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quarta-feira, 27 de junho de 2012

mãos no ar!




as cabeças baixas. os braços tombados. o Adamastor a ser mais forte.
e agora, o que vai ser de nós? agora, no momento em que retiramos as bandeiras e, depois de dobradas, as guardamos juntamente com o orgulho na nação numa gaveta escondida da luz; agora, no momento em que amaldiçoamos os espanhóis, os bárbaros que só anseiam por ver o Zé-Povinho a vergar a mola, os romenos dos semáforos e dos hipermercados, a quem dispensamos uma moeda só para satisfazermos os nossos valores morais, e os ucranianos que chacinam de forma selvagem cães e gatos que deambulam pelas ruas do seu país – não, nós, povo com uma forte tradição tauromáquica, não nos identificamos com tais actos, que gentinha! agora, no momento em que se desvaneceu toda a esperança e em que os navegadores portugueses e a sua coragem voltaram a ser um assunto distante, apenas lembrado para o exame nacional de História, antevemos a reanimação de algumas palavras que, como mortos-vivos, nos assombram: crise, austeridade, desemprego, défice. agora, no momento em que damos à costa, como náufragos orgulhosos de uma embarcação que se partiu com toda a pompa e circunstância, percebemos que afinal a realidade não parou para ver os golos e as fintas do Ronaldo. a realidade: ela esteve sempre por detrás dos nossos olhos absortos na televisão, como um zumbido ligeiro para os nossos ouvidos, como uma interferência ligeira na emissão do relato.
o que vai ser desta gente toda amanhã quando acordar, depois de abertos os olhos e da tomada de consciência da sua quase-cegueira e da sua quase-surdez? sim, eu sei, temos o dom da visão, caso contrário eu não estaria aqui a escrever este texto e vocês não estariam, neste momento, a lê-lo. (vês? afinal conseguimos ver!) sim, e também conseguimos ouvir! só não somos capazes de assimilar merda nenhuma, porque merda nenhuma nos interessa para além deste sonho europeu que jogámos dentro das quatro linhas. porém, para uma coisa nós somos altamente capacitados: para opinar. ah, sim! temos opinião sobre tudo, basta-nos ler as letras gordas dos jornais, basta-nos ver as capas das revistas cor-de-rosa para sermos capazes de julgar a vida dos outros. somos capazes de opinar sobre o que quer que seja! se o tema for a política, diremos que são uns corruptos, que são uns filhos da puta e que o povo é que as paga sempre. podemos dizê-lo, pois, se analisarmos bem, nunca nos ensinaram a democracia e a liberdade de expressão. tal como no futebol, aprendemos as regras e as tácticas por nós próprios, e todos nós somos óptimos treinadores de bancada. somos ou não somos, rapazes? assim é que se fala!
se nos falarem sobre arte, bem, nesse caso poderemos sempre falar sobre o tempo: “isto anda do avesso!” se nos falarem sobre o tempo, diremos que opinar acerca disso é estúpido e constitui uma perfeita perda de tempo. improvisamos e arranjaremos outro assunto. se nos perguntarem como estamos, diremos que vai-se andando e invocaremos o estado, as finanças, o sistemas nacional de saúde, o chefe de condomínio como causas de todos os nossos problemas e aborrecimentos. ou então queixar-nos-emos dos ossos: é o tempo que anda do avesso! se nos perguntarem o que pensamos fazer no futuro, diremos que imigrar é a única solução neste país da treta. se nos perguntarem o que achamos da escrita do Saramago, diremos que ele não sabia sequer escrever, que o Fernando Pessoa era um bêbado e que Camões fez anos agora em Junho. se nos falarem de religião, as respostas serão distintas. os jovens dirão com soberba que se trata de um embuste, de uma história para assustar criancinhas. se perguntarem aos velhos, eles dirão primeiro que lhes doem os ossos, que a culpa é do tempo e afirmarão que os jovens são um bando de drogados.
            podem-nos perguntar o quer que seja, temos opinião formada acerca de tudo. no entanto, amanhã, não nos falem sobre o jogo. respeitem a nossa dor. somos, apesar de tudo, um povo de boa gente e que, coitadinhos, merecíamos melhor sorte.
            ai, o que vai ser amanhã! o que vai ser de todos nós? vamos esperar os moços ao aeroporto, faltar ao trabalho, deixar de estudar, cancelar a ida ao cinema ou à praia, adiar a tarde de sexo com a namorada, etc e coisa tal. vamos todos esperá-los, com as mãos no ar, erguidas bem alto, e com as milhares de gargantas a entoar o hino nacional.
os pobres dos rapazes mereciam melhor sorte…

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