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sexta-feira, 4 de abril de 2014

deuses escreventes e cantantes

(a partir do capítulo “O Escritor de Férias”, da obra Mitologias, de Roland Barthes)

A figura do artista sempre foi alvo de um processo de mitificação. A arte é um mundo no qual quem o contempla concebe um universo. Através dela percepcionamos para além do visível; vemos com a imaginação que um artífice espoleta em nós. E essa mesma imaginação leva-nos a criar uma própria projecção desse artífice. Imaginamos-lhe uma existência; montamos um arquétipo. Destarte, este é quase um processo de divinização. O Artista cria e não destrói. Um bom princípio para qualquer deus.
            No entanto, todos os deuses são criados à semelhança do Homem, pois só assim nos identificamos com eles. Essas criações etéreas servem sempre para fundamentar o domínio de um homem sobre um outro, para manter estável uma relação de domínio ou influência. Pois bem, de certa forma, é acerca disto que este capítulo reflecte.
            Quando o Figaro, icónico jornal francês, divulga publicamente fotografias do escritor Andrés Gide durante uma viagem no Congo, o que, aparentemente, se está a fazer é trivializar a imagem do escritor. Usando a expressão de Barthes, está-se a torná-lo mais prosaico. Com isso, temos a ilusão de que já não estamos perante uma imagem hipotética do escritor, mas antes diante de um ser de carne e nosso. Podemos contemplá-lo de diversos ângulos. Flash! Podemos quase tocar-lhe. Flash! Como se isso bastasse. No entanto, basta. Flash!
            Procedemos assim a uma “ proletarização do escritor” para que ele se torne um instrumento social. E instrumento é a designação certa. Ao mostrar Andrés Gide a descer o Congo não se estava somente a mostrar as férias de um escritor, mas também a promover e a publicitar um estilo de vida. O artista transforma-se, assim, num postal, numa forma de sustentar e conferir uma certa elevação aos hábitos burgueses. Por outro lado, o artista aproxima-se do público, mostra-se, deixando-se seduzir pelo calor e pelo brilho dos holofotes. Nada de surpreendente nisso. Humanidade, em suma. Revela apenas uma certa ingenuidade, porque se, num primeiro momento, a máquina propagandística consegue levar à idolatria, depois acaba sempre por se revelar iconoclasta. Tudo aquilo que coloca num altar é para derrubar mais tarde. Porque as boas personagens nunca são planas, nem mesmo os deuses. Isto justifica-se pelo facto de que as plateias sentem a atracção pelas palmas tal como sentem a atracção pelas vaias.
            O exemplo presente neste capítulo pode ser transportado para outras artes ou, melhor, manifestações mediatizadas. Actualmente, a arte está quase confinada ao espectáculo. Os adereços sobrepõem-se à técnica. A arte perde, assim, o seu caracter intimista. A música e o cinema talvez sejam exemplos máximos disso, mas também na literatura assistimos a autênticas construções mediáticas e mitológicas. Autores best-sellers dão mais do mesmo ao público. Um punhado de personagens estereotipadas e o recurso a ideias que constituem autênticos lugares comuns, chegam para constituir um enredo apetecível, embora com um discurso pobre e, muitas vezes, desprovido de rasgo. Para vender basta saber o que o leitor pretende, assim como ter uma estratégia mediática eficaz e delineada.
            Importa referir que alguns autores acabam por se tornar mediáticos sem que façam um esforço para isso. Aí a mediatização é uma consequência natural do reconhecimento público e não o inverso. No entanto, em qualquer um dos casos, ao estar sujeito a essa exposição, o autor vê, inegavelmente, amputada uma importante condição para que se logre a criação artística: um certo isolamento necessário à reflexão. Em acréscimo, a exposição mediática e essa divinização conseguida através da humanização do escritor – processo quase paradoxal -, leva a que este tenha a tendência para lançar um olhar elevado sobre o mundo. Atingir gloriosamente o pico da montanha, ignorando o facto de que na planície pública existem milhares de pessoas interessadas na sua queda. Essa é a lei da gravidade. Tudo o que sobe cairá depois. No entretanto, entretêm e entretêm-se

            E o público bate palmas estridentemente. Tem deuses escreventes e cantantes com que brincar. Quando se estragarem, fabricam-se uns tantos mais.

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