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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

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não, o problema não é bem esse!... o facto de quem escreve o fazer, sobretudo, por vaidade, não constitui, em si, um problema. desenganem-se aqueles que pensam que um poeta, por exemplo, não é vaidoso; o facto de passar algo para o papel e de, com sorte, publicar um dia, quem sabe, ele há cada coisa, é um acto de extrema vaidade. é pensar que devemos impingir aos outros um terramoto que só a nós deveria abalar. quem não sente vaidade não escreve, restringe-se a pensar, deixa as ideias livres, deixa-as morrer ou transformarem-se num sonho, num pesadelo, num desejo quase inconsciente ou num arroto despropositado.
escrever é um vómito inusitado! mas quem disse que a vaidade era um pecado tramou-nos bem! também essa entidade escreveu numa tábua os seus decretos. se algum deus fosse realmente perfeito, não deveria ter sequer consciência disso; não deveria ter tampouco conhecimento do que é mau e do que não se deve fazer. assim sendo, penso existir vaidade em qualquer divindade e a nós, poetas, atenção, seres importantes, disseram-nos que também nós temos a capacidade de ver por entre o nevoeiro denso. “ser poeta é ser mais alto”, eis a crença que possuímos secretamente, longe de qualquer olhar superficial. esta é a nossa vaidade! mas, penso, o problema não é bem esse!...
            o problema também não é o negócio porco, o capitalismo engravatado que promove qualquer coisa desde que o lucro assim o justifique. moralismos à parte, tudo é um produto. um livro já não é sinónimo de qualidade, é apenas sinónimo de poder económico que alguém tem para financiá-lo, publicitá-lo, prostitui-lo no sentido mais imaculado do termo. truz-truz! diabo seja cego, surdo e mudo! e, pelo que acabei de dizer, o problema também não é apenas o rasgo insuficiente que possuo para escrever. por favor! isso que importa? sim, eu sei que não sou um antigo jogador de futebol; nunca fui, juro, uma acompanhante de luxo; não sou jornalista – embora ande a estudar afincadamente, e gosto de me convencer disto, para tal –; e, por último, também não tenho nenhuma estória com vampiros adolescentes que sentem inúmeras coisas ao mesmo tempo; por estes motivos, e não apenas estes, eu deveria ter algum pudor e tomar a decisão de nunca mais caligrafar, ou digitar alguma coisa para além do meu nome, rótulo que não posso nunca deixar. mas julgo que o problema, o maior, não é bem esse!...
            muito menos o problema é a sociedade, que é tão boa a fingir qualquer coisa neste momento, no anterior, no próximo; a sociedade a ignorar esta linha e a próxima; alguém que se deparou com este texto por engano, ou porque gostou da imagem, ou do título, a ler esta linha e a pensar: este caralho quem pensa que é? peço-vos desculpa! é a vaidade!... mas, de facto, eu não penso que a sociedade seja o problema. não nego que gostaria que me lessem mais, mas sei que o tempo é tudo e vocês têm tão pouco. não se envergonhem de responder negativamente, e com orgulho, nada de abanar a cabeça, muito menos de encolher os ombros, quando um intelectual, sujeito a todos os níveis mesquinho, vos perguntar se já leram Marcel Proust, Fiódor Dostoiévski, James Joyce ou Franz Kafka. digam que não; digam que estavam ocupados a viver. porque, afinal, é disso que se trata! ele sentir-se-á erudito nesse momento, a superioridade transparecer-se-á nas suas palavras, mas ele não será capaz de perceber o problema, nem suspeitará sequer da sua existência, não escutará o ruído do problema; não terá um martelo para bater na linha férrea do comboio e verificar se esta se encontra em bom estado. ele é essa mesma linha de comboio, opaca no pensamento, mas oca em qualquer local indecifrável do corpo; ele é a linha e é o comboio e é o despiste iminente; ele é tudo o que desconhece; ele é, por consequência, a morte.
            há tanta gente a respirar mas a não saber viver. é esse o problema! é a distância que criei em relação ao mundo, é a percepção da minha respiração branda, automática, e do meu cansaço, do meu desejo petulante e adiado de me despedir de mão dada com o sol e, juntos, mergulharmos no mar. amanhã surgiríamos de cara lavada e iluminaríamos sentimentos puros e frescos à nossa passagem. no fundo, só queria que o sol me cegasse, que secasse a tinta das canetas e que a necessidade não me ensinasse braille, para assim eu aprender a vida,

