Nota: o seguinte texto foi baseado na música "In The End", da banda portuguesa UTTER, assim como no respectivo videoclipe.
esquecer,
procurar, perceber
abandonei
a minha casa como se não soubesse que ainda é dia, que ainda é cedo. o tempo:
tenho de correr. na mão levava algo irrelevante porque o tempo passaria
enquanto vos explicasse a utilidade daquilo que a minha mão segurava. passou
tempo, mesmo enquanto escrevi esta última frase e era desnecessária essa
explicação. o que eu levava na mão depositei no fundo do pequeno e velho barco
de madeira. desde que me lembro, ele esteve sempre aqui, junto ao rio, e todos
o podem utilizar.
remo, o murmúrio das
águas, remo, uma voz dentro de mim, remo, um arrepio na pele, remo, a floresta
na outra margem, remo, uma paz.
algo
no meu interior conhecia aquelas águas, todos as correntes que levaram o meu
corpo até ao local onde combinei com o espaço. (e o tempo?) o tempo, como já te
disse, não garante nada, não promete aparecer e reaparecer sempre que
desejamos. e aquela ideia assustou-me, um arrepio no corpo, um assombro no
pensamento. o silêncio cobriu aquele momento separado do tempo e deu-lhe um tom
severo, quase eterno.
quando
por fim cheguei à outra margem, percebi que era este o local combinado. o
espaço já tinha feito todos os preparativos. troquei de roupa, vesti a pele, o
corpo, o significado de um animal livre e selvagem. não importa referir a
espécie, isso dir-vos-ia muito pouco acerca de qualquer ser específico e
concreto. era isto, esta pele de liberdade, que segurava na mão, que
transportei no pequeno barco, que vesti agora: era isto que tinha combinado com
o espaço.
caminho, mais uma vez
sou um origami, caminho, esqueço a minha forma, caminho, o meu nome vale tão pouco,
caminho, chego.
bati
à porta! o Tempo oculto, anulado. o espaço sorriu-me ao abrir a porta. um
enorme tapete verde, um enorme céu azul, os meus olhos a receberem-nos.
abraçámo-nos, toquei a sua relva, a sua terra, o seu céu. somos o elemento um
do outro. por fim, percebi. é tão simples! eu respeito o espaço e ele
respeita-me. somos o complemento um do outro, pois nada somos um sem o outro. o
espaço, estes campos, esta floresta, este rio e este céu precisam de companhia,
precisam de olhos para existirem. posso fazer tudo aqui, sob esta pele, neste
espaço. ninguém me pode vencer, ninguém me pode ver, ninguém me pode sentir
para além do espaço e do tempo. (por falar no tempo, onde está ele?) lá ao
fundo! não o vês? (sim, vejo-o a acenar-me.) então corre, ainda é cedo!
uma
casa pode ser tão fria, uma casa pode ser tão vaga. a minha noção do tempo e do
espaço pode ajustar-se, pode resumir-se a esta casa. eu posso restringir-me a
esta casa e ao seu silêncio inerente; posso assumir que conheço todo o mundo
que existe exterior a mim, tenho mapas, tenho atlas, e esta casa tem tanto pó a
cobrir tudo isso. temos tanto silêncio, tanto medopulverizado a cobrir tudo aquilo que ainda
não compreendemos, tudo aquilo que ainda não vimos e que, por isso, não é nosso
ainda.
assumir,
querer, fugir
não
sou uma criança. eu e tu, sim tu, tu que me lês, sabemos muito bem disso. não
sou uma criança, mas ainda consigo correr, ainda tenho olhos, muito mais
formatados, conhecedores e entorpecidos para a sua função: ver: ainda consigo,
ainda consigo, ainda consigo! repito isto para dentro e para fora de mim;
repito isto, ofegante, como se corresse. ouço o eco exterior a mim e decido
persegui-lo, ouço o eco dentro do meu corpo, ele assume uma voz grave e rouca,
e decido fugir-lhe. não me podes escapar, não me podes apanhar!
