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segunda-feira, 21 de abril de 2014

A olho nu

I

estes versos não estavam previstos,
foi a noite quem mos mostrou.

saí para fumar um último cigarro
e no manto negro nocturno límpido de nuvens
as estrelas sorriram-me muito,
como se me esperassem: sentinelas da meia-noite,
que vigiam os passos dos meus fantasmas mais secretos.

estes versos não estavam previstos,
sobretudo porque me cansei deles.

mas a noite aguardava-me calma,
apaziguadora, como o ventre de uma mãe suprema
que canta para o seu filho até que ele adormeça.
acordei. o sorriso das estrelas encheu-me os olhos
enquanto rodei sobre os meus pés, na tentativa de fixá-las todas.

estes versos não estavam previstos,
não fosse o brilho que hoje trazias vestido.

de entre todos os corpos celestes, elegi-te,
nomeei-te, enquanto o cigarro morria nos dedos,
enquanto os meus olhos calculavam a nossa distância.
anos-luz a separarem-nos, outras coisas tantas,
porque, no entanto, as estrelas não têm dono e os olhos dão-se à cegueira.

depois regressei ao quarto onde agora escrevo
e tu permaneceste lá fora,
onde te localizei numa constelação que inventei.

quando adormecer, quando tiver acabado de matar este poema
que eu gostava que te espelhasse um pouco,
espero que alguém, no meio da madrugada,
se embebede também de ti, para com isso construir uma utopia,
mas, no entretanto, não te esqueças que te vi primeiro.

não te esqueças que este poema é o esquiço metafórico
onde a traço largo anotei a tua força gravítica.

II

regressei ao abraço da noite exterior, mas já não te encontrei.
entre todas as estrelas, já não te passeavas…
talvez tenhas migrado para o céu de um outro hemisfério,
onde olhos menos pretensiosos te procuram.

se te cruzares com os meus fantasmas, enfeitiça-os,
para que regressem à cama solitária do meu naufrágio,
onde o meu desencanto em forma de astrolábio prova a tua impossibilidade.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Projecto de Sucessão - Guião Literário

Projecto de Sucessão
por
André Correia, André Guerra e Vasco Oliveira


Baseado nas seguintes obras:
"Aprender a Rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares;
"Fausto", de J. W. Goethe;
e "Ulisses", de James Joyce



Toda propriedade intelectual aqui explícita pertence aos guionistas
(André Correia, André Guerra e Vasco Oliveira),
assim como ao próprios autores das obras supramencionadas.




PRIMEIRA SEQUÊNCIA - O ENTERRO DE LENZ BUCHMANN

PRIMEIRA CENA - A DESPEDIDA ÍNTIMA

LOCALIZAÇÃO: quarto de Lenz Buchmann; uma cama vazia; a televisão ligada.

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann e Gustav Liegnitz

DESCRIÇÃO DA CENA:

Fundo negro. Aparece gradualmente o penúltimo verso do poema "Projecto de Sucessão", de António Maria Lisboa:

"ABRIREM-SE COVAS E ESQUECEREM-SE OS DIAS"

A janela do quarto permite a entrada de alguma luz outonal. Pouca. Fria. Ilumina de forma ténue os poucos objectos que ornamentam o espaço. A cama vazia, onde Julia viu, dia após dia, o corpo de Lenz Buchmann ceder à doença.

As lembranças envolvem amargamente Julia, que com um olhar petrificado permanece a um canto onde a luz não chega. Um corpo imóvel, mergulhado num tempo passado. Com a sua mão direita, segura e contempla a folha em que estava escrito o nome de Friederich Buchmann. Como um amnésico que redescobre o seu nome, Julia sente nesse momento o peso do legado de família que agora carrega. A televisão está ligada. No entanto, a única imagem que persiste naquele quarto é a de Lenz. Julia permanece assim durante algum tempo, como se aquela folha de papel fosse um espelho que lhe revela agora uma projecção distinta de si mesma.

Subitamente, Gustav irrompe pelo quarto. Essa chegada imprevista e brusca interrompe o fluxo de consciência a que Julia estava entregue há já largos minutos. Gustav exprime, à sua maneira, que está na hora de sair. Os ponteiros do relógio estão unidos, marcando o meio-dia. Faltam duas horas para o enterro de Lenz Buchmann. Gustav tem vestido o fato negro que Lenz Buchmann usou no dia em que o partido ganhou as eleições.

Julia acena com a cabeça. Gustav abandona o quarto e desce as escadas; espera pela irmã que, naquele quarto, se despede verdadeiramente de Lenz. Como quem se despede primeiro do significado, para só depois enterrar a palavra. No entanto, Lenz Buchmann era um significado forte, sonante, indelével.

Finalmente, Julia desce as escadas. A despedida íntima estava feita. Partiam agora para o cemitério, para a
despedida pública.

SEGUNDA CENA - DESCIDA AO HADES

LOCALIZAÇÃO: cemitério

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann, Gustav Liegnitz, Hamm Kestner e Padre

DESCRIÇÃO DA CENA:

As nuvens cinzentas pairam sobre o cemitério. Algumas pessoas, desinteressadas das palavras do padre, olham para os céus. Não em busca de um deus ou de uma salvação, mas sim na tentativa de perceber se já era a hora de abrir os guarda-chuvas.