            ponto
           

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

energia excedentária




às vezes, em noites perpetuadas,
olho para todos estes poemas,
mesmo para aqueles que já suprimiram o seu grito,
fantasmas nómadas numa terra abandonada,
e observo-lhes os contornos, as cicatrizes,
e, nesses momentos, não sei bem o que lhes dizer.
leio-os, sinto-os outra vez,  mas não tenho palavras,
conceitos que os tranquilizem e os façam dormir.
há instantes, os meus fantasmas exigiram uma pátria,
sepulturas ornamentadas para os seus corpos de éter.
perguntaram-me em que corrente se enquadram.
esbocei um sorriso exterior e quase imperceptível,
mas senti o embaraço nas têmperas,
as mãos subitamente trémulas
e, por dentro, o peito a bombear sangue demasiado rápido.
envolto no silêncio duradouro e perturbador
que caiu cerrado após aquela pergunta,
senti a razão e a lógica, cada uma apoiada na sua bengala torta,
a olharem para mim com um trejeito trocista;
o meu demónio interior a dizer-me não sabes nada de nada
e, em seguida, a dizer-me elas também não sabem nada de nada.

uma corrente, uma corrente, uma corrente.

eu preso, acorrentado, perante um sol inquisidor
que me queimava o corpo. brasas dentro de mim.
ferros quentes, manipulados talvez pelo meu demónio.
tratava-se de uma questão perfeitamente legítima,
ainda que injusta, que eu deveria ter antecipado.
percebo a necessidade, o conforto inerente a um rótulo,
e não condeno nem a pergunta nem o tom grosseiro
nem o dedo em riste com que a mesma foi proferida.
perdoo-os por isso, pois eles não podem perceber,
eles não fazem ideia da hiperactividade do meu demónio.

poderia ter facilitado as coisas,
ter respondido realismo mágico com um tom grave e solene.
esse seria, sem dúvida, o caminho mais conciso
para simplificar aqueles e este poema também.
o problema que se eleva é que a poesia não tem direcção,
não é uma estrada pavimentada e devidamente iluminada;
é, antes, distorcer os nossos lugares, plantar pomares ardentes,
esquecer o nosso tempo, os nossos propósitos individuais,
e, às vezes, esquecer os nossos próprios nomes - letras doentes;
é atravessar a terra por dentro;
é partir de um de um dos pólos do planeta,
esquecer o sol, contaminar o solo,
e sair no extremo oposto;
é passar os mortos, e ajudar um ou outro que se ergue;
é passar as camadas de terra de eras passadas e só parar para mijar;
é entrar nos infernos, na semente do pecado embrulhado em magma,
agarrar um demónio irrequieto e tentar o regresso.

e quando, na outra ponta do globo, 
voltarmos a olhar o mundo exterior, 
a noite,
perceberemos que o céu já não é o mesmo,
as figuras compostas de estrelas são outras,
e continuam a não haver caminhos certos;
continua a existir o espaço negro no céu a separar as estrelas.

há o frio exterior a envolver-nos
e o calor do demónio a manter-nos vivos,
a oferecer-nos um copo de veneno
e depois, ao longe, a mostrar-nos a cura.
             
[acabámos por não perceber quais são os nossos motivos!...
dá-nos uma definição - uma cama de feno!
diz-nos qual é o nosso peso e qual é a nossa altura!]

o vosso peso é nada, a vossa altura é nada.
a vossa corrente é o vento e, se vos perguntarem,
dizei que sóis a energia excedentária de uma central eólica.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

