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quinta-feira, 22 de março de 2012

eternos são os medos

 Fotografia: Eduardo Lima


escrever poesia é provocar terramotos interiores.
por isso mesmo, quando me perguntam
por que motivo insisto em fazê-lo, costumo dizer:
gosto de tremer, porque o medo faz parte.

todos sabemos, exceptuando os loucos,
camuflar os nossos medos com as crenças mais absurdas,
crenças que passamos de geração em geração. assim,
aos poucos, aquilo em que acreditamos,
em que acreditamos sem precisarmos do positivismo,
vai sendo corrompido pelo tempo
e pelas várias mãos que seguram e moldam essas certezas,
mas que, por vezes, as deixam cair.

os medos continuam sempre, eternamente.
o tempo não existe para eles. um poema é um medo,
mesmo quando escrevemos sobre o amor,
fazemo-lo pelo medo consciente de o perder,
porque o amor não é um medo,
e, por isso, não atravessará as várias eras futuras do Universo.
disso temos medo. um poema faz-se, simplesmente, de medo.
faz-se de tempo deitado fora.

mas é cedo, certeza com fracturas,
porque eternos são os nossos medos camuflados de versos:
deuses-dourados-adolescentes ou monstros-dementes diversos.

quarta-feira, 14 de março de 2012

ao lado do tempo



Nota: o seguinte texto foi baseado na música "In The End", da banda portuguesa UTTER, assim como no respectivo videoclipe. 


esquecer, procurar, perceber

abandonei a minha casa como se não soubesse que ainda é dia, que ainda é cedo. o tempo: tenho de correr. na mão levava algo irrelevante porque o tempo passaria enquanto vos explicasse a utilidade daquilo que a minha mão segurava. passou tempo, mesmo enquanto escrevi esta última frase e era desnecessária essa explicação. o que eu levava na mão depositei no fundo do pequeno e velho barco de madeira. desde que me lembro, ele esteve sempre aqui, junto ao rio, e todos o podem utilizar.

remo, o murmúrio das águas, remo, uma voz dentro de mim, remo, um arrepio na pele, remo, a floresta na outra margem, remo, uma paz.

algo no meu interior conhecia aquelas águas, todos as correntes que levaram o meu corpo até ao local onde combinei com o espaço. (e o tempo?) o tempo, como já te disse, não garante nada, não promete aparecer e reaparecer sempre que desejamos. e aquela ideia assustou-me, um arrepio no corpo, um assombro no pensamento. o silêncio cobriu aquele momento separado do tempo e deu-lhe um tom severo, quase eterno.
quando por fim cheguei à outra margem, percebi que era este o local combinado. o espaço já tinha feito todos os preparativos. troquei de roupa, vesti a pele, o corpo, o significado de um animal livre e selvagem. não importa referir a espécie, isso dir-vos-ia muito pouco acerca de qualquer ser específico e concreto. era isto, esta pele de liberdade, que segurava na mão, que transportei no pequeno barco, que vesti agora: era isto que tinha combinado com o espaço.

caminho, mais uma vez sou um origami, caminho, esqueço a minha forma, caminho, o meu nome vale tão pouco, caminho, chego.

bati à porta! o Tempo oculto, anulado. o espaço sorriu-me ao abrir a porta. um enorme tapete verde, um enorme céu azul, os meus olhos a receberem-nos. abraçámo-nos, toquei a sua relva, a sua terra, o seu céu. somos o elemento um do outro. por fim, percebi. é tão simples! eu respeito o espaço e ele respeita-me. somos o complemento um do outro, pois nada somos um sem o outro. o espaço, estes campos, esta floresta, este rio e este céu precisam de companhia, precisam de olhos para existirem. posso fazer tudo aqui, sob esta pele, neste espaço. ninguém me pode vencer, ninguém me pode ver, ninguém me pode sentir para além do espaço e do tempo. (por falar no tempo, onde está ele?) lá ao fundo! não o vês? (sim, vejo-o a acenar-me.) então corre, ainda é cedo!

uma casa pode ser tão fria, uma casa pode ser tão vaga. a minha noção do tempo e do espaço pode ajustar-se, pode resumir-se a esta casa. eu posso restringir-me a esta casa e ao seu silêncio inerente; posso assumir que conheço todo o mundo que existe exterior a mim, tenho mapas, tenho atlas, e esta casa tem tanto pó a cobrir tudo isso. temos tanto silêncio, tanto medo  pulverizado a cobrir tudo aquilo que ainda não compreendemos, tudo aquilo que ainda não vimos e que, por isso, não é nosso ainda.