Hamm Kestner está junto de Julia. Gustav, mais afastado, lançava olhares indiscretos para as viúvas. Nunca havia conhecido intimamente uma mulher, mas imagina esse momento. Anseia profundamente. Mais atrás, as restantes pessoas vão comentando os assuntos e as intrigas da cidade. O próprio padre parece pouco convicto das palavras que profere, cumprindo aquele ritual de forma autómata.

A chuva apressa-se e precipita-se por fim. As pessoas esperam de forma ansiosa, mas contida, pelo final do
enterro. Em fila, colocam ramos de flores sobre a urna, que dentro de alguns minutos descerá para sempre. Julia, em vez de flores - natureza morta - coloca sobre o caixão o bisturi que Lenz manuseava com destreza. Algo que não será devorado pelos vermes, símbolo máximo da precisão e da eficácia.

Depois da urna já ter sido descida, a população cumprimenta Julia e expressa, com o rosto e com as palavras, condolências quase sinceras. Ao passar por Kestner, mudam a expressão do rosto, mostram-se fortes; vivos. Lançam-lhe duas ou três palavras e esperam como mendigos uma pequena retribuição. Depois retiram-se por fim. Todos. Até o padre. No cemitério apenas restam agora os irmãos Liegnitz e o presidente do partido, Hamm Kestner.

Gustav está a alguns metros de distância, parado diante do local onde havia sido sepultado o louco Rafa. Nesse momento, Hamm Kestner, olha naquela direcção e fica pensativo. Pergunta a Julia se esta sabia a forma como realmente tudo tinha ocorrido na noite em que Rafa e Maria, ex-mulher de Lenz Buchmann, morreram. Fala-lhe do assassinato, da forma como Lenz posicionou estrategicamente os cadáveres, assim como da sua atracção por situações abjectas. Julia não responde.

Hamm Kestner muda de tema. Diz-lhe que o partido precisa dela. Diz-lhe que ela é agora a mão direita de Lenz Buchmann. Julia não responde.

Hamm Kestner pergunta, por fim, quantos meses faltam. Julia responde: três. O líder do Partido acrescenta que há-de nascer forte como o pai. Julia não responde novamente.

Gustav aproxima-se deles e, juntos, abandonam o cemitério vagarosamente.

TERCEIRA CENA - A CASA DE MEFISTÓFELES

LOCALIZAÇÃO: reino do inferno

PERSONAGENS PRESENTES: Lenz Buchmann e Fausto

DESCRIÇÃO DA CENA:

Plano pormenorizado do rosto de Lenz Buchmann, que se encontra de olhos fechados. Subitamente, abre-os. Parece perdido. Olha em volta e examina o local onde se encontra. Um enorme salão, ornamentado com vários elementos de talha dourada, tapetes e bricabraques persas. O chão está pavimentado com azulejo axadrezado. À primeira vista, parece-se muito com uma loja maçónica, em que Lenz havia estado uma vez.

Talvez alguém o tivesse levado para ali, foi isso que pensou num primeiro momento. Depois, diante de si, no fundo do salão, está um trono vazio. Ao lado esquerdo desse trono encontra-se um homem. Lenz observa meticulosamente essa figura, como sempre faz quando se depara com um desconhecido: um novo inimigo talvez.

Esse homem não o olha. Parece indiferente à sua presença. Lenz aproxima-se então. Ao contrário do que lhe é habitual, demonstra algum receio nos passos e isso deve-se ao facto de não conhecer o solo que pisa nesse momento. Contudo, quando chega perto desse homem, recupera a tranquilidade. Percebe que ele não poderá constituir um inimigo. Aquele homem é cego. Então, após recuperar totalmente a sua força, Lenz pergunta assertivamente ao homem que lugar é aquele. Ele responde-lhe que aquela é a casa de Mefistófeles, também conhecida como o inferno. Lenz parece de novo sobressaltado. Olha todo o espaço em seu redor outra vez. Engole em seco. Reúne alguma força e lança-lhe outra questão. Pergunta àquele homem se ele é o próprio Mefistófeles. Ele responde-lhe que não. Aquele homem chama-se Fausto: o Doutor Fausto.

Onde está então o teu amo?, pergunta Lenz a Fausto. Este, com o seu olhar vítreo e petrificado que nada pode já enxergar, diz-lhe que Mefistófeles saiu e convida-o a sentar-se. O amo ainda deve demorar. Foi para a caçada.

Lenz, confuso, mas sem outra solução, acaba por se sentar. Não em nenhuma das doze cadeiras, organizadas em duas filas de seis, que estavam dispostas em lados opostos do salão. Mas Lenz não nasceu para apóstolo, nasceu para Messias.

Senta-se no trono de Mefistófeles e aguarda. Fausto, com a ajuda da sua bengala, retira-se do salão, mas não sem antes apagar todas as velas dos candelabros que iluminavam aquele espaço.

Lenz fica sozinho, sentado no trono, também ele momentaneamente cego num reino de trevas.

QUARTA CENA - A NOITE QUE CAMINHA DENTRO DOS CORPOS

LOCALIZAÇÃO: ruas da cidade

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann; Gustav Liegnitz e Mefistófeles

DESCRIÇÃO DA CENA:

Julia e Gustav caminham agora pelas ruas da cidade, em direcção a casa. Gustav prossegue alguns metros à frente de Julia, que parece mergulhada num mar de pensamentos revoltos e que aniquilam a sua serenidade. Pensa nas palavras de Hamm Kestner. As imagens de Maria Buchmann e do louco Rafa ensanguentados e caídos inanimados no chão não lhe saem da cabeça.

