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sexta-feira, 22 de abril de 2011

PUNHADOS DE PÓ



Uma voz sombria vai falando impotente ao vento,
tentando matar o tempo desta hora de nós vazia.
Cruel. Amarga, mas sem saber a nada
que os meus nomes possam apelidar.

A minha mão agarra um punhado de pó de mim.

Sou assim, confuso, disperso em punhados de pó
que se afastam por bem desses teus, em verso,
originando poemas calados, que têm apenas beijos,
nossos, separados por milímetros…

que nunca se tocarão.

Porque nós somos somente punhados de pó,
levados por vezes na mão fria e tão descrente
que deixa cair dia a dia grão a grão: eu e mais eu;
tu e mais tu. Caímos gradualmente pelo chão

em locais tão distantes e remotos do nós mesmos.

O tempo fez-nos errantes, direitos mas tortos.
Por vezes parece haver a nova mágica solução,
mas não. Apenas ilusão, apenas mais uma mão
que remexeu nossos punhados…

que nunca se tocarão.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

CALIGRAFIA CONFUSA




A vida é uma peça
teatral, feita de actos vagos
de verdade: mentira doce.

Fácil,
mais fácil que ficar a olhar
o momento verdadeiro: vazio.

Camuflagens disfarçam o nada,
beijos substituem sentimentos confusos.
Corpos perdidos na estrada
traçam linhas, sentidos tão obtusos.

E um poema não é mais que o reflexo
dessa mesma confusão.

E no final,
quando o olho perplexo
concluo...

não é letra da minha mão.

terça-feira, 12 de abril de 2011

JASMIM DE TUNES




As flores que vendia não eram livres,
tinham um perfume misturado com ranço.
A liberdade vivia em mim sob forma de descanso
mortal: um início para o fim.

Foi preciso queimar meu corpo
e verter as cinzas no jasmim.

Essa flor é agora comum punho
que avança alastrando a palavra sufocada.

Liberdade, liberdade, liberdade!

Antes era palavra num rascunho,
agora é dívida cobrada.

Tunes é agora esta flor
e as pétalas serão de Tunes.

O vermelho é do meu sangue
vertido no grito a que te unes.

terça-feira, 5 de abril de 2011

NÓS EM PENSAMENTO


Havia chuva que não molhava o meu corpo,
caía no chão para depois evaporar fria.



É da natureza das coisas o quente ebulir
mas no frio tão prudente deus fez-se desistir:
fez evaporar estas contaminadas águas,
ainda que cortantes, ainda que geladas.

O dia não foi bem,
como eu tinha executado mentalmente.
Actos que eu não queria,
palavras revoltas: cruéis:
manifestaram-se contra mim,
contra minha própria vontade.

Ela,
não sei se esperando ou não,
não chorou as mesmas lágrimas,
secas, que eu forcei.

Houve um virar de costas,
houve um soluço meu
e depois houve silêncio…

depois morreu.
Poema triste!

Pela janela do seu quarto
assistiu a tudo uma criança.
Atrás dessa janela,
para além do seu quarto,
alguém se trava de razões.

Um copo que estava cheio
e que agora é nada.

Uma criança como eu,
impotente, olhando a estrada.

Eu homem e ela mulher
crianças comos agora.
Um dia, quando ela disser,
sairemos ao mundo lá fora

como dois desconhecidos que somos.
Como dois pássaros no Inverno,
falaremos daquilo que fomos,
rasgaremos o amor eterno
e seremos um pouco por um momento…

seremos nós em pensamento.

sábado, 2 de abril de 2011

A CASA DO VIOLONCELO - CAPÍTULO II - FAMÍLIA E SOLIDÃO






Quando eu nasci, o meu pai estava longe. Sempre trabalhou fora. Muitos, como ele, haviam imigrado para puderem dar às suas famílias uma vida melhor. França, Venezuela, Brasil, América, Canadá. O meu pai trabalhava como pedreiro na fria Alemanha. Acho que o meu pai nunca foi um grande pedreiro. O que o fazia feliz era o violoncelo, aquele violoncelo.

Sempre que nos vinha visitar durante as férias, uma semana no Natal e outra no Verão, passava os serões a tocar. A sala, a lareira e a minha mãe, sentada, comigo no colo mostrando-se feliz. A minha irmã Elisa, raras vezes ficava ali connosco, apenas quando, por ordem da minha mãe, não tinha trabalhos da escola para fazer. A minha irmã estava, sempre, onde mais ninguém estava. Sempre longe do meu pai.

A minha irmã era mais velha do que eu sete anos. Lembro-me de ser pequeno e vê-la ajudar a minha mãe. Nunca foi de muitas falas, mas brincava muito comigo. Retirando as vezes em que o meu pai estava. Nesses dias estava cansada ou tinha muitos trabalhos da escola. Eu ainda não sabia o que eram trabalhos da escola. Puxava-a. Ela não vinha.

Cresci numa aldeia pequena, a uns vinte quilómetros da cidade. Cresci sem a presença do meu pai. Fui bebé e ele não viu. Fui criança e ele não estava. Tornei-me homem e ele já havia morrido. A minha mãe sempre tentou que gostássemos do nosso pai. Eu tentava. A Elisa acho que não.

Quando entrei para a escola, todos os meus amigos contavam histórias que envolviam um pai. Nas minhas histórias existiam menos personagens: eu, a minha mãe, a minha irmã e o meu tio Alberto. O meu pai costumava dizer que o meu tio era um zé-ninguém. Não sei. Mas cá em casa todos gostávamos dele, até a Elisa.

O meu tio gostava de fazer as pessoas sorrir. Sorria bastante. O tabaco, tornara-lhe os dentes amarelos. Mas nem por isso o seu sorriso era menos contagiante, menos verdadeiro. Aparecia, pontualmente, em nossa casa só para ver se estava tudo bem. Não avisava. De todas as vezes, a pedido da minha mãe, acabava por jantar connosco. Tinha cerca de quarenta anos, mas