sanatório de monstros



            o mundo é um lugar de monstros interiores aos corpos, residentes nas carcaças de pensamentos velhos; o Homem é um lugar de gigantes adormecidos, de vozes roucas e gastas, ásperas como o sol do outono, secas e moribundas como as folhas de outubro. para além do céu e da terra, das pedras e dos sonhos, dos homens, dos deuses e de mim, existem essas criaturas moldadas nos pântanos do tempo e das facas açuladas. para lá de todos os lugares conhecidos e imaginados, existe o desconhecido: as nuvens negras libertam uma chuva de sangue que se precipita nas searas e se entranha no trigo, no pão que comem todos os homens; para lá, acima dessas nuvens baixas está o cume desta montanha ladeada por florestas de pinheiros muito altos e sóbrios, que conhecem tanto, que assistiram a tanto. é no cume dessa montanha, na caverna solitária, esquecida por todos em quase todos os momentos, que eu estou. e eles, esses que perdidos procuram um rumo, um alívio fácil, um último prazer de viver, estão quase a chegar, diz-me a aragem vespertina que já passou pela floresta e entra na caverna. o sol fica lá fora, anulado. o sol nada importa no sanatório de monstros. cá dentro, o cheiro a enxofre.
            vêm uns tantos liderados por um apenas. é um rapaz novo, nunca ninguém da sua idade aqui me veio procurar. é o desespero, é peso excessivo que a sua mente carrega que o faz caminhar e sonhar com um regresso a casa, esse lugar impossível. dentro dele, olhando para todos os lados, assustados, vêm vários. esses nunca tiveram casa. tiveram um pai que nunca os soube criar, que sempre os abandonou no seu pensamento depois dos pequenos darem o seu primeiro grito e que, agora, já só anseia por esquecê-los e rumar a casa sozinho.
            André tinha catorze anos e não estava preparado para ser pai pela primeira vez. quando o seu primogénito lhe surgiu na mente e, depois, no papel, ele sentiu um enorme êxtase, um orgasmo mental e espontâneo. a primeira das criaturas que habitam agora a sua mente era uma criança ingénua, que corria junto ao rio, junto aos jardins camarários, segurando um papagaio de papel colorido que se elevava bem alto, como se quisesse ferir, talvez matar as nuvens que nem André nem o pequeno ainda conheciam. ao longo do tempo, o papagaio foi perdendo a cor, a corda foi sendo moída pelos dias, pelas semanas, pelos anos. e o papagaio perdeu-se, voou para longe, para lá das nuvens, para lá do mundo dos homens e deste. por essa altura, a criança já não sabia do seu pai. chamava, chorava, mas ele fingia não ouvir. agora, chama, chora, e ele diz-lhe que estão quase a chegar. eu sei que estão.
            outro dos que segue este caminho, irmão dessa criança perpétua, é um homem que tentou inverter os pólos do seu mundo, seguir o sonho, esquecer a grasnido mortal dos corvos, mas falhou. caiu, partiu-se todo, perdeu a vista esquerda, a mais propícia a fantasias, e perfurou o seu coração. o pai encontrou uma pedra bonita e colocou-a no seu peito. quase se esqueceu da sua demanda, mas nunca morreu. por vezes ainda fala e pensa fazer tudo outra vez. vamos fazer tudo outra vez, pai?, mas não recebe resposta. não corre sangue dentro das veias deste homem, corre um passado que não o foi deixando morrer.
            com eles segue também o que já nada quer, para além de uma garrafa de vinho e o calor de uma lareira onde ordem cartas e promessas; aquele que não deu pelo dia em que Julieta morreu, que caminhou pelas ruas contemplando a ruína do mundo dos homens e que parou para jogar ao pião com uma criança. eles não sabiam que eram irmãos. essa criança odiava o céu e o vento que lhe tinham roubado o brinquedo e a sua única distracção era o pião que fazia girar, que via abrandar e morrer sobre a terra. sem metafísica, sem nada.
            a pesar também a André vem um velho violoncelo que já ninguém quer. ele tem pessoas dentro dele. sim, um violoncelo velho que guarda pessoas dentro dele metido dentro do corpo, real, de uma outra pessoa. talvez eu o aprenda a tocar! se no céu há melodias de harpas, aqui haverá melhor! a pesar também a André vem uma rua inteira, abandonada, esquecida: a rua dos fracassos.
            eles caminham dentro do corpo jovem e da mente envelhecida deste rapaz. os passos são cautelosos sobre o manto de folhas secas e pinhas mortas da floresta. bem perto vislumbram já a montanha, alta. eu não os vejo, mas sei que estão a chegar. estou aqui, no lugar onde o sol fica à porta, a saber o meu nome mas sem chamar por mim.
            com eles vem também o homem que fala com deus, criatura caprichosa, e que nutre por ele um desinteresse educado. fala com ele como fala com os revisores do comboio, bom dia, boa tarde, e mais nada. tem dentro de si todas as dúvidas e todos os silêncios. se alguém o pudesse ver, não diria que era mais um filho, mas sim um irmão gémeo, ligeiramente mais altivo, do seu pai. quando jovem sonhou ser um discípulo de Zaratustra, arrepiar caminho para a chegada do Super-Homem e atravessar, como um equilibrista, a corda suspensa bem alto, como um artista de um circo novo e onírico - «o homem é a queda e a travessia». ah!, como nos iremos dar tão bem!
            além destes vêm também o ciclista e o psicólogo inglês, num pé de guerra constante desde que André se fez ao caminho. o ciclista é um louco, di-lo com orgulho perante a cólera do psicólogo inglês ao ouvir alguém adjectivar-se de tal forma. farto de os ouvir vinha também o limítrofe, criatura fraca e facilmente manipulável
            o sol estava exactamente por cima da montanha, meio-dia solar, quando eles chegaram. André estava nitidamente agastado, mas trazia uma esperança reluzente no olhar que exibiu quando falou comigo. não usou palavras desnecessárias, disse-me tome conta deles, por favor. silêncio. já não aguento mais, tome conta deles, por favor. silêncio. peça-me o que quiser, mas tome conta deles! silêncio. o sol parado, a assistir a tudo. o tempo parado à espera de uma resposta minha. a aragem a entrar na caverna a tentar saber das novidades para levá-las à floresta. de que me serve a tua alma?, perguntei-lhe apenas.