Julia tenta arranjar uma explicação que levasse Lenz a ter cometido aqueles crimes, pois está certa de que ele deve ter tido os seus motivos. Julia nem por um momento censura Lenz através dos seus pensamentos, apenas procura um encadeamento lógico, pois sabe que o homem com que casou, já nos seus últimos meses de vida, tinha para todos os seus actos um motivo. Acção-reacção. Julia reage. Olha as fachadas tristes das casas, que os postes de iluminação pública tornam mais lúgubres.

Subitamente, Gustav detém-se a olhar para uma casa. Julia assoma-se dele e pára também. Contemplam a sua antiga casa: a casa da família Liegnitz. Julia acaba por dizer ao irmão:

JULIA LIEGNITZ BUCHMANN
(PARECENDO INDIFERENTE)
Tenho um comprador em vista...
Havemos de vendê-la!

Retoma a sua caminhada e agora é Gustav quem segue mais atrás, parecendo mais cabisbaixo. As ruas sucedem-se. São neste momento seis de tarde, mas está escuro. Um dia de verão atípico. A chuva e um eclipse previsto nas notícias, tornam este dia soturno, ocultista.

Chegam por fim a casa. Num plano aproximado vemos a placa onde estão inscritos os nomes da linhagem Buchmann. Julia olha-a durante uns segundos e, depois, pede a Gustav, que retirava as chaves do portão do bolso das calças, para que proceda a mais uma mudança naquela placa. Gustav olha-a surpreendido. Deve agora inscrever o nome de Julia e do seu filho vindouro naquela placa e apagar o nome de Maria Buchmann.

Nesse momento, Julia diz a Gustav que o seu filho se chamará Zaratustra. Gustav não percebe a escolha do nome e sente que já não é capaz de entender as decisões da sua irmã. Semicerra os olhos, suspira e abre finalmente o portão. Os irmãos entram.

A alguns metros da casa, encostado a um poste que vai iluminando e falhando intermitentemente, encontra-se Mefistófeles, que observava os irmãos. Depois de apagar, com a ponta do sapato, um cigarro que fumava, expele o fumo pelas narinas e sorri.

SEGUNDA SEQUÊNCIA - A HUMANA DESUMANIZAÇÃO

QUINTA CENA - DOBRAR O CABO DAS TORMENTAS

LOCALIZAÇÃO: escritório da casa de Lenz Buchmann

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann

DESCRIÇÃO DA CENA:

(DOIS MESES APÓS A MORTE DE LENZ BUCHMANN;
 UM MÊS PARA O NASCIMENTO)

Julia está sentada junto à secretária. A sua barriga, de oito meses agora, restringe-lhe já bastante os movimentos. Encontra-se fechada no escritório há mais de uma hora. Debruçada sobre um pequeno bloco de notas preto, com os cotovelos apoiados no tampo da mesa, parece debater-se com pensamentos demasiado fortes.

Suspira. Cerra os olhos e dirige-se até à janela. Fica pensativamente a observar as pessoas que passam na rua, mas o seu olhar está baço.

Por fim, um automóvel pára em frente ao portão. Julia percebe que deve ser o comprador para a casa da sua família. Puxa a cortina, diminuindo a entrada de luz. Recompõe a roupa e a expressão do rosto. Dá alguns passos assertivos sobre o soalho de madeira e abandona o escritório, trancando a porta ao sair.

O bloco de notas ficou aberto e esquecido sobre a secretária. Num plano aproximado, percebemos o que estava escrito nessa página. Alguns desejos e instruções que Lenz deixou a Julia antes de morrer:

- Zaratustra chamar-se-á o nosso filho
- Vende a casa da tua família
- Mata o teu irmão
- Torna-te uma verdadeira Buchmann
- Mata Hamm Kestner e assume a liderança do partido
- Nunca entres na biblioteca

SEXTA CENA - A RETÓRICA DE MEFISTÓFELES

LOCALIZAÇÃO: sala de estar

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz Buchmann, Mefistófeles e Gustav Liegnitz (que aparece apenas a sair de casa)

DESCRIÇÃO DA CENA:

Na rua, Mefistófeles, usando umas calças negras, sapatos italianos lustrados e uma jaqueta vermelha, faz soar três vezes a campainha. Ninguém aparece, no entanto ele havia visto Julia à janela quando chegou. Finalmente, de dentro de casa, sai Gustav, que deixa a porta aberta e se dirige para abrir o portão. Abre-o e com um olhar flamejante de ira fita directamente Mefistófeles. Gustav sabe que aquele é o comprador da casa da sua família e que hoje vem reunir com Julia para assinar o contrato de venda. Mefistófeles aguenta o olhar de Gustav, sorri, apresenta-se e estende-lhe a mão. Gustav vira-lhe as costas e caminha ao longo da rua, até dobrar a esquina e desaparecer, como quem foge nervosamente.

Mefistófeles fica a vê-lo afastar-se e depois entra. Fecha o portão, sobe umas pequenas escadas e entra, pela primeira vez, na casa dos Buchmann, fechando também a porta. Num plano aproximado, ainda do exterior, vemos a placa com os nomes já alterados: Julia e Zaratustra já constam ali.