assumir, querer, fugir

não sou uma criança. eu e tu, sim tu, tu que me lês, sabemos muito bem disso. não sou uma criança, mas ainda consigo correr, ainda tenho olhos, muito mais formatados, conhecedores e entorpecidos para a sua função: ver: ainda consigo, ainda consigo, ainda consigo! repito isto para dentro e para fora de mim; repito isto, ofegante, como se corresse. ouço o eco exterior a mim e decido persegui-lo, ouço o eco dentro do meu corpo, ele assume uma voz grave e rouca, e decido fugir-lhe. não me podes escapar, não me podes apanhar!
não é tarde, ainda. o tempo, o espaço e eu somos feitos de areia molhada, ou de barro, ou de plasticina, e, por isso mesmo, podemos assumir vários significados, vários sentidos. podemos ser frios e vagos como esta casa, podemos ser desdobrados como um origami e formarmos, em conjunto, uma planta, um horizonte de searas, uma pedra, uma montanha coberta de neve a reflectir a luz; podemos ser as nuvens e o céu; podemos ser a natureza inteira a abraçar uma criança com os traços do rosto que assumi um dia. queremos que ela brinque! eu, o espaço e o tempo queremos que brinques. (posso fazer tudo?) podes fazer tudo, nada te é impossível! (quem me garante?) garanto eu, que já tive a tua forma e conheço todos os teus limites e possibilidades, e garante o espaço, ele tem tantas imagens para mostrar aos teus olhos. (e o tempo?) o tempo não garante nada, por isso corre.

 ser, sorrir, correr

corro, os meus passos a serem parte da relva, corro, o ar a sentir a minha presença, corro, o meu corpo invisível, corro, o céu a acompanhar-me e a sorrir-me, corro, o meu medo a ser tão pequeno, corro, o tempo a surgir cada vez maior, corro, o meu nome a ficar para trás, corro, as letras a caírem uma a uma, corro, não posso perder o ritmo.

ninguém me pode vencer, não há como, eu já estou a ver o fim. ninguém me pode ver, não há como, eu já estou a sentir o fim. ninguém me poder sentir, não há como, eu já estou a atravessar o fim.

suprimir, voltar, seguir

e, no final deste texto, continuarei a correr, dentro do meu pensamento reside o rio, o bote, a floresta, as montanhas, o céu, um mundo inteiro impalpável. dentro do meu corpo, fogo, cores vivas e diluídas em forma de esperança, sombras diluídas nas cores, o medo. por de baixo deste texto, num sentido oculto destas palavras, existe um mundo. nesse espaço vive uma forma minha, um origami, que corre camuflada de outra coisa. dentro desse espaço espera um tempo, reside um tempo, que me acena. atravesso-o, é um rio. quando eu for pleno, eu assumirei a forma daquele barco e esperarei por quem queira atravessar o rio, por quem queira correr.
quando este texto acabar, eu sentirei de novo a casa fria e vaga, perdida no espaço. nunca sai daqui. para além desta casa existe uma cidade, existem pessoas e edifícios, origamis, em tons acinzentados. aqui, em Madrid, não existe nem rio, nem floresta, nem montanhas, nem botes. em Madrid existe espaço, existe tempo e existem milhões de olhos que influenciam os meus. tu, com os teus olhos que me leem, sabes bem que eu não tenho combinações secretas com o espaço, com esse mundo despido de seres; sabes bem que seria impossível atravessar o tempo. mas tu também sabes, sei que sim, que não tenho nenhum compromisso com a história e a verdade. tu também sabes o que é o frio e o medo. tu sabes que todos temos o direito à esperança e à travessia. diz-me que sim, acena-me com a cabeça.


esperar, adormecer, remar

agora, eu estou aqui com todos estes sons interiores a mim, cânticos de pássaros, água a correr, vento nas folhas, e, de certa forma, eu só quero imergir neles. quando o mundo adormecer, será o momento ideal para deixar esta casa, esta cidade. a minha mente irá bem fundo e a Puerta del Sol dará lugar um bosque em Copenhaga, onde correrei atrás do tempo.
enquanto não ousares fazer a travessia, pega no nome que eu deixei para trás e fá-lo teu, usa-o em todos os dias da tua vida. E, S, P, E, R, A, N, Z, A, são essas as letras que me caíram enquanto corria. procura-as, ainda é cedo

sábado, 10 de março de 2012

Ave, não libertes o tempo!