era quase uma da tarde, tinha acordado deste sonho e estava em frente ao espelho, a olhar-me muito, pronto para lavar o rosto, refrescá-lo, e acalmar a ressaca. lavei os dentes e, em seguida procurei uma pastilha para as dores de cabeça. não havia. foi nesse momento que, farto disto tudo, lhes dei duas folhas de papel branco e lhes disponibilizei a minha mão para que pudessem escrever. momentos depois eles começaram a escrever este texto. foram falando de mim e por mim, como o estão a fazer agora. como se me conhecessem, como se pudessem calcular os meus pensamentos, puseram-me a caminhar por uma floresta rumo a uma montanha alta e escondida, ao encontro do demónio.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

fogo-de-artifício, pudim, folclore e perlimpimpim (versão áudio)

Poema escrito, dito, gravado e editado por mim. Espero que gostem!




[metáfora da tarde e do esquecimento]
fogo-de-artifício de todas as cores nas nossas bocas,
incêndios a proliferarem nos nossos corpos molhados,
sôfregos, carnais, deitados em searas regadas a gasolina;
o trigo a abafar os nossos gemidos puros e recônditos.
animais ao longe, sem bilhete, a assistirem ao fim do dia
que se aniquila em suor na planície que nos domina.

não temos palavras. em casa,
temos um lembrete no frigorifico com os nossos nomes.
temos olhos abertos, aqui, agora,
cegos por qualquer coisa que não necessitamos de dizer.

[metáfora do lusco-fusco e do regresso]
um arrepio na pele. os nossos pés a tocarem as nuvens
e nós a sentarmo-nos, a pedirmos um desejo silencioso
que o vento leva para longe, para a casa banhada a prata
onde mora um gigante a quem disseram ser um monstro;
ele é feito de gelo, tem tentáculos dentre dele, ferros,
uma lâmpada, carne por comer e um motor quase mudo.

não o ensinaram a viver. na porta,
tem post-its amarelos com os nossos nomes caligrafados.
agora, tranquilo, dorme. depois, lá,
quando chegarmos, sorrir-nos-á e terá um pudim para nós.

– Come rapaz! Senta-te aí fora, na soleira, olha as estrelas!
Pensa nela, ouve a festa e o folclore ali em baixo, na vila.
Dizem que este ano não há fogo-de-artifício…! – e fechou-se.