Já no interior da casa, ao mesmo tempo que Mefistófeles entra, Julia vem a descer as escadas. Ele dirige-se até ela e beija-lhe a mão fria e branca. A expressão de Julia permanece inalterada e dirigem-se então para um salão, onde Lenz costumava receber os mais importantes líderes do partido. Julia diz a Mefistófeles para que se sente e aponta-lhe uma cadeira, estilo Luís XV. Pergunta-lhe se quer tomar alguma coisa e, sem esperar por uma resposta, verte um pouco de whisky num copo largo que lhe serve. Julia não bebe nada, por causa do bébé. Mefistófeles agradece, Julia senta-se também e começam a conversar.

Mefistófeles, apresenta-se como Dr.Ari, um judeu alemão, rico, que se tinha mudado há algum tempo para a cidade para exercer a profissão de médico. Disse a Julia que muitos dos seus pacientes lembravam Lenz com saudade. Acrescentou ainda que o hospital planeia erguer uma estátua em sua homenagem. Julia começa a mostrar-se mais interessada na conversa e na forma como aquele homem discursa. Parecia ter um encanto nas palavras.

Finalmente, levantam-se para assinar o contrato, que o próprio Mefistófeles havia trazido, dizendo ter sido preparado pelo seu advogado. Julia nunca havia celebrado um contrato e confiou na seriedade daquele homem, que já começava a ser respeitado em toda a cidade. Ainda assim, Mefistófeles insistiu para que Julia lesse o contrato, pois para ele os compromissos escritos significam tudo. Julia fez uma leitura diagonal e assinou o seu nome em baixo. Mefistófeles assina também o seu nome. Cumprimentam-se e depois Julia acompanha o convidado até à porta. Mefistófeles veste a jaqueta que havia deixado pendurada no bengaleiro, assegura que voltará em breve com uma cópia do contrato e, sorrindo, sai. Julia despede-se, fecha a porta com delicadeza e dirige-se novamente para o escritório.

Volta a olhar para o bloco de notas que havia deixado aberto e agora sente-se decidida. Um dos desejos de Lenz Buchmann está cumprido e chegou agora a hora de cumprir um outro. Talvez o mais complicado de todos eles. A conversa com Mefistófeles parece ter dado um novo vigor a Julia.

Na rua, já no interior do carro, Mefistófeles olha com satisfação o contrato que havia acabado de conseguir. Julia não havia vendido apenas a casa da família Liegnitz; havia vendido também a própria família. Os Liegnitz pertencem, de agora em diante, ainda que sem saber, a Mefistófeles.

O automóvel arranca e vêmo-lo afastar-se.

SÉTIMA CENA - ULISSES

LOCALIZAÇÃO: um antigo e frequentado bar da cidade

PERSONAGENS PRESENTES: Gustav Liegnitz, Mefistófeles, Leopold Bloom e Penélope

DESCRIÇÃO DA CENA:

Gustav vagueia pelas ruas da cidade. A noite já caiu. Afastou-se de casa envolto em pensamentos, para mergulhar numa guerra interior. O rosto de Mefistófeles não lhe sai do pensamento. Por fim, entra num bar da cidade.

Um quarteto de jazz vai animando o serão. O ambiente é burlesco. Sentados em mesas com taças de champanhe, alguns dos homens mais importantes da cidade divertem-se com as coquettes. Numa dessas mesas, está Mefistófeles, que todos conhecem como Dr.Ari, acompanhado por um outro judeu, de nacionalidade irlandesa, que dá pelo nome Leopold Bloom. Estão rodeados de mulheres. O Sr. Bloom mudou-se para a cidade, depois de se ter divorciado da esposa e ter abandonado um país que nunca sentiu ser o seu. Conheceu Mefistófeles também num bar, em Dublin.

Gustav entra, pede uma bedida e senta-se numa cadeira alta, de frente para o balcão. O seu olhar está perdido.

[ANALEPSE: SOMOS LEVADOS ATÉ AO DIA EM QUE O SR.BLOOM
CONHECEU MEFISTÓFELES]

Leopold está sentado numa cadeira alta de frente para o balcão. Vai afogando as suas mágoas no álcool. Pensa no seu casamento falhado, na sua filha que está longe, na mulher que o trai e, sobretudo, no seu filho que morreu.

Mefistófeles entra no bar e senta-se ao seu lado. Alguns copos depois, com a conversa já adiantada, Mefistófeles pergunta-lhe o que gostaria de ter na sua vida. Leopold responde que gostava de encontrar uma mulher que o amasse, de conhecer a sua pátria e de voltar a ver o seu filho. Mefistófeles promete-lhe tudo isso e ali celebram um contrato. Desde então, Mefistófeles tem proporcionado ao Sr.Bloom todos os prazeres da vida. Levou-o a conhecer Israel e agora viajam pelo mundo. Quando a felicidade plena do Sr. Bloom estiver consumada, Mefistófeles será o dono da sua alma. No entanto, o judeu irlandês ainda não está satisfeito. Falta-lhe ainda recuperar o seu filho. Mas Mefistófeles tem uma solução em mente para isso.

