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sábado, 19 de maio de 2012

canção de criança



a tarde a esvaziar a luz, o tempo a fazer correr estas palavras para um final não programado, as ruas pacíficas, com nomes de cidades imponentes, paradas sobre este primeiro domingo de primavera. o mar a abraçar o sol, a engoli-lo, a digeri-lo, cores a brotarem no céu morno, um último pensamento a desprender-se e a formar estas palavras que correm, que se repetem, que correm. as paredes brancas da sala onde me encontro a protegerem esta corrida, o branco em abundância deste novo documento word, ainda sem nome, a diminuir de cada vez que os meus dedos tocam este teclado. deste computador, como um piano que tem apenas teclas brancas, cada uma com uma caracter diferente, uma melodia evapora. consegues escutá-la?
            desliga a televisão, se for preciso. manda calar os vizinhos, insulta-os, se for preciso. atira tochas acesas a todos os automóveis que passam na tua rua, peço-te que o faças, o seguro cobrirá todos esses danos. queima o silêncio sarcástico das cadeiras vazias e senta nelas vasos de orquídeas. fecha os olhos,  sente o perfume, escuta a melodia dos meus dedos que ficou patente nestas palavras. abstrai-te deste texto. não tenhas medo.
            (finge que não os abriste ainda)
a esta hora, num outro qualquer lugar, existe a noite a cobrir os pensamentos e a libertar os medos. sabemos que não falta muito para que a noite chegue também aqui e para que este momento termine. sabemos e aceitamos isso, tal como Adão e Eva aceitaram a expulsão do paraíso. no entanto, temos medo da noite, temos medo de nos perdermos e ambos queremos que esta frase não seja a última. temos tanta coisa que ainda não dissemos…
(finge que não abriste ainda os olhos. imagina o sol dentro do teu corpo feito de céu quente; correntes marítimas a formarem-se no teu peito e a tornarem-no morno.)
chegou a noite. não tenhas medo. lá fora, sabemos, existem unicórnios a dilacerarem poemas futuristas; existem polícias em vigia às nossas janelas, indiferentes a essas fantasias secretas que os rodeiam. dentro de ti, existe uma melodia crescente e que doma os teus sentidos e os teus pensamentos esquecidos há muito tempo. verbaliza-a! se não souberes a letra, «na-na-na» no refrão também serve. o amor não é coisa complexa, é canção de criança.
(finge que não abriste ainda os olhos. escuta, dança.)        

Nota: Este texto não é actual, na verdade, remonta a Fevereiro de 2010. Este mês tem sido bastante preenchido e não tido o tempo que desejava para produzir novos textos. A vocês - amigos de sempre, amigos de copos, amigos do facebook, amigos da poesia que visitam com regularidade este blogue -, a todos vocês, o meu obrigado pela dedicação e compreensão!

terça-feira, 15 de maio de 2012

o leão devorou as nossas palavras




poderíamos ter escolhido um outro qualquer banco,
de resto, em tudo se pareciam semelhantes, mas,
por motivos vários, aquele era o adequado. e parámos.
sentámo-nos. os cigarros a combaterem o silêncio,
os nossos pensamentos a procurarem temas, palavras,
versos memoráveis para lembrarmos na velhice.

nós não sabíamos, nós não suspeitávamos.

em redor, todo um mundo a suceder-se, estridências.
o frio e o cinzento do céu a unirem-se formando tremores,
semblantes carregados, casacos negros e dores de cabeça.

nós não sabíamos, não suspeitávamos que ele era assim,
sempre pensamos que ele fosse cores vivas e diluídas,
aguarelas novas. sim, ele também pode significar Inverno.

pensávamos que o silêncio era a sua falta, o seu contrário,
mas os nossos lábios, unidos, formaram um poema tão terno.