[metáfora da madrugada e do amanhecer]
e, agora, a noite de verão varrida por um vento que lembro;
e o silêncio que não corta, antes semeia pensamentos livres;
e as planícies que já não ardem, mas que libertam um fumo;
e os pirilampos luminosos, na vida e na morte, sem soberba;
e o pudim de ovos que não posso comer a saber-me tão mal;
e o fogo de artifício que não rebentou anunciado pela câmara.

mas nada disso torna os ponteiros do relógio mais estridentes,
pois escorrem estrelas cadentes que assobiam o teu rosto,
subtis, para o meu frigorifico não acordar e chamar por mim.

vamos devolver a máquina (versão áudio)

Autor: André Correia
Voz: Eduardo Lima
Edição: André Correia

Agradecimento especial ao Laboratório de Rádio da Universidade Fernando Pessoa.





tantas foram as fotografias que tirámos com esta máquina
e, agora, algumas, já não as lembramos, tempo a morrer.
outras quisemos esquecer e não executamos o movimento.  

existe uma imagem mais alta do que os telhados,
um ruído que se desprende dos outros e nos toca;
existem sinais por todo o lado, não pretendo olhar,
não olhes também. tenta dormir, sim, tenta dormir.
ensinaram-nos a contar as horas, a ferver a água,
a saltar e a olhar o céu. apontámos a um só avião
e vimo-lo sem querer. talvez nos fosse inevitável.

- dizem que não nos vê lá de cima…!

dizem tanta coisa. há quem afirme o nosso sono,
a nossa cegueira, a nossa sorrateira existência.
dizem tanta coisa. por experiência, sumimo-nos,
sabemos não ouvir. mas existe uma imagem,
ela paira sobre os telhados, sobre o nosso sonho.

um gigante de promessas em ferrugem – um rosto
que se assemelha àquele que tivemos um dia.
se ele nos falasse, creio, não seria razão de receio,
mas ele não se distrai, o seu tempo é outro: agora:
somos somente sombras com dores abstractas. ai!
e disseram-me que ele não nos vê lá de cima…!

incapazes de destruir o gigante moribundo,
que já só anseia por morrer numa rua qualquer,
escondida das nossas coordenadas, vamos mentindo,
tentamos formatar os risos de outrora, mas o mundo.

o gigante a contorcer-se e assumir-se brinquedo;
o passado a sorrir-nos e dizer-nos que é tarde.
ele tombará sob o nosso enredo, não há saída.
vamos devolvê-la, agora, antes que se estrague.

a máquina tem de sobreviver, porque a vida.

Rêve Oublié (versão áudio)

Voz: Eduardo Lima
Poema de: António Maria Lisboa
Edição: André Correia

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

fogo-de-artifício, pudim, folclore e perlimpimpim




[metáfora da tarde e do esquecimento]

fogo-de-artifício de todas as cores nas nossas bocas,
incêndios a proliferarem nos nossos corpos molhados,
sôfregos, carnais, deitados em searas regadas a gasolina;
o trigo a abafar os nossos gemidos puros e recônditos.
animais ao longe sem bilhete a assistirem ao fim do dia
que se aniquila em suor na planície que nos domina.

não temos palavras. em casa,
temos um lembrete no frigorifico com os nossos nomes.
temos olhos abertos, aqui, agora,
cegos por qualquer coisa que não necessitamos de dizer.

[metáfora do lusco-fusco e do regresso]

um arrepio na pele. os nossos pés a tocarem as nuvens
e nós a sentarmo-nos, a pedirmos um desejo silencioso
que o vento leva para longe, para a casa banhada a prata
onde mora um gigante a quem disseram ser um monstro;
ele é feito de gelo, tem tentáculos dentre dele, ferros,
uma lâmpada, carne por comer e um motor quase mudo.

ele não sabe falar. na porta,
tem post-its amarelos com os nossos nomes caligrafados.
agora dorme. depois, lá,
quando chegarmos, sorrir-nos-á e terá um pudim para nós.

– Come rapaz! Senta-te aí fora, na soleira, olha as estrelas!
Pensa nela, ouve a festa e o folclore ali em baixo, na vila.
Dizem que este ano não há fogo-de-artifício…! – e fechou-se.

[metáfora da madrugada e do amanhecer]

e, agora, a noite de verão varrida por um vento que lembro;
e o silêncio que não corta, antes semeia pensamentos livres;
e as planícies que já não ardem, mas que libertam um fumo;
e os pirilampos luminosos, na vida e na morte, sem soberba;
e o pudim de ovos que não posso comer a saber-me tão mal;
e o fogo de artifício que não rebentou anunciado pela câmara.

mas nada disso torna os ponteiros do relógio mais estridentes,
pois escorrem estrelas cadentes que assobiam o teu rosto,
subtis, para o meu frigorifico não acordar e chamar por mim. 