[DE REGRESSO À ACÇÃO PRINCIPAL]

Gustav olha em seu redor e a um canto reconhece Mefistófeles, alegre, rindo alarvemente. Pousa o copo já
vazio do conhaque e dirige-se, com passos determinados de um bêbedo, na direcção do seu oponente. Com o seu punho cerrado atinge o rosto sempre sorridente de Mefistófeles. A confusão instala-se no bar. Alguns homens agarram Gustav e tentam colocá-lo na rua. Mefistófeles detem-nos. Diz-lhes para que o deixem ficar e convida Gustav a sentar-se na sua mesa. Leopold Bloom parece assustado, mas rapidamente se volta a concentrar nas mulheres que o rodeiam.

Mefistófeles quer saber o motivo da raiva de Gustav e pergunta quais são os seus maiores desejos. Gustav, pensando que Mefistófeles estaria a gozar com facto de ele ser surdo-mudo, preparava-se já para desferir outro golpe, mas subitamente percebe que é capaz de ouvir. Fica incrédulo e extasiado. Mefistófeles sorri e faz sinal a uma das acompanhantes para que realize todos os desejos de Gustav. Ao contrário do que sempre faz, Mefistófeles não apresentou nenhum contrato a Gustav, pois o seu prazer será curto. Além disso, assinou um contrato com Julia que também abrange o seu irmão.

Eram quase duas da manhã quando Gustav, embriagado, abandona o bar, acompanhado de uma mulher. Mefistófeles e Leopold Bloom permanecem.

Gustav regressa agora a casa, fazendo o percurso inverso através da cidade. Dez anos parece demorar aquele percurso, mas sente-se triunfante, um herói, e segue acompanhado de uma prostituta espanhola chamada Penélope.

TERCEIRA SEQUÊNCIA - TODOS OS NOMES SE VÃO

OITAVA CENA - CAIM

LOCALIZAÇÃO: casa da família Buchmann

PERSONAGENS PRESENTES: Gustav Liegnitz, Penélope e Julia Liegnitz Buchmann

DESCRIÇÃO DA CENA:

Gustav abre a porta de casa, depois de se debater para acertar com a fechadura. Entra, juntamente com a sua acompanhante: Penélope. No andar cimeiro, Julia, ainda no escritório, houve vozes no piso inferior. Fica assustada. Gustav fala imenso, sente-se como um pássaro, com a necessidade de chilrear. A primavera chegou para ele.

Julia desce, a custo, por causa do peso que carrega no ventre, até meio das escadas. Percebe que se trata do seu irmão e de outra mulher. Volta para o escritório, fecha o bloco de notas que ainda permanecia aberto e percebe que este é o momento para executar o terceiro pedido de Lenz Buchmann que consta naquela lista: matar o próprio irmão e pôr fim à família Liegnitz. O nome de Gustav Liegnitz teria de ser apagado pela segunda vez. Guarda o bloco de notas numa gaveta, de onde tira também um revólver.

Gustav e Penélope estão envolvidos no sofá, despidos. No entanto, por estar embriagado e por nunca ter estado com uma mulher anteriormente, Gustav não consegue consumar o seu desejo de a possuir. Fica frustrado. Começa a gritar com aquela mulher, cospe-lhe na cara e ordena-lhe que saia de sua casa. Agarra-lhe no braço e leva-a brutamente até à porta. Fecha a porta estrondosamente e, ao virar-se, depara-se com a sua irmã. Tenta tapar o seu corpo nú, mas Julia não hesita. Agarra no revólver e aponta-o ao peito do seu irmão. Gustav implora piedade. Julia fecha os olhos e dispara. Foi a primeira e a última vez que ouviu a voz do seu irmão.

O corpo de Gustav Liegnitz cai inanimado no chão.

NONA CENA - CÓPIA DO CONTRATO

LOCALIZAÇÃO: rua e sala de estar

PERSONAGENS PRESENTES: Julia Liegnitz, Mefistófeles e Leopold Bloom.

DESCRIÇÃO DA CENA:

Passa um pouco das quatro horas da manhã. Julia abre a porta de casa e arrasta consigo um enorme saco preto, onde dentro se encontra o cadáver de Gustav. Um esforço sobrehumano para uma mulher a entrar no ciclo final de gravidez, mas Julia é já um ser desumanizado. Sem emoções visíveis, é agora alguém que demonstra forças que um corpo tão delicado e frágil parece não poder permitir. Pára por vezes para recuperar as forças, mas depois retoma. Daqui a uma meia hora passa o camião que faz a recolha do lixo. Julia tem de ser rápida a arrastar o corpo de Gustav até ao contentor mais próximo, que se encontra a uns dez metros da casa da família Buchmann.

Antes de sair para a rua, já com o portão aberto, Julia verifica se a rua se encontra vazia. Fica com a sensação de ter escutado um pequeno ruído, mas nada se insurge à sua vista. Agarra novamente no saco e, de forma lenta, consegue por fim chegar até ao contentor do lixo. Começa a sentir dores demasiado fortes, mas não tem tempo para pensar nelas agora.

Com muito custo, consegue levantar o saco do chão e depositá-lo juntamente com a basura. Acabei de colocar o nome Liegnitz no lixo, pensou. As dores acutilantes permanecem, aumentam até. Dirige-se, com passos cambaleantes, novamente para casa. Fecha o portão, sobe umas pequenas escadas, entra em casa e fecha a porta.

