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terça-feira, 26 de maio de 2015

Os peregrinos que passam à porta de minha casa

Na rua de minha casa, onde vivo eu, a minha mãe, o meu pai e o meu gato Peixoto, passam todos os dias dezenas de peregrinos. Vão para Santiago e são quase todos estrangeiros. Por vezes passam grupos extensos, constituídos por pessoas que se conhecem ao longo do percurso e que falam idiomas distintos e exóticos. Por vezes passam famílias inteiras, com crianças ainda pequenas, que caminham entusiasmadas. Outras vezes, mais raras, passa alguém solitário, porque cada um define o seu próprio trilho sobre o mundo.
            
Quase todos param em frente à varanda do meu quarto para tirar algumas fotografias. Acham bonitos os vasos com flores que a minha mãe lá tem e que eu às vezes, quando chego a casa com os copos, uso como cinzeiros e que o Peixoto frequentemente confunde com a caixa da areia.
            
O meu vizinho do lado, que controla diariamente todas as movimentações que se sucedem nesta pacata rua, mete conversa com eles. Dá-lhes algumas indicações em português, intercaladas com muitos gestos. Eles não percebem o meu vizinho, mas sorriem e depois seguem quase sempre pelo caminho errado. A compreensão, por vezes, é um bocado burra.
            
Os que caminham sozinhos não tiram fotografias nem perguntam nada. Seguem simplesmente. Hoje, ao sair de casa, vi caído em frente ao meu portão um maço de tabaco japonês. Pertencia, por certo, a um desses muitos peregrinos que por aqui passam todos os dias. Num século de santos desacreditados, um volume de Marlboro na mochila dá sempre jeito.
            
Nunca gostei muito de plantas nem do meu vizinho. Estão sempre parados no mesmo sítio. São um aborrecimento. As plantas a enfeitar a minha varanda e o meu vizinho a tentar fazer o mesmo ao portão de casa dele.
            
Gosto mais dos peregrinos porque andam pelo mundo. Gosto ainda mais da minha mãe, do meu pai e do Peixoto porque andam dentro de mim. Não lhes tiro muitas fotografias. Não tiro fotografias a quase nada, porque, de certa forma, eu também sou um desses caminhantes que passam sozinhos por casas indiscriminadas.
            
Escrevi este texto deitado, enquanto não descubro continentes novos. Até os mares lunares estão há muito cartografados. A minha mãe está lá fora a tratar dos vasos. O meu pai está em França e liga todos os dias. Falamos sobre o Benfica e sobre outras coisas. O Peixoto está deitado ao meu lado, porque também não vai muito à bola com o meu vizinho e a minha mãe zanga-se com ele quando encontra cócó nos plantas.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Balada para Leopold Bloom


deixei todos os mapas herdados abertos sobre a mesa
onde ainda ontem lá comeram protótipos de cavalos livres
onde em tempos discutimos a infância dos deuses ao serão
em que bebíamos licores e esboçávamos em guardanapos
plantações solares para colher relógios

agora recolho os mapas
vendo a mesa  vendo a casa
e nada meu há-de ficar para além dos segredos
que as paredes sustentam colados ao tecto onde reinam aranhas
que no seu canto reproduzem em quantidades industriais
teorias conceptuais do medo
calafrios que se infiltram nas entranhas da mente
e através das veias correm
como crianças impacientes
brincando solitárias à apanhada

agora recolho os mapas
e finjo não suspeitar da inutilidade dos pontos cardeais
pergunto numa língua estrangeira o paradeiro da fortuna
e um mar vazio de ideais apresenta-me a deriva
onde náufragos numa duna cantam em uníssono
uma balada para Leopold Bloom

a casa foi vendida
e até foi por bom preço
é estranho haver gente que não se importe ou repugne
de viver onde ainda habitam as memórias de outros

para mim isso não dava
eu sei lá se tu tens um passado asseado

é mesmo estranho
tal como é estranho haver gente
dentro e fora de mim

bem vistas as coisas
eu próprio sou uma casa
uma residencial sem gerente e de segunda categoria
onde a contradição sobrevive
em regime de pensão completa