sábado, 12 de maio de 2012

as pessoas que nunca deram um pu




lá vão elas, de olhos entreabertos, conhecendo apenas os significados mais rectos, os resultados mais previsíveis e os caminhos mais certos até casa. as paredes das suas casas, redutos convictos, fortalezas feitas de um papel muito branco, são como o mármore que prende e sepulta qualquer tipo de actividade secreta ao racionalismo que  trazem sempre apresentável, como as calças orgulhosamente vincadas, como os vestidos que deixam ver pescoços adornados com diamantes.
lá vão elas, pela rua fora, com a altivez de baixo do braço, junto à pastinha que transporta assuntos do escritório: coisas importantes: se elas caem e os papéis se desorganizam, todo um mundo se estilhaça; lá vão elas, com a soberba calçada nos pés, os saltos a marcarem o ritmo, a definirem o tempo que passa no centro comercial: a rigidez nas palavras ao telemóvel: se a empregada doméstica está doente, todo um mundo se estilhaça.
antes de saírem de casa, estas pessoas, homens e mulheres, que passam agora como que sem olhar, foram o reflexo do medo. enquanto faziam a barba, a lâmina sobre a pele fina, olhavam-se no espelho e fingiam saber quem eram, quem são agora neste momento, mas sentiam o medo: o peso da vida nos dedos que seguravam a gilete: um aperto; enquanto aplicavam sombreados, o lápis de encontro às pálpebras, olhavam-se no espelho e fingiam saber quem eram, quem serão amanhã, mas o medo tocava-lhes: a dor do tempo a ficar esbatida no risco dos olhos: uma lágrima. estas são as pessoas que nunca deram um pu. lá vão elas, céleres na urgência, na imposição de manter um mundo de ornamentos a salvo de qualquer tipo de pó.
eu e tu já demos pus. não tenhas vergonha disso! o nosso mundo já se partiu em ocasiões pontuais e, por vezes, a culpa nem foi nossa. as maçãs do nosso rosto coradas nesses instantes. talvez tenha sido por alguma coisa que comemos e que, sem sabermos, nos fez mal. o estômago em voltas, as mãos metidas nos bolsos, o olhar escondido de qualquer tipo de reprovação social. nesse momento, nós não admitimos, mas fomos nós. sim, fomos nós, e depois?
depois do medo, esse acto de contrição, só existe liberdade a flutuar. agora, neste momento em que estamos só os dois, à mercê de um desabamento colectivo ou de uma erupção vulcânica dentro dos nossos corpos, reflectimos e percebemos que talvez o amor seja um peido fininho.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

vamos ver as montras




deixemos de parte todos os copos de mágoa meio vazios
e os poemas assolados pelos silêncios cortantes e sombrios,
estirpe mutante trazida pela nossa não comparência à mesa
e pelas incertezas dissolventes e cortantes para os pulsos.

hoje vamos somente existir avulsos da terra seca e estéril;
hoje vamos ver as montras, vamos dar passos não calculados
e comprar um sorriso melhor para nós, beber do mistério,
exaltar o sacrilégio prazeroso da carne e erguer os braços.
[mais alto! os nossos pedaços nada podem contra os saldos
da felicidade matinal, nada são quando damos as mãos.]

vamos ver as montras, levitar sem saber pelas ruas da baixa.

esqueçamos a austeridade e o aprumo da poesia clássica,
assim como os ovos mexidos da reles contemporaneidade.
não quisemos ser gélidos, foi o mundo, segundo a segundo,
foi a culpa terceira que sempre apontámos com desdenho.

eu e tu, o meu olhar exacto, nunca quisemos ser Matisse
e representar na tela a luz refractária do pôr-do-sol. eu e tu,
semente de loucura, nunca quisemos ser uns surrealistas
e jurar a pés juntos a infidelidade sabida do positivismo.
aliás, nós nunca soubemos muito bem o que queríamos ser,
se uma veloz gazela emancipada ou se uma lenta lontra.

vamos pôr-nos a par das tendências. vamos ver as montras.