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sábado, 12 de maio de 2012

as pessoas que nunca deram um pu




lá vão elas, de olhos entreabertos, conhecendo apenas os significados mais rectos, os resultados mais previsíveis e os caminhos mais certos até casa. as paredes das suas casas, redutos convictos, fortalezas feitas de um papel muito branco, são como o mármore que prende e sepulta qualquer tipo de actividade secreta ao racionalismo que  trazem sempre apresentável, como as calças orgulhosamente vincadas, como os vestidos que deixam ver pescoços adornados com diamantes.
lá vão elas, pela rua fora, com a altivez de baixo do braço, junto à pastinha que transporta assuntos do escritório: coisas importantes: se elas caem e os papéis se desorganizam, todo um mundo se estilhaça; lá vão elas, com a soberba calçada nos pés, os saltos a marcarem o ritmo, a definirem o tempo que passa no centro comercial: a rigidez nas palavras ao telemóvel: se a empregada doméstica está doente, todo um mundo se estilhaça.
antes de saírem de casa, estas pessoas, homens e mulheres, que passam agora como que sem olhar, foram o reflexo do medo. enquanto faziam a barba, a lâmina sobre a pele fina, olhavam-se no espelho e fingiam saber quem eram, quem são agora neste momento, mas sentiam o medo: o peso da vida nos dedos que seguravam a gilete: um aperto; enquanto aplicavam sombreados, o lápis de encontro às pálpebras, olhavam-se no espelho e fingiam saber quem eram, quem serão amanhã, mas o medo tocava-lhes: a dor do tempo a ficar esbatida no risco dos olhos: uma lágrima. estas são as pessoas que nunca deram um pu. lá vão elas, céleres na urgência, na imposição de manter um mundo de ornamentos a salvo de qualquer tipo de pó.
eu e tu já demos pus. não tenhas vergonha disso! o nosso mundo já se partiu em ocasiões pontuais e, por vezes, a culpa nem foi nossa. as maçãs do nosso rosto coradas nesses instantes. talvez tenha sido por alguma coisa que comemos e que, sem sabermos, nos fez mal. o estômago em voltas, as mãos metidas nos bolsos, o olhar escondido de qualquer tipo de reprovação social. nesse momento, nós não admitimos, mas fomos nós. sim, fomos nós, e depois?
depois do medo, esse acto de contrição, só existe liberdade a flutuar. agora, neste momento em que estamos só os dois, à mercê de um desabamento colectivo ou de uma erupção vulcânica dentro dos nossos corpos, reflectimos e percebemos que talvez o amor seja um peido fininho.

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