Para a Filipa


domingo, 5 de agosto de 2012

O Segredo de Lisboa - Capítulo I




I


era domingo. a manhã já tinha pousado sobre a cidade, e do Tejo vinha uma aragem fresca que amainava aquele dia de verão. lá fora, nas ruas de Lisboa, havia calor a cobrir as pedras da calçada, a envolver as pessoas que caminhavam aparentemente sem nenhuma direcção. havia calor a evaporar. era um calor delicado, quase espuma,  que tocava os corpos e lhes lembrava a primavera.  era um dia que exibia sol e escondia nuvens dentro de si. os ponteiros do relógio, implacáveis, desumanos, a cumprirem voltas perfeitas. passava meia hora da hora combinada.
há dois dias, Pedro tinha recebido uma carta do seu melhor amigo, com a caligrafia habitualmente desarranjada, a combinar, com palavras cautelosas mas que exaltavam o êxtase de um louco, um encontro que deveria ter ocorrido num momento que os ponteiros ultrapassaram havia já mais de trinta minutos. para passar o tempo, como se de alguma forma ele pudesse estagnar, perpetuar aquela espera, para não lhe cansar a sua passagem, o jovem e impaciente Pedro enumerava mentalmente uma série de assuntos que pudessem justificar aquela súbita reunião; mexia e remexia o café que o maldito do tempo foi esfriando cada vez mais. por um trejeito do seu rosto, creio que se esqueceu do açúcar. num último momento, imaginou que seria assunto de saias. o António gostava de lhe contar todas as suas aventuras amorosas e, além disso, tinha passado os dois últimos meses em Paris. poderiam também ser versos novos ou um bricabraque, pechisbeque barato, de terras indianas e utilidade duvidosa. poderia ser tudo isso e o facto de não ter dinheiro para, agora, pagar a tença da casa. deve ser isso, pensou. deve ser isso, quase se convenceu, mas não teve tempo. o António chegou.
abraçaram-se. analisaram-se. estás mais magro, acho que foi isto que um deles disse. não sei qual, e isso não terá nenhuma relevância.
António chamou, com um estalar de dedos, o empregado de mesa e disse-lhe, é o costume! tirou o sobretudo comprido e castanho, um pouco russo pelo uso, pouco condizente com o dia que fazia nas ruas de Lisboa, pendurou-o, sentou-se, olhou em volta e deu uma dobra nos punhos da camisa. Pedro olhava-o, esperava o início de alguma coisa que não sabia muito bem o que era. deixa-te de coisas, pensava. talvez tenha cigarrilhas francesas para me mostrar, colocou também esta hipótese. mas da boca do seu companheiro nem uma palavra, dos bolsos do casaco nem uma cigarrilha. nada. e nada. silêncio. tempo. duas pessoas. agora, momentaneamente, três. o empregado chegou em silêncio, ora pois, pousou o copo de bagaço na mesa, plim, pediu licença e retirou-se, de novo, em silêncio, claro está. nas mesas circundantes estavam velhos que jogavam às cartas, espanholas que fumavam cigarros e lançavam olhares de fogo, homens que falavam de assuntos perigosos – comunistas –  e mulheres que entravam pontualmente no café a pedir esmola, um pão para o meu menino, enquanto, lá fora, os miúdos ficavam a brincar, a sujar as mãos. as roupas já estavam sujas.
porém, entres eles e as pessoas, entre eles e as palavras que se desprendiam sem nexo de outras conversas, havia um muro de cristal muito fino: desinteresse. era esse muro que mantinha o silêncio naquela mesa.
num momento, lá fora, os miúdos e os graúdos ficaram a admirar a passagem de uma furgoneta que, à janela, trazia um homem com meio corpo de fora e com um altifalante na mão. havia jogo do Benfica, mas este é outro assunto sem nenhuma relevância.
aquilo de que vos quero falar é aquilo que também Pedro Oom estava à espera que António Maria Lisboa começasse a contar. mas ele parecia compenetrado em esticar aquele tempo, em aumentar a curiosidade do seu amigo Pedro. o bagaço a escorrer-lhe pela garganta, chamas, os olhos a passarem rápidos pelo jornal.
está tudo na mesma, concluiu, e levantou os olhos. Pedro respondeu com silêncio, [...]
e foi num momento seguinte que António começou a falar.
já leste Álvaro de Campos?
essa é uma pergunta séria?
não. uma pergunta séria é quanto custa este bagaço!
riram-se. ambos se deleitavam com o sarcasmo.
sim, já li Campos, é claro! e o bagaço custa vinte tostões.