e nós soubemos que não seria sempre assim. nós soubemos mesmo sem querermos acreditar, mesmo sem sabermos se valia a pena termos essa consciência. mas nós soubemos. soubemos sobretudo porque, subitamente, tivemos relógios de novo, máquinas perfeitas e implacáveis; nós soubemos porque tínhamos a visão do rio, sempre a correr, defronte para nós; nós soubemos também pela tonalidade maleável do céu onde giravam gaivotas, faziam círculos perfeitos onde eu colocava os meus sonhos mais persistentes. eu sentia o meu peso apenas vagamente. ele quase podia levitar juntamente com os meus olhos, mas não neste mundo tão concreto. nós também sabíamos disso. os corpos não podem levitar, ficar suspensos no tempo, nesta suposição fundamentada que temos do mundo, este universo de fórmulas matemáticas, exactas portanto.
de repente, os olhos, cegos por vontade própria durante algum não-tempo, vislumbraram os automóveis que passavam na ponte sobre o rio, as luzes que iluminavam o mosteiro. com o espanto de quem vê um espectro, com o medo de quem enterra, para sempre, alguém querido, nós soubemos, plenamente, que o mundo não tinha escutado as palavras que tu me deste ou que eu te dei a ti; não tinha guardado os nossos gestos na sua agenda com folhas de linhas tortas. as minhas mãos quiseram negar tudo isto, trazer-te de volta, mas tu já não estavas. moras ao lado dos meus sonhos, dentro dos círculos desenhados pelo voo das gaivotas. pedi ao Ave que não libertasse o tempo, ainda era cedo. ele não ouviu. atirei uma pedra. e ele zangou-se.
não sentir o tempo nesta cidade pode ser comparado a beber um copo de água, límpida e luminosa, fresca e ágil a refrescar os corpos, as entranhas mais profundas. os cofres mais secretos que guardamos dentro da nossa existência podem sair, podem assumir várias formas diante de nós. tudo nesta cidade pode parecer eterno por alguns momentos. escrever poesia nesta cidade é algo praticamente inevitável, até para o mais opaco astrofísico.
aqui, onde me encontro, neste banco de jardim, tal como nos outros restantes bancos de madeira velha, pintados de verde e cagados pelas pombas ou pelas gaivotas, o tempo assume linhas confusas, perde a sua rectidão, a sua objectividade. aqui, todos os nossos cofres interiores podem ser abertos sem medo, quase com todo o tempo do mundo. às vezes penso que algo aqui retrocede. mas eu sei, eu sei: o tempo existe neste banco, nos restantes, em todos os bancos de jardim do mundo, em todos os mundos concretos. o tempo existe e o Ave aborreceu-se comigo.
aqui, as folhas amareladas pelo outono caem mudas; aqui, o calor do verão é esbatido na nossa pele com uma brisa fresca ribeirinha; aqui, a primavera traz o perfume das flores e do rio e do mar, misturados com o som dos motores dos barcos, pequenas embarcações carregadas de esperança, suor e rezas inventadas pelas viúvas de pescadores passados; aqui, o inverno é aquecido pelas luzes do mosteiro. agora, o inverno. quase noite. agora, o mosteiro iluminado pelas luzes de Natal.
encontrar-te nesta cidade foi algo tão simples, meu amor. só me deixaste por capricho do tempo. no fundo, eu não o culpo, pois tu tens tanto amor para dar, tantas folhas brancas à tua espera. vai! conhece todos os poetas do mundo e fala-me deles amanhã, meu amor!
chegará o dia em que findarão os nossos encontros secretos, aqui e em qualquer outro local possível deste mundo. mas, por enquanto, ainda temos tempo, meu amor. ainda temos dias e anos e décadas, ainda temos tantos lugares, mas sempre preferimos este porque ele não tinha tempo, tanto não-tempo a abundar aqui. quando eu deixar de aparecer, não penses que te abandonei. eu estarei nos círculos das gaivotas, nas folhas amareladas, na brisa fresca, no rugido dos motores dos barcos, nas luzes que se iluminam no mosteiro e que te lembram que tens de partir para outro lugar. eu estarei no tempo, pelo tempo fora: sempre aqui.
aqui, nesta cidade, haverá sempre alguém a escrever-te, a fazer-te das mais diversas formas: com versos soltos, com rimas ornamentadas e solenes, com métrica rígida como aço, com palavras de outono e verão e primavera e inverno, com palavras de tempos misturados onde tu existes gigante, carregada de esperança como as embarcações de que te falei, meu amor.
Poesia, haverá sempre alguém a encontrar-te aqui, em Vila do Conde, junto ao Ave, esse senhor do tempo. Poesia, meu amor, fala com ele! diz-lhe que não o quis magoar, apenas não quis ver passar o tempo.

quarta-feira, 7 de março de 2012

deu-me na veneta construir um homizio

Fotografia: Eduardo Lima


eu já tentei ser o que me disseram que seria melhor.
eu já fiz por ver aquelas virtudes que sabemos de cor.

o mundo serpenteia-me sempre célere nas veias,
conhece todos os atalhos e meios para chegar até mim:
um lugar sombrio, escondido de qualquer verdade.

eu sei que tudo são possibilidades
e que o meu corpo treme de frio.
mas e se fingíssemos nas idades,
rasgássemos a razão e fôssemos
crianças eternas de mãos dadas
que não questionam o seu rumo?
ingénuas, elas são íntegras, opacas,
e vão ignorando este nosso fumo.

se um dia eu me construir num avião,
colar-me-ei a umas asas de papel novo,
para que o vento me pegue de feição
e me dê uma direcção rara: Moscovo.
quero apenas ser algo, um objecto,
uma tara, filha das minhas mãos incautas.
quero livrar-me por fim desse teu certo,
estar errado e nomear-me astronauta.

eu sei que sou mais do que um rio que passa
e que nem sempre olho a medo essas margens.
sei que sim, mas eu: este que ouves: sou nada.
sou apenas a personagem desta estranha canção
que fala de mim e da minha falta de sentido.

eu: este eu pode muito bem ser uma pedra,
pode ser uma lareira onde ardem poemas,
pode ser a certeza que em mim não medra,
pode ser a nascente de todos estes dilemas.

eu posso ser tudo, até uma maçã prateada,
porque sou eu quem dá forma ao meu vício
e eu nunca conheci a minha norma desejada.

enfim, deu-me na veneta construir um homizio.