Atrás do contentor do lixo, escondido, estava um homem, que agora observava Julia entrar em casa.

Quando entra em casa, a respirar ofegantemente, a tentar controlar as dores, sobe as escadas com muito custo. Necessita de ligar urgentemente ao Dr.Ari, que é agora o melhor médico da cidade, conhecido pela sua mão esquerda quase milagrosa. Já no andar cimeiro, Julia dirige-se para o escritório. Quando entra, depara-se com Mefistófeles (Dr.Ari). Fica atónita por o encontrar ali, não percebe o que se está a passar, embora estivesse precisamente a precisar da sua ajuda. Mefistófeles sorri. Julia pergunta-lhe o que faz ali e ele diz-lhe que, como havia prometido, veio trazer a cópia do contrato. Encontrou a porta da rua aberta e decidiu entrar. Mefistófeles, que estava sentado no cadeirão junto à secretária, que em tempos foi ocupado por Lenz, rapidamente se levanta, insistindo para que Julia se sente.

Ao sentar-se, Julia percebe que lhe rebentaram as águas. Zaratustra quer nascer. Ali. Agora. Mefistófeles, tira a jaqueta, arregaça as mangas e prepara-se para fazer o parto. Pede a Julia que se acalme, depois de já a ter deitado no chão. Mefistófeles não sorri enquanto isto, está apenas concentrado no seu trabalho, como uma máquina. As dores que Julia sente são um crescente de tortura, até que por fim culmina com um grito cortante para os sentidos de qualquer ser humano. O seu filho nasceu. Mefistófeles levanta-se com o recém-nascido nos braços e Julia, no chão, contempla, com os olhos semicerrados, pela primeira vez o seu primogénito.

Mefistófeles recupera o sorriso. Julia pede para que ele lhe mostre o seu filho mais de perto, mas Mefistófeles, secamente, diz-lhe que aquele bébé não lhe pertence. Julia não percebe, sente medo, mas não tem forças para se defendera si ou ao seu filho. Mefistófeles pergunta-lhe onde está Gustav e Julia diz que ainda não voltou desde que saiu durante a tarde. No entanto, Mefistófeles diz que o encontrou no bar da cidade. Julia confessa então o crime e nesse momento sente remorsos. Diz:

JULIA LIEGNITZ BUCHMANN
(COM A VOZ FRACA)
Matei o meu irmão!... Matei Gustav
Liegnitz, a continuação do meu pai no mundo...

Mefistófeles diz-lhe que sim, que ela matou o seu irmão, mas não o seu pai. Conta-lhe a verdadeira história sobre a morte do primeiro Gustav Liegnitz. Diz-lhe que foi Friedrich Buchmann quem matou o seu pai, em tempos de guerra. Julia sente-se caída num poço do qual não pode jamais sair. Aliou-se à família que matou o seu pai e ela própria matou o seu irmão. Pede a Mefistófeles que a mate e que mate o seu filho também. Roga ao estranho Dr.Ari que o faça, é a única saída. A família Liegnitz desapareceu no mundo e está na hora da família Buchmann ser irradicada também. Mefistófeles, pousando o bébé que não parava de chorar, explica-lhe depois que essa não é uma escolha dela e mostra-lhe a cópia do contrato. Julia tinha vendido a sua família a Mefistófeles. Ele é agora o dono do destino tanto de Julia como daquela criança.

Mefistófeles, abre a gaveta da secretária, retira o bloco de notas e o revólver com que, há pouco mais de uma hora, Julia havia disparado sobre o irmão. Abre o bloco de notas, observa a lista de pedidos de Lenz e, virando-se para Julia, diz:

MEFISTÓFELES
A nossa sina é sempre cumprir os desejos de outros... 

Pega no revólver e dispara sobre Julia. Arrasta o seu cadáver para a biblioteca de Lenz Buchmann, na qual consegue entrar sem qualquer problema, apesar de ela estar trancada há quase um ano. Depois de incendiar a biblioteca com o cadáver de Julia lá dentro, agarra no bébé e abandona a casa.

Na rua, o homem que observou Julia entrar em casa é, afinal, Leopold Bloom. Mefistófeles entrega-lhe o bébé e diz-lhe:

MEFISTÓFELES
Aqui tens o teu filho!

Leopold Bloom agarra no bébé e embrulha-o numa manta que trazia consigo. Afasta-se do local, caminhando ao longo da rua numa marcha urgente e apavorada.

Mefistófeles permanece ali, assistindo impavidamente à cremação dos nomes e dos significados que ocorre diante de si.

DÉCIMA CENA - MEFISTÓFELES REGRESSA A CASA

LOCALIZAÇÃO: reino do inferno

PERSONAGENS PRESENTES: Mefistófeles, Lenz Buchmann e Fausto

DESCRIÇÃO DA CENA:

Mefistófeles regressa aos seus domínios. Ao entrar, faz acender todos os candelabros. Repara que Lenz está a dormir, sentado num trono que não lhe pertence. Com um estalar de dedos, Fausto aparece. Ordena-lhe que acorde Lenz. O outrora médico e político, ao abrir os olhos, percebe que diante de si está uma criatura não-humana. Uma criatura com uns enormes chifres e com um corpo flamejante: assim é a verdadeira forma de Mefistófeles quando se encontra em casa. O velho e ardiloso demónio aproxima-se de Lenz e ordena-lhe que se levante do trono. Lenz, assustado, levanta-se e cede-lhe o lugar. Depois, Mefistófeles ordena-lhe que se ajoelhe perante si. Com Lenz Buchmann já prostrado de joelhos, o demónio diz-lhe que o seu filho Zaratustra e Julia morreram. Lenz Buchmann chora, como não acontecia desde a morte do seu pai.