tens a certeza?
tenho. quantos bagaços já bebemos aqui?
de facto, eram dois clientes habituais daquela pequena taberna situada na baixa de Lisboa. sabiam perfeitamente quanto custava um bagaço, um café ou uma puta; sabiam de cor, quando sóbrios, os nomes de todos os empregados, três, daquele café. mas a pergunta não era essa, o preço do bagaço era um outro assunto sem nenhuma relevância.
não é isso. tens a certeza que já leste Álvaro de Campos?
António, são duas da tarde e tu já estás a delirar? pensei que tivesses algo urgente para falar comigo, mas já vi que não…!
irritado, Pedro atirou algumas moedas para cima da mesa e preparava-se já para sair. não tinha tempo a perder. não que condenasse a embriaguez do seu compincha, mas esperava mais. nem um nem outro eram pessoas de perder tempo. eram jovens, eram urgentes em tudo o que faziam. de resto, faziam muito pouco, quase nada, mas eram céleres em tudo. desde a poesia até ao amor. eram dois relâmpagos.
foi nesse momento que António deixou cair sobre a mesa um amontoado de papéis, aparentemente velhos, nitidamente sujos. foi nesse momento que o assunto, aquele, este, por fim, chegou. o assunto assentou, precipitou-se, para vos ser mais preciso, sobre a mesa na forma de todas aquelas folhas.
o que é isto?
um segredo.
era o segredo que Lisboa trazia de Paris. dos cigarros de Pedro evaporaram dúvidas. dos cigarros enrolados de António evaporavam mistérios que subiam para além do tecto de madeira velha da taberna. sentados à mesma mesa, habitavam dois homens em realidades completamente antagónicas, universos enviesados. um olhava aqueles papéis e não sabia, não entendia; o outro olhava a cara do outro e imaginava-a quando soubesse. e ficaram nesta dança desalinhada dos seus olhares, onde a única melodia presente era o silêncio. foi num desses instantes, cortado por outro estalar de dedos, que Pedro pediu dois copos de vinho tinto.
porra, diz lá o que é isto! é o Santo Graal?
é quase, é quase.
            então toma cuidado com o lápis azul, António. o santo professor Oliveirinha não haveria de gostar que não partilhasses o segredo do cálice com ele.
e o empregado acercou-se outra vez, de fininho, com passos de espuma, e pousou os copos na mesa, plim-plim. um brinde. beberam-no quase de um trago. depois disso, António chamou duas espanholas que os olhavam há muito para se sentarem com eles. Pedro era introvertido, porém não era necessária grande perícia para lidar com espanholas. António perguntou qualquer coisa e ela disse que sim, perguntou uma outra e ela disse dez escudos. não houveram mais perguntas, nem respostas. o pobre do Pedro teria de esperar, porque por essa altura já António subia as escadas que davam para uns quartos velhos, quase aidos, engalfinhado com a espanhola. fizeram sexo, acho que não precisava de vos contar isto. que ridículo que fui!
 antes de sair da taberna, Pedro, furioso, pagou os copos de vinho, o bagaço e o café. a espanhola, que numa primeira instância quase se sentiu rejeitada, pegou nos dez escudos que Pedro lhe deixou em cima da mesa, pediu conhaque e ficou a remexer aquele monte de folhas. olhou-os muito séria primeiro. tentou compreendê-los, fingiu um ar compenetrado do qual os velhos se riram e ao qual fizeram comentários rudes. Olaya acabou a bebida, pegou nos papéis, num maço de cigarrilhas que estava num dos bolsos de um casaco comprido e castanho pendurado na cadeira à sua frente, e saiu apressada. no café todos se riram abundantemente. lá fora, os miúdos riam-se sem ter um motivo. no quarto, António não se lembrou, não lhe faltou nada, mesmo nada. na rua, Pedro lembrou-se do sorriso de Olaya; sorriu. noutra rua, Olaya cansou-se de observar todas aquelas folhas, deitou-as fora e esqueceu-as.
            misturados com a brisa, feitos da mesma matéria, o homem que guardava pessoas, Ele e os Mudos assistiram a toda aquela sucessão de tempo, de coisa quase nenhuma. os Mudos não disseram nada, e foi o homem que guardava pessoas que sugeriu, talvez tenha sido melhor assim. depois o silêncio disse-lhes qualquer coisa ao ouvido e baixaram os rostos: Ele chorou.
            algo se perdeu. o Benfica, mais tarde, ganhou.