não
é tarde, ainda. o tempo, o espaço e eu somos feitos de areia molhada, ou de
barro, ou de plasticina, e, por isso mesmo, podemos assumir vários
significados, vários sentidos. podemos ser frios e vagos como esta casa,
podemos ser desdobrados como um origami e formarmos, em conjunto, uma planta,
um horizonte de searas, uma pedra, uma montanha coberta de neve a reflectir a
luz; podemos ser as nuvens e o céu; podemos ser a natureza inteira a abraçar
uma criança com os traços do rosto que assumi um dia. queremos que ela brinque!
eu, o espaço e o tempo queremos que brinques. (posso fazer tudo?) podes fazer
tudo, nada te é impossível! (quem me garante?) garanto eu, que já tive a tua
forma e conheço todos os teus limites e possibilidades, e garante o espaço, ele
tem tantas imagens para mostrar aos teus olhos. (e o tempo?) o tempo não
garante nada, por isso corre.
ser, sorrir, correr
corro,
os meus passos a serem parte da relva, corro, o ar a sentir a minha presença,
corro, o meu corpo invisível, corro, o céu a acompanhar-me e a sorrir-me,
corro, o meu medo a ser tão pequeno, corro, o tempo a surgir cada vez maior,
corro, o meu nome a ficar para trás, corro, as letras a caírem uma a uma,
corro, não posso perder o ritmo.
ninguém me pode vencer,
não há como, eu já estou a ver o fim. ninguém me pode ver, não há como, eu já
estou a sentir o fim. ninguém me poder sentir, não há como, eu já estou a
atravessar o fim.
suprimir, voltar, seguir
e,
no final deste texto, continuarei a correr, dentro do meu pensamento reside o
rio, o bote, a floresta, as montanhas, o céu, um mundo inteiro impalpável. dentro
do meu corpo, fogo, cores vivas e diluídas em forma de esperança, sombras
diluídas nas cores, o medo. por de baixo deste texto, num sentido oculto destas
palavras, existe um mundo. nesse espaço vive uma forma minha, um origami, que
corre camuflada de outra coisa. dentro desse espaço espera um tempo, reside um
tempo, que me acena. atravesso-o, é um rio. quando eu for pleno, eu assumirei a
forma daquele barco e esperarei por quem queira atravessar o rio, por quem
queira correr.
quando
este texto acabar, eu sentirei de novo a casa fria e vaga, perdida no espaço. nunca
sai daqui. para além desta casa existe uma cidade, existem pessoas e edifícios,
origamis, em tons acinzentados. aqui, em Madrid, não existe nem rio, nem
floresta, nem montanhas, nem botes. em Madrid existe espaço, existe tempo e
existem milhões de olhos que influenciam os meus. tu, com os teus olhos que me leem,
sabes bem que eu não tenho combinações secretas com o espaço, com esse mundo
despido de seres; sabes bem que seria impossível atravessar o tempo. mas tu
também sabes, sei que sim, que não tenho nenhum compromisso com a história e a
verdade. tu também sabes o que é o frio e o medo. tu sabes que todos temos o
direito à esperança e à travessia. diz-me que sim, acena-me com a cabeça.
esperar, adormecer, remar
agora,
eu estou aqui com todos estes sons interiores a mim, cânticos de pássaros, água
a correr, vento nas folhas, e, de certa forma, eu só quero imergir neles. quando
o mundo adormecer, será o momento ideal para deixar esta casa, esta cidade. a
minha mente irá bem fundo e a Puerta del
Sol dará lugar um bosque em Copenhaga, onde correrei atrás do tempo.
enquanto
não ousares fazer a travessia, pega no nome que eu deixei para trás e fá-lo teu,
usa-o em todos os dias da tua vida. E, S, P, E, R, A, N, Z, A, são essas as
letras que me caíram enquanto corria. procura-as, ainda é cedo
e nós soubemos que não seria sempre assim. nós
soubemos mesmo sem querermos acreditar, mesmo sem sabermos se valia a pena
termos essa consciência. mas nós soubemos. soubemos sobretudo porque,
subitamente, tivemos relógios de novo, máquinas perfeitas e implacáveis; nós
soubemos porque tínhamos a visão do rio, sempre a correr, defronte para nós;
nós soubemos também pela tonalidade maleável do céu onde giravam gaivotas,
faziam círculos perfeitos onde eu colocava os meus sonhos mais persistentes. eu
sentia o meu peso apenas vagamente. ele quase podia levitar juntamente com os
meus olhos, mas não neste mundo tão concreto. nós também sabíamos disso. os
corpos não podem levitar, ficar suspensos no tempo, nesta suposição
fundamentada que temos do mundo, este universo de fórmulas matemáticas, exactas
portanto.
