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sábado, 22 de março de 2014

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não faças de novo,
faz o novo.

repito isto para mim próprio,
tentando não me esquecer,
tal como não me esqueço do rosto dos pesadelos.

em suma,
depois de contar todos os cabelos do busto do meu pensamento,
concluo: SOU UM MOINHO DE IDEIAS- FANTASMA
que sempre acabam por me assombrar e deixar-me no susto
numa ou noutra altura.

um moinho esquecido numa terra onde o vento,
despojado da capacidade de provocar o gesto ou o movimento,

morreu sem manifesto.

domingo, 16 de março de 2014

neste quintal



neste quintal não medra merda nenhuma
! oito séculos a fertilizar e nada
… somente a espuma de uma colheita
que um inverno eterno definha.
demasiado estrume
? escassez de terra
? são hipóteses também
para que o cravo tenha brotado murcho.

deste quintal nem os pardais se assomam,
afugentados pelo cocorocó das galinhas burras
que põe ovos sem gema
para que a faca as deixe permanecer vivas

já sem cabeça,  mas com o pescoço altivo.

domingo, 9 de março de 2014

antes de pagar a conta


Garçon, tenho o copo das premissas vazio… traga-me Índias,
fale-me de história, da ilustre sina dos escravos
que agora somos nós, que agora, derradeiramente, sou eu.
encha-me o copo, por favor! a ciência recusa-se
e deus já se deitou, cansado da criação
e da poesia da maquinaria de guerra. traga-me um dos pólos,
tanto me faz, pretendo meramente sitiar um dos extremos
e assim contemplar o avanço da primavera sobre o gelo.
mas só quando todos se forem embora na sua migração nocturna
                                                                                   para [onde?]
casa. trópicos de solidão
onde preservamos bem vincado o ilustre contrato social.
é sobretudo a horas tardias que eu mais amo a Humanidade,
apenas porque a imagino outra, num sem número de possibilidades.

Garçon, tenho o copo das ilusões vazio… traga-me dias,
fale-me da criança que fui, confeccione um país que me mate a fome,
sem os holofotes da mentira, e deite sobre ele o velho que serei.

o jornal condene-o à fogueira. a actualidade a crepitar: desejo antigo
de alguém a quem o tempo fez nascer com propósitos
la         ten       tes.

Garçon, tenho o copo das emoções partido… traga-me um poço novo,
mas retire-lhe o encanto que desperta a coragem suprema dos suicidas,
quero apenas sorver a espuma de um amor-cerveja
sem ter de reter no palato o seu trago agridoce.

Garçon, quando me trouxer alguma coisa, sorria
e diga que sou o maior artista vivo. não sinta. minta apenas.
ah, somos tão bons a fazê-lo! como um clã de famintas hienas
desdenhando os abutres que voam mais alto sobre a carcaça dos sonhos
e dos pensamentos mais ocultos e surdos que agora se definham
como galáxias próximas num universo morto,
como barcos roubados de uma frota no porto.

Garçon, tinha aqui um copo vazio de Tudo… quem mo encheu de Nada?


terça-feira, 4 de março de 2014

Mãe, eu matei um soneto


tenho nos olhos implantadas raízes antigas
que me prendem aos lugares desertos
e que sorvem as correntes de água subterrâneas
dos teus caminhos indecifráveis e secretos.

tenho no peito enraizadas árvores carbonizadas
pelo fogo extinto das ideias sem dono
que perpetuam esta promessa dum país de cravos
desabrochados e vivos, mas com cores de outono.

tenho numa das mãos um livro de banda desenhada
e na outra um papel dobrado que nunca se fez barco
por não haver oceanos novos para o sucesso dos dias.

tenho nos meus pés acostumados um parco cansaço
comum a todos aqueles que desdenharam a estrada
só porque ela de antemão não promete o regresso.


tinha este soneto como posfácio se não fosse este verso.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Elena


contempla os fogos da lembrança
como quem acena um adeus
a um olá que nunca pisou terra firme

contempla os jogos da vingança
com o desdém de Elena por um deus
ou quiçá um homúnculo de pedra-vime

Elena encanta a pedra
Elena canta a lenda
a pedra                                               a lenda
cada uma em seu canto

são um gesto impossível que Elena intenta. 

domingo, 2 de março de 2014

Ana

(a partir do poema “Ama como a estrada começa”, de Mário Cesariny)


ama como a estrada começa
começa a estrada como arma
a Ana começa como estraga
a arma concreta da estrada
como tropeça chama a entrada

do abismo onde a estrada começa
Ana: anda concreta     destrava o cume
do princípio onde a estrada cessa