            Paris parecia-lhe uma cidade imensa, mas, ao mesmo tempo, em nada superava as suas expectativas. conseguia respirar um ar diferente, mais solto, mais ágil, naquela cidade. para melhor perceberem os seus sentimentos, imaginem um louco no corpo de um colibri.
durante os dois meses que lá passou nunca sentiu saudades de Lisboa, nem da cidade que lhe deu nome nem do seu próprio nome. os automóveis sucediam-se a um ritmo vertiginoso, os prédios pareciam querem rasgar o céu e fazer cair estrelas sobre a cidade, uma mesmo no topo da Torre Eiffel, algumas sentadas, lá no alto, no Arco do Triunfo. no entanto, havia o Sena, que corria indiferente a toda azáfama, com as suas águas seguindo o rota solar. havia os jardins de Versalhes, também eles apaziguadores, vivendo num tempo magnânimo mas obsoleto – não, não é contradição. os Campos Elísios, um tapete verde, a contrastar com o ferro emergente. depois havia também uma série de coisa triviais: os cabarets, entre eles, claro, o Moulin Rouge, os cinemas, as fábricas, as ruas pavimentadas, as luzes, o ferro e os restos de uma guerra. depois, haviam as colinas, cabeças de gigantes que permanecem enterrados no subsolo, para lá dos olhos. esses gigantes choram, e é por isso que se diz existirem riachos por debaixo das ruas parisienses.
António, que tanto sonhava com terras da Índia, encontrava-se fascinado com tudo o que o rodeava. quase se comovia com tudo aquilo, com a comoção natural de um jovem, que se manifesta de outra forma. aquela cidade dava-lhe tusa. tudo era um estímulo, tudo aquilo era onírico, e sentia-se tão longe de Lisboa. não era apenas a distância que lhe suscitava essa compreensível impressão, eram sobretudo os movimentos, os ruídos autómatos e estridentes das máquinas, e eram também as pernas destapadas das francesas.
esta cidade é apetite, pensava.
estávamos em 1948. Paris já não tinha a vivacidade anterior à guerra, haviam ainda várias cicatrizes espalhadas pelo corpo redondo e alongado daquela cidade no limite da cidade, quase que a contorná-la, existiam os subúrbios, cada vez mais cheios de imigrantes. primeiro foram os russos, logo após a revolução soviética e, depois, em ondas sucessivas, juntaram-se-lhes poloneses, espanhóis, portugueses, argelinos, tunisinos e judeus sefarditas. Paris era uma miscelânea de culturas, e era isso que encantava António. isso, o facto de aquela cidade ser o berço do surrealismo e, claro está , as mulheres – as francesas, as russas, as argelinas e as tunisinas; portuguesas e judias já ele tivera conhecido muitas.
apesar de instalado no coração da cidade, bem próximo de Montmartre, António costumava deslocar-se frequentemente, através do comboio, até à periferia: casas enlatadas. não lhe interessavam muito, mesmo nada, as catedrais góticas, o Garnier, o Comédie Française, o l’Odéon ou o Mogador. relíquias ornamentadas também as havia em Portugal. ele queria mais. quero tudo, pensava.

os Mudos eram irmãos, mas em tudo eram diferentes. ambos eram capazes de falar, de dizer esta palavra: esta; mas poucas eram as vezes em que diziam alguma coisa, podiam dizer bom dia ou boa noite ao revisor do ferry, aos porteiros, mas isso não é falar, é reproduzir um som entranhado na pele pela moral e pelas boas maneiras.
            os Mudos olhavam demasiado, perdiam horas, dias, nesse exercício. um espantava-se com tudo, o outro era uma rocha indolente que era capaz de olhar.
num outro ponto da cidade, oculto, o grupo estava reunido, faltava apenas chegar o De Vasconcelos. não era algo estranho. eu era sempre o último a chegar, mas chegava sempre.