Enquanto isto Mefistófeles comenta com Fausto, que se encontra ao seu lado, compadecido de Lenz Buchmann, apesar de não conseguir ver o seu rosto de sofrimento:

MEFISTÓFELES
Impedi que Zaratustra, o
Além-Homem, se fizesse!... Talvez
seja merecedor de um lugar no céu.

E desata a rir às gargalhadas, bebendo depois por um cálice dourado um pouco de licor Feni.

A imagem desvanece-se, torna-se num fundo negro, onde surge agora o último verso do poema "Projecto de Sucessão", de António Maria Lisboa:

"BEBER-SE POR UM COPO DE OIRO E SONHAREM-SE ÍNDIAS."

QUARTA SEQUÊNCIA - TELÉMACO

DÉCIMA PRIMEIRA CENA - ESTÁTUA DE NINGUÉM

LOCALIZAÇÃO: ruas da cidade, junto ao hospital

PERSONAGENS PRESENTES: Leopold Bloom, Rudy e Mefistófeles

DESCRIÇÃO DA CENA:

(DEZ ANOS DEPOIS)

O Sr. Bloom, há já vários meses doente, passeia pela cidade com o seu filho, que dá pelo nome de Rudy. Este era também o nome do seu primeiro filho varão, que tivera durante o casamento com Molly.

Os passos de Leopold Bloom são arrastados; em oposição, Rudy é um rapaz bastante forte e que agora segue ao lado do seu pai, como se tratasse de um apoio para lhe auxiliar a caminhada. Várias pessoas que passam por eles ficam perplexas com o estado de decadência em que Leopold está mergulhado.

Ao passarem diante do hospital, junto à estátua que Hamm Kestner, o mais alto representante da cidade, mandara edificar em homenagem a Lenz Buchmann, Rudy pára. Fica a observar a imponência e o ar majestoso daquela figura de mármore. Pergunta ao seu pai quem havia sido aquele homem. O Sr. Bloom, levantando os olhos do chão, responde-lhe: Ninguém importante!...

Mas Rudy fica parado, a olhar durante mais alguns instantes para aquela estátua. Leopold segue a sua marcha lenta, como quem carrega a sua própria cruz. Mais uma pessoa cruza-se com ele e cumprimenta-o. O Sr. Bloom não retira os olhos do chão. A pessoa que o cumprimentou pára e toca-lhe no braço. O Sr. Bloom fita então o rosto da pessoa que se deteve para lhe falar. É Mefistófeles que, retirando um chapéu claro de corte italiano, lhe diz:
MEFISTÓFELES
Como tens passado, meu velho amigo?
As cláusulas foram cumpridas, temos
um contrato para consumar!...

Quando Rudy volta a olhar na direcção daquele que julga ser o seu pai, já não o encontra. Num plano que se vai afastando e elevando vemos aquela pequena criança sozinha, sentindo-se perdida, atravessar a rua e sentar-se ao lado da estátua do seu pai.


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Elogio da Montanha

Para a grande maioria das pessoas a verdadeira essência da vida reside na concretização dos sonhos. Existe uma enorme probabilidade de que tu – sim, tu que me lês agora – penses também assim. Talvez esperes que este texto que agora se inicia te aponte um caminho para essa mesma concretização do teu universo onírico. Mas, desde já, quero desenganar-te. Estas palavras são apenas noções medíocres de onirocrisia. O motivo que me leva a escrever este texto não é apontar-te o caminho certo, mas antes levar-te a pensar que não há nada melhor na vida do que parar numa encruzilhada e observar perdidamente, como um caminhante estrangeiro, as várias rotas possíveis. Vive perdidamente. Ama todos os momentos que te façam decidir instintivamente. Não acorrentes nenhum sonho à premeditação.
O irreal é belo porque não o podes agarrar e, de resto, se o fizesses, rapidamente sentirias a necessidade de subir ao pico de uma outra utopia. Porque tudo aquilo que agarramos agora, definhamos depois com a vontade desmesurada que as nossas mãos têm da apropriação. Todas as flores acabam por murchar. Não queiras a natureza morta. Alimenta-te da capacidade que tens para te iludir, é isso que te faz pintar o mundo com cores mais vivas. Quando amares alguém ou alguma coisa, respeita sempre a sua existência. Não construas barragens para os teus rios ilusórios.
            Mergulha neles. De cabeça. Mas nunca te demores muito. Existem tantos rios para conhecer, tantas possibilidades que desconheces ainda. Vai por todas as ruas que te assaltam a tranquilidade e nunca perguntes o nome dessa rua a alguém que passe. Nunca te poderás perder porque não tens uma rota definida. Tu pertences ao mundo. Caminha sobre ele como um raio que rasga o céu irregularmente numa noite de tempestade. Tu és a última trombeta que anuncia o teu apocalipse. Confronta-te. Não procures dar paz aos teus sonhos, porque aquilo que eles têm de mais belo é capacidade de te deixar agitado.
            Tu és, derradeiramente, tudo aquilo que consegues conceber a partir do teu imaginário. Não faças da tua ilusão uma concubina da realidade, que nunca te chega. Porque a tua propriedade nunca alimentará totalmente a família faminta do teu ser.
            Sonha alto, mas nunca queiras possuir a montanha. Ela é mais bela quando a observas desde a planície. A magnitude de tudo o que sentes mede-se através do teu pensamento, dos teus olhos, e nunca a partir daquilo que pisas com os pés ou apertas com as mãos.
            Nunca poderás pisar o mundo inteiro. Nunca poderás segurar tudo aquilo que mais amas. Mas poderás sempre imaginar. No entanto, não imagines que existe um sempre. A única fronteira que atravessarás será no dia em que sintas saciada a tua fome pela novidade. No dia em que te sentires pleno, estarás morto. Ainda que a realidade e a ciência não atestem o teu óbito.

