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domingo, 5 de agosto de 2012

O Segredo de Lisboa - Capítulo I




I


era domingo. a manhã já tinha pousado sobre a cidade, e do Tejo vinha uma aragem fresca que amainava aquele dia de verão. lá fora, nas ruas de Lisboa, havia calor a cobrir as pedras da calçada, a envolver as pessoas que caminhavam aparentemente sem nenhuma direcção. havia calor a evaporar. era um calor delicado, quase espuma,  que tocava os corpos e lhes lembrava a primavera.  era um dia que exibia sol e escondia nuvens dentro de si. os ponteiros do relógio, implacáveis, desumanos, a cumprirem voltas perfeitas. passava meia hora da hora combinada.
há dois dias, Pedro tinha recebido uma carta do seu melhor amigo, com a caligrafia habitualmente desarranjada, a combinar, com palavras cautelosas mas que exaltavam o êxtase de um louco, um encontro que deveria ter ocorrido num momento que os ponteiros ultrapassaram havia já mais de trinta minutos. para passar o tempo, como se de alguma forma ele pudesse estagnar, perpetuar aquela espera, para não lhe cansar a sua passagem, o jovem e impaciente Pedro enumerava mentalmente uma série de assuntos que pudessem justificar aquela súbita reunião; mexia e remexia o café que o maldito do tempo foi esfriando cada vez mais. por um trejeito do seu rosto, creio que se esqueceu do açúcar. num último momento, imaginou que seria assunto de saias. o António gostava de lhe contar todas as suas aventuras amorosas e, além disso, tinha passado os dois últimos meses em Paris. poderiam também ser versos novos ou um bricabraque, pechisbeque barato, de terras indianas e utilidade duvidosa. poderia ser tudo isso e o facto de não ter dinheiro para, agora, pagar a tença da casa. deve ser isso, pensou. deve ser isso, quase se convenceu, mas não teve tempo. o António chegou.
abraçaram-se. analisaram-se. estás mais magro, acho que foi isto que um deles disse. não sei qual, e isso não terá nenhuma relevância.
António chamou, com um estalar de dedos, o empregado de mesa e disse-lhe, é o costume! tirou o sobretudo comprido e castanho, um pouco russo pelo uso, pouco condizente com o dia que fazia nas ruas de Lisboa, pendurou-o, sentou-se, olhou em volta e deu uma dobra nos punhos da camisa. Pedro olhava-o, esperava o início de alguma coisa que não sabia muito bem o que era. deixa-te de coisas, pensava. talvez tenha cigarrilhas francesas para me mostrar, colocou também esta hipótese. mas da boca do seu companheiro nem uma palavra, dos bolsos do casaco nem uma cigarrilha. nada. e nada. silêncio. tempo. duas pessoas. agora, momentaneamente, três. o empregado chegou em silêncio, ora pois, pousou o copo de bagaço na mesa, plim, pediu licença e retirou-se, de novo, em silêncio, claro está. nas mesas circundantes estavam velhos que jogavam às cartas, espanholas que fumavam cigarros e lançavam olhares de fogo, homens que falavam de assuntos perigosos – comunistas –  e mulheres que entravam pontualmente no café a pedir esmola, um pão para o meu menino, enquanto, lá fora, os miúdos ficavam a brincar, a sujar as mãos. as roupas já estavam sujas.
porém, entres eles e as pessoas, entre eles e as palavras que se desprendiam sem nexo de outras conversas, havia um muro de cristal muito fino: desinteresse. era esse muro que mantinha o silêncio naquela mesa.
num momento, lá fora, os miúdos e os graúdos ficaram a admirar a passagem de uma furgoneta que, à janela, trazia um homem com meio corpo de fora e com um altifalante na mão. havia jogo do Benfica, mas este é outro assunto sem nenhuma relevância.
aquilo de que vos quero falar é aquilo que também Pedro Oom estava à espera que António Maria Lisboa começasse a contar. mas ele parecia compenetrado em esticar aquele tempo, em aumentar a curiosidade do seu amigo Pedro. o bagaço a escorrer-lhe pela garganta, chamas, os olhos a passarem rápidos pelo jornal.
está tudo na mesma, concluiu, e levantou os olhos. Pedro respondeu com silêncio, [...]
e foi num momento seguinte que António começou a falar.
já leste Álvaro de Campos?
essa é uma pergunta séria?
não. uma pergunta séria é quanto custa este bagaço!
riram-se. ambos se deleitavam com o sarcasmo.