de repente, os olhos, cegos por vontade própria
durante algum não-tempo, vislumbraram os automóveis que passavam na ponte sobre
o rio, as luzes que iluminavam o mosteiro. com o espanto de quem vê um
espectro, com o medo de quem enterra, para sempre, alguém querido, nós
soubemos, plenamente, que o mundo não tinha escutado as palavras que tu me
deste ou que eu te dei a ti; não tinha guardado os nossos gestos na sua agenda
com folhas de linhas tortas. as minhas mãos quiseram negar tudo isto, trazer-te
de volta, mas tu já não estavas. moras ao lado dos meus sonhos, dentro dos
círculos desenhados pelo voo das gaivotas. pedi ao Ave que não libertasse o
tempo, ainda era cedo. ele não ouviu. atirei uma pedra. e ele zangou-se.
não sentir o tempo nesta cidade pode ser comparado a
beber um copo de água, límpida e luminosa, fresca e ágil a refrescar os corpos,
as entranhas mais profundas. os cofres mais secretos que guardamos dentro da
nossa existência podem sair, podem assumir várias formas diante de nós. tudo
nesta cidade pode parecer eterno por alguns momentos. escrever poesia nesta
cidade é algo praticamente inevitável, até para o mais opaco astrofísico.
aqui, onde me encontro, neste banco de jardim, tal
como nos outros restantes bancos de madeira velha, pintados de verde e cagados
pelas pombas ou pelas gaivotas, o tempo assume linhas confusas, perde a sua
rectidão, a sua objectividade. aqui, todos os nossos cofres interiores podem
ser abertos sem medo, quase com todo o tempo do mundo. às vezes penso que algo
aqui retrocede. mas eu sei, eu sei: o tempo existe neste banco, nos restantes,
em todos os bancos de jardim do mundo, em todos os mundos concretos. o tempo
existe e o Ave aborreceu-se comigo.
aqui, as folhas amareladas pelo outono caem mudas;
aqui, o calor do verão é esbatido na nossa pele com uma brisa fresca
ribeirinha; aqui, a primavera traz o perfume das flores e do rio e do mar,
misturados com o som dos motores dos barcos, pequenas embarcações carregadas de
esperança, suor e rezas inventadas pelas viúvas de pescadores passados; aqui, o
inverno é aquecido pelas luzes do mosteiro. agora, o inverno. quase noite.
agora, o mosteiro iluminado pelas luzes de Natal.
encontrar-te nesta cidade foi algo tão simples, meu
amor. só me deixaste por capricho do tempo. no fundo, eu não o culpo, pois tu
tens tanto amor para dar, tantas folhas brancas à tua espera. vai! conhece
todos os poetas do mundo e fala-me deles amanhã, meu amor!
chegará o dia em que findarão os nossos encontros
secretos, aqui e em qualquer outro local possível deste mundo. mas, por
enquanto, ainda temos tempo, meu amor. ainda temos dias e anos e décadas, ainda
temos tantos lugares, mas sempre preferimos este porque ele não tinha tempo,
tanto não-tempo a abundar aqui. quando eu deixar de aparecer, não penses que te
abandonei. eu estarei nos círculos das gaivotas, nas folhas amareladas, na
brisa fresca, no rugido dos motores dos barcos, nas luzes que se iluminam no
mosteiro e que te lembram que tens de partir para outro lugar. eu estarei no
tempo, pelo tempo fora: sempre aqui.
aqui, nesta cidade, haverá sempre alguém a
escrever-te, a fazer-te das mais diversas formas: com versos soltos, com rimas
ornamentadas e solenes, com métrica rígida como aço, com palavras de outono e
verão e primavera e inverno, com palavras de tempos misturados onde tu existes
gigante, carregada de esperança como as embarcações de que te falei, meu amor.
Poesia, haverá sempre alguém a encontrar-te aqui, em
Vila do Conde, junto ao Ave, esse senhor do tempo. Poesia, meu amor, fala com
ele! diz-lhe que não o quis magoar, apenas não quis ver passar o tempo.