            Não te contentes nunca. Não construas estátuas e, sobretudo, não queiras tornar-te numa. Voa como um pássaro ou rasteja como uma serpente, sempre sem rumo, porque. Não há um porque.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

deuses escreventes e cantantes

(a partir do capítulo “O Escritor de Férias”, da obra Mitologias, de Roland Barthes)

A figura do artista sempre foi alvo de um processo de mitificação. A arte é um mundo no qual quem o contempla concebe um universo. Através dela percepcionamos para além do visível; vemos com a imaginação que um artífice espoleta em nós. E essa mesma imaginação leva-nos a criar uma própria projecção desse artífice. Imaginamos-lhe uma existência; montamos um arquétipo. Destarte, este é quase um processo de divinização. O Artista cria e não destrói. Um bom princípio para qualquer deus.
            No entanto, todos os deuses são criados à semelhança do Homem, pois só assim nos identificamos com eles. Essas criações etéreas servem sempre para fundamentar o domínio de um homem sobre um outro, para manter estável uma relação de domínio ou influência. Pois bem, de certa forma, é acerca disto que este capítulo reflecte.
            Quando o Figaro, icónico jornal francês, divulga publicamente fotografias do escritor Andrés Gide durante uma viagem no Congo, o que, aparentemente, se está a fazer é trivializar a imagem do escritor. Usando a expressão de Barthes, está-se a torná-lo mais prosaico. Com isso, temos a ilusão de que já não estamos perante uma imagem hipotética do escritor, mas antes diante de um ser de carne e nosso. Podemos contemplá-lo de diversos ângulos. Flash! Podemos quase tocar-lhe. Flash! Como se isso bastasse. No entanto, basta. Flash!
            Procedemos assim a uma “ proletarização do escritor” para que ele se torne um instrumento social. E instrumento é a designação certa. Ao mostrar Andrés Gide a descer o Congo não se estava somente a mostrar as férias de um escritor, mas também a promover e a publicitar um estilo de vida. O artista transforma-se, assim, num postal, numa forma de sustentar e conferir uma certa elevação aos hábitos burgueses. Por outro lado, o artista aproxima-se do público, mostra-se, deixando-se seduzir pelo calor e pelo brilho dos holofotes. Nada de surpreendente nisso. Humanidade, em suma. Revela apenas uma certa ingenuidade, porque se, num primeiro momento, a máquina propagandística consegue levar à idolatria, depois acaba sempre por se revelar iconoclasta. Tudo aquilo que coloca num altar é para derrubar mais tarde. Porque as boas personagens nunca são planas, nem mesmo os deuses. Isto justifica-se pelo facto de que as plateias sentem a atracção pelas palmas tal como sentem a atracção pelas vaias.
            O exemplo presente neste capítulo pode ser transportado para outras artes ou, melhor, manifestações mediatizadas. Actualmente, a arte está quase confinada ao espectáculo. Os adereços sobrepõem-se à técnica. A arte perde, assim, o seu caracter intimista. A música e o cinema talvez sejam exemplos máximos disso, mas também na literatura assistimos a autênticas construções mediáticas e mitológicas. Autores best-sellers dão mais do mesmo ao público. Um punhado de personagens estereotipadas e o recurso a ideias que constituem autênticos lugares comuns, chegam para constituir um enredo apetecível, embora com um discurso pobre e, muitas vezes, desprovido de rasgo. Para vender basta saber o que o leitor pretende, assim como ter uma estratégia mediática eficaz e delineada.
            Importa referir que alguns autores acabam por se tornar mediáticos sem que façam um esforço para isso. Aí a mediatização é uma consequência natural do reconhecimento público e não o inverso. No entanto, em qualquer um dos casos, ao estar sujeito a essa exposição, o autor vê, inegavelmente, amputada uma importante condição para que se logre a criação artística: um certo isolamento necessário à reflexão. Em acréscimo, a exposição mediática e essa divinização conseguida através da humanização do escritor – processo quase paradoxal -, leva a que este tenha a tendência para lançar um olhar elevado sobre o mundo. Atingir gloriosamente o pico da montanha, ignorando o facto de que na planície pública existem milhares de pessoas interessadas na sua queda. Essa é a lei da gravidade. Tudo o que sobe cairá depois. No entretanto, entretêm e entretêm-se

            E o público bate palmas estridentemente. Tem deuses escreventes e cantantes com que brincar. Quando se estragarem, fabricam-se uns tantos mais.