sim, já li Campos, é claro! e o bagaço custa vinte tostões.
tens a certeza?
tenho. quantos bagaços já bebemos aqui?
de facto, eram dois clientes habituais daquela pequena taberna situada na baixa de Lisboa. sabiam perfeitamente quanto custava um bagaço, um café ou uma puta; sabiam de cor, quando sóbrios, os nomes de todos os empregados, três, daquele café. mas a pergunta não era essa, o preço do bagaço era um outro assunto sem nenhuma relevância.
não é isso. tens a certeza que já leste Álvaro de Campos?
António, são duas da tarde e tu já estás a delirar? pensei que tivesses algo urgente para falar comigo, mas já vi que não…!
irritado, Pedro atirou algumas moedas para cima da mesa e preparava-se já para sair. não tinha tempo a perder. não que condenasse a embriaguez do seu compincha, mas esperava mais. nem um nem outro eram pessoas de perder tempo. eram jovens, eram urgentes em tudo o que faziam. de resto, faziam muito pouco, quase nada, mas eram céleres em tudo. desde a poesia até ao amor. eram dois relâmpagos.
foi nesse momento que António deixou cair sobre a mesa um amontoado de papéis, aparentemente velhos, nitidamente sujos. foi nesse momento que o assunto, aquele, este, por fim, chegou. o assunto assentou, precipitou-se, para vos ser mais preciso, sobre a mesa na forma de todas aquelas folhas.
o que é isto?
um segredo.
era o segredo que Lisboa trazia de Paris. dos cigarros de Pedro evaporaram dúvidas. dos cigarros enrolados de António evaporavam mistérios que subiam para além do tecto de madeira velha da taberna. sentados à mesma mesa, habitavam dois homens em realidades completamente antagónicas, universos enviesados. um olhava aqueles papéis e não sabia, não entendia; o outro olhava a cara do outro e imaginava-a quando soubesse. e ficaram nesta dança desalinhada dos seus olhares, onde a única melodia presente era o silêncio. foi num desses instantes, cortado por outro estalar de dedos, que Pedro pediu dois copos de vinho tinto.
porra, diz lá o que é isto! é o Santo Graal?
é quase, é quase.
            então toma cuidado com o lápis azul, António. o santo professor Oliveirinha não haveria de gostar que não partilhasses o segredo do cálice com ele.
e o empregado acercou-se outra vez, de fininho, com passos de espuma, e pousou os copos na mesa, plim-plim. um brinde. beberam-no quase de um trago. depois disso, António chamou duas espanholas que os olhavam há muito para se sentarem com eles. Pedro era introvertido, porém não era necessária grande perícia para lidar com espanholas. António perguntou qualquer coisa e ela disse que sim, perguntou uma outra e ela disse dez escudos. não houveram mais perguntas, nem respostas. o pobre do Pedro teria de esperar, porque por essa altura já António subia as escadas que davam para uns quartos velhos, quase aidos, engalfinhado com a espanhola. fizeram sexo, acho que não precisava de vos contar isto. que ridículo que fui!
 antes de sair da taberna, Pedro, furioso, pagou os copos de vinho, o bagaço e o café. a espanhola, que numa primeira instância quase se sentiu rejeitada, pegou nos dez escudos que Pedro lhe deixou em cima da mesa, pediu conhaque e ficou a remexer aquele monte de folhas. olhou-os muito séria primeiro. tentou compreendê-los, fingiu um ar compenetrado do qual os velhos se riram e ao qual fizeram comentários rudes. Olaya acabou a bebida, pegou nos papéis, num maço de cigarrilhas que estava num dos bolsos de um casaco comprido e castanho pendurado na cadeira à sua frente, e saiu apressada. no café todos se riram abundantemente. lá fora, os miúdos riam-se sem ter um motivo. no quarto, António não se lembrou, não lhe faltou nada, mesmo nada. na rua, Pedro lembrou-se do sorriso de Olaya; sorriu. noutra rua, Olaya cansou-se de observar todas aquelas folhas, deitou-as fora e esqueceu-as.
            misturados com a brisa, feitos da mesma matéria, o homem que guardava pessoas, Ele e os Mudos assistiram a toda aquela sucessão de tempo, de coisa quase nenhuma. os Mudos não disseram nada, e foi o homem que guardava pessoas que sugeriu, talvez tenha sido melhor assim. depois o silêncio disse-lhes qualquer coisa ao ouvido e baixaram os rostos: Ele chorou.
            algo se perdeu. o Benfica, mais tarde, ganhou.

