhos, fez sempre o que esteve ao seu alcance para os proteger. Nos dias de hoje, apenas lhe sobra a sua filha Elisa, que perdeu o seu gosto pela vida há muito tempo atrás. O David não aguentou todo o peso das suas memórias e, numa noite, depois de ter saído da consulta, de ter regressado àquela casa, com a mesma arma com que tinha morto o seu pai, encostou os canos ao interior da sua boca e anulou o mundo e o tempo.
            Quero acreditar que, em algum lugar que eu não concebo, o David, a Francisca e o João recuperarão aquilo que lhes foi roubado. Quero acreditar que a Elisa ainda terá tempo para redescobrir a vida. Quero acreditar que aquela mãe voltará a ser uma mulher no sentido gigante da palavra. Quero acreditar que o violoncelo que o David trouxe para me mostrar e aqui deixou, neste consultório, naquela última consulta, nada teve de culpado em toda esta história.
            Tenho de levá-lo a casa! Toda uma rua o conhece. Ninguém o espera, é certo. Apenas o silêncio perpétuo.
 Eles sabiam demasiado…

sexta-feira, 8 de junho de 2012

sétimo sono


Imagem: O Nascimento do Mundo, Salvador Dalí


a água, cuspida pela mangueira tantas vezes calcada,
molhava a terra seca – Verão. o seu corpo continuava,
naquele ritmo constante e pouco quente, regando,
e eu, cansado – não sei se as minhas pernas
ou se as minhas palavras: é indiferente  – , parado.

não eram as plantas que se refrescavam,
muito menos era a terra árida e sequiosa.
era, sim, eu: o meu avatar racional-vítreo,
que foi quem de nós se levantou primeiro.

segui-lhe o passo: eu, o meu inconsciente desnudo.

molhámo-nos subtilmente, silenciamos tudo,
para que o meu corpo não sentisse o vácuo dos defuntos.

o surreal e a razão granítica brincando juntos,
ignorando os espinhos de aço das roseiras
e reescrevendo palavras primeiras: assuntos secretos .

eles não podiam acordar aquele ser dormente:
o passado dentro de mim – um ovo – no seu sétimo sono.

[subitamente, uma bandeja de decretos a cair no chão.]

«quem sou eu? que poema é este?»

vai começar tudo de novo…

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Z0 ou maratona de espelhos




após o primeiro ano cumprido no ensino superior, acabo por chegar à inevitável conclusão de que me afastei do mundo real, para, sem escolha, mergulhar numa série de conceitos abstractos que de proveitoso nada trazem ao quotidiano de um qualquer cidadão comum. e não, não se pense que apenas os jovens, estudantes universitários, estão alheados do mundo real! uma grande franja da sociedade vive também ela à parte da realidade, dominada por leis e directrizes que segue sem sequer as questionar – não vale a pena! – e é dona de um discurso tão bem articulado, mas tão distante de qualquer sentido universal. bem-vindo ao meu mundo – ao nosso mundo? –, o mundo das convenções.
estás a ver aquele senhor, sentado no chão, de roupas sujas e velhas, com as mãos calejadas e negras que pedem esmola? estás? não olhes! ele faz parte do mundo real. consegues olhar para os ténis que trazes calçados e pensar nos olhos de dor, no sofrimento que não deveria pertencer a uma qualquer criança indonésia? não penses nisso! sim, tens os ténis limpos. não pares de desfilar pelas ruas do nosso mundo! elas são limpas e organizadas. quando escreveres um texto, como este, por exemplo, não dês grande importânica aos comentários das pessoas que escrevem com x e com k. elax ñ xabem nd k tu já ñ xaibas!
tudo tem um método na nossa realidade. sabemos imensas coisas acerca da composição de um átomo, de um órgão, de um corpo, da estruturação de uma sociedade, da sua linguagem, da formação das palavras, das palavras que compõem as leis e suscitam diversas interpretações, das leis que regem o mercado…sabemos quase tudo, e todos os dias saberemos mais, inventaremos mais para saber. estudamos até, imagine-se só, a composição da caca.
sabemos imensas coisas de merda que as pessoas do mundo real, que coabitam, quase paradoxalmente, connosco não sabem. elas sentem dificuldades para tirar o andante do metro, perguntam ao motorista do autocarro se o 204 passa no local X e pedem-nos ajuda, quando estamos na fila das Finanças ou dos Correios, para tirar a respectiva senha para a respectiva mesa, onde está um funcionário de barba feita e formalmente vestido, condizentemente carrancudo e altivo, que lhes dirá: em que posso ajudar?
somos donos de uma autonomia e de uma atomicidade quase inesgotável. no entanto,  não saberemos nunca perceber as horas pela posição do sol, pelas melodias quase semelhantes dos sinos das torres das igrejas imponentes, habitadas por crenças que julgamos enfermas pela sua dubiedade; não saberemos nunca parar e olhar uma orquídea, tal como faria Alberto Caeiro; não sabemos quanto custa um pacote de leite, tal como desconhecemos quanto pagaremos um dia, quando dermos entrada nas urgências, nitidamente embriagados pela rectidão inverosímil de termos interpretado escrupulosamente o papel social que nos foi atribuído – tome lá este para o seu menino que, quando for graúdo, há-de ser engenheiro!; não compreenderemos nunca a essência do sol e do silêncio de domingo.
porém, julgo, saberemos sempre, com a certeza obsoleta do positivismo, qual é o nosso caminho, qual o passo seguinte nesta nossa maratona de espelhos. achas que não sabemos?
olha que merda! vamos lá começar este texto outra vez. voltemos à zona zero.

sábado, 2 de junho de 2012

a morte do brinde à vida das balas





palavras desalinhadas, palavras sozinhas e encostadas a nós,
palavras que deambulam e que atravessam o rio de ferry.
falam pouco, dizem bom dia e obrigam-nos a dar um sorriso
ao senhor revisor que passa altivo e acena com a cabeça.

e as palavras dos pacotes de açúcar que se fundem com o café?
ai, essas – essas são a pior raça! declaro guerra a essas Severas:
rimas como gravatas sobre camisas proeminentemente passadas.

todas aquelas que não oferecerem resistência
serão grafadas em pergaminhos condignamente enterrados
- numa cerimónia devidamente anunciada pelo senhor prior
e que terá a presença do Doutor Ministro das Cousas Todas.

- alguém há-de chorar por elas!

os ponteiros do relógio a sacudirem a ferrugem doutras eras,
o peso dos copos de cristal a precipitar-se na tijoleira negra
impávida e serena perante a morte do brinde à vida das balas
(a ineficácia das armas neste meu deserto de espinhos de aço.)

os bancos de jardim desconsolados e com soluços espaçados
aguardando por um segundo explosivo aos portões dos olhos
cansados, que ponha término ao choro ácido das serpentes.

as balas eram os nossos silêncios de domingo,
a que fomos recorrendo sempre que estes nossos olhos
se tocavam e exploravam em imensos corredores de luz.
agora, esses silêncios são os corvos negros: a distância.

- alguém há-de chorar por elas…