Páginas

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

SER POETA É...

Ser poeta é perder a alma, é deixá-la provar de entre todos os sentimentos verdadeiros e fingidos, que a destroem, que a queimam, que a moldam, para assim a mão esbater, na folha solta de papel, a sensação tão estranha, tão obtusa. Sim, porque as sensações são confusas.
Ser poeta é tocar em Deus e descobrir que ele não existe. É ser actor, e perder em cada personagem um pouco mais de si. A dado momento, a folha solta de papel, multiplica-se, formando um monte de folhas guardadas no baú de cor desbotada. Poemas escondidos, fragmentos de si mesmo e assustadoramente diferentes entre eles. Estranhamente distintos ou normalmente desiguais. É como viver numa sala de espelhos, onde enxergamos várias projecções desfocadas de um eu descaracterizado. Entrar neste jogo é bastante perigoso. No início é saboroso, mas isso é ilusão. Um poeta é o nada, da parte caída no chão.
Ninguém pode compreender o que um poeta sente, pois as pessoas não sentem de verdade. O mundo sente tristeza, raiva ou felicidade, mas sempre de uma forma muito clara e estigmatizada; o poeta apenas sente, de forma homogénea, absorvendo o que o refúgio da mente lhe dá.
Um poeta é em ultima análise, apenas a sombra do seu último sujeito poético. A sombra somente, pois o corpo desse boneco já ficou para trás.
É isso! O poeta é um boneco...

domingo, 7 de novembro de 2010

CARTAS

Tantos são os caminhos em que me posso hoje perder
Que acabo sempre ficando só para não ter de escolher

Tu sabes que essas palavras escritas com tão cuidada letra
Foram-se elas mesmas anulando apagadas pelo pó do dizer
Ou pela minha vaga convicção da mão fraca na caneta

Eu nunca amei aquilo que disse ter amado
Somente errei ao ter-me assim enganado

Sim porque tu certamente sempre soubeste
Sempre conheceste a minha mentira

Então não me peças agora o que nunca tiveste
Ou o que nunca te dei na hora em que frio te beijei

Eu não vou escrever mais uma dessas cartas
Que te diga amo-te e que alguma vez te amei
Pois tu sabes que não seria verdadeira

Poderia até ser a minha derradeira carta
Mas eu nela mentiria como o fiz na primeira
Minha alma tombada na estrada já se farta
E a vida está quebrada quase por inteira

Hoje eu vou apenas ficar
Vou rasgar todos os compromissos que contigo eu assinei
Estou a tentar meu corpo deixar
À sombra do boneco que ontem te dei

Vai andando sem olhar para trás
O que ouves é apenas o eco da voz
De um grito que não quererás ouvir

Ele não chama por ti nem chama por nós
Apenas grita nada importante que te possa importar agora

Apenas imita
Uma alma que chora



André Correia

Nota: Este poema surge no seguimento do poema NO DIA EM QUE JULIETA MORREU. É como se fosse um complemento.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

PÁSSAROS

As figuras passam
Assombram
Levam-me para o nada
Trazem-te apressadas
Como pássaros negros voando
Entre as nuvens carregadas

A minha cabeça complica
E distorce os minutos em horas
A gente e a sua cobiça
São a doença que mata
A doença que ignoras

São como pássaros negros
São como fumo nos dedos

Que não te agarram
Que não te dão

São como pássaros que rasam
Meu corpo tombado no chão

São como pássaros que passam
São como eu

Ave de migração

NÉVOA


A porta não abriu
E o sentido foi perdido
Entre a névoa envolvente

A noite traiu o dia
E de fria ficou quente

Por várias horas falamos
Choramos ao abrigo
Da promessa desmentida

A noite roubou ao dia
A palavra que não digo

Larga esta noite já ia
Até que o céu se mudou
Trazendo-o de novo a mim

E foi assim que o meu dezembro chegou

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

NO DIA EM QUE JULIETA MORREU

No dia em que Julieta morreu
Cedeu com ela e com seu corpo
Uma alma consumida pela chaga
Sobremesa amarga
Que te leva
Que te perde
E nunca te traz a casa

No dia em que Julieta morreu
As flores continuaram perfumando
O ar que não enche agora teu peito
As tuas mãos foram buscando
Mas mais esperto esse sujeito
Fez-se de certo
Afogou-te no leito

Tu foste fácil para ele
Foste atraído pelo cheiro
Da pele nova nunca tocada

Julieta é nome do revólver carregado
Com a bala envenenada

No dia em que Julieta morreu
Logo apareceu o insano conceito
Do pobre que rouba rico para tocar na sua amada

No dia em que Julieta morreu
Veio essa peste que eu não aceito
Inundar a boca imunda que tão bem estava calada

Tu achas que sabes amar
Mas tenta antes respirar
O teu corpo é tão mais perfeito enquanto respiras
Do que ao cair no precipício do qual te atiras

Tu não foste feito para achar segundo sentidos
Tu perdes-te no meio desses medrosos gemidos

No dia em que Julieta morreu
Deus também chorou
Para que pudesses dizer que ele é bom

No dia em que Julieta morreu
Nos céus uma canção ecoou
Que hoje cantas sem saber o certo tom

Tudo isto aconteceu
Num dia em que estive fora

No dia em que Julieta morreu
Eu só cheguei a tardia hora
Quase de bêbado caído
Quase tão perdido
Como tu que choravas

No dia em que Julieta morreu
Eu dormi sem o ruído
Das promessas que rasgavas
Das cartas que queimavas

Tudo isso junto ardeu
No dia em que Julieta morreu