            Paris parecia-lhe uma cidade imensa, mas, ao mesmo tempo, em nada superava as suas expectativas. conseguia respirar um ar diferente, mais solto, mais ágil, naquela cidade. para melhor perceberem os seus sentimentos, imaginem um louco no corpo de um colibri.
durante os dois meses que lá passou nunca sentiu saudades de Lisboa, nem da cidade que lhe deu nome nem do seu próprio nome. os automóveis sucediam-se a um ritmo vertiginoso, os prédios pareciam querem rasgar o céu e fazer cair estrelas sobre a cidade, uma mesmo no topo da Torre Eiffel, algumas sentadas, lá no alto, no Arco do Triunfo. no entanto, havia o Sena, que corria indiferente a toda azáfama, com as suas águas seguindo o rota solar. havia os jardins de Versalhes, também eles apaziguadores, vivendo num tempo magnânimo mas obsoleto – não, não é contradição. os Campos Elísios, um tapete verde, a contrastar com o ferro emergente. depois havia também uma série de coisa triviais: os cabarets, entre eles, claro, o Moulin Rouge, os cinemas, as fábricas, as ruas pavimentadas, as luzes, o ferro e os restos de uma guerra. depois, haviam as colinas, cabeças de gigantes que permanecem enterrados no subsolo, para lá dos olhos. esses gigantes choram, e é por isso que se diz existirem riachos por debaixo das ruas parisienses.
António, que tanto sonhava com terras da Índia, encontrava-se fascinado com tudo o que o rodeava. quase se comovia com tudo aquilo, com a comoção natural de um jovem, que se manifesta de outra forma. aquela cidade dava-lhe tusa. tudo era um estímulo, tudo aquilo era onírico, e sentia-se tão longe de Lisboa. não era apenas a distância que lhe suscitava essa compreensível impressão, eram sobretudo os movimentos, os ruídos autómatos e estridentes das máquinas, e eram também as pernas destapadas das francesas.
esta cidade é apetite, pensava.
estávamos em 1948. Paris já não tinha a vivacidade anterior à guerra, haviam ainda várias cicatrizes espalhadas pelo corpo redondo e alongado daquela cidade no limite da cidade, quase que a contorná-la, existiam os subúrbios, cada vez mais cheios de imigrantes. primeiro foram os russos, logo após a revolução soviética e, depois, em ondas sucessivas, juntaram-se-lhes poloneses, espanhóis, portugueses, argelinos, tunisinos e judeus sefarditas. Paris era uma miscelânea de culturas, e era isso que encantava António. isso, o facto de aquela cidade ser o berço do surrealismo e, claro está , as mulheres – as francesas, as russas, as argelinas e as tunisinas; portuguesas e judias já ele tivera conhecido muitas.
apesar de instalado no coração da cidade, bem próximo de Montmartre, António costumava deslocar-se frequentemente, através do comboio, até à periferia: casas enlatadas. não lhe interessavam muito, mesmo nada, as catedrais góticas, o Garnier, o Comédie Française, o l’Odéon ou o Mogador. relíquias ornamentadas também as havia em Portugal. ele queria mais. quero tudo, pensava.

os Mudos eram irmãos, mas em tudo eram diferentes. ambos eram capazes de falar, de dizer esta palavra: esta; mas poucas eram as vezes em que diziam alguma coisa, podiam dizer bom dia ou boa noite ao revisor do ferry, aos porteiros, mas isso não é falar, é reproduzir um som entranhado na pele pela moral e pelas boas maneiras.
            os Mudos olhavam demasiado, perdiam horas, dias, nesse exercício. um espantava-se com tudo, o outro era uma rocha indolente que era capaz de olhar.
num outro ponto da cidade, oculto, o grupo estava reunido, faltava apenas chegar o De Vasconcelos. não era algo estranho. eu era sempre o último a chegar, mas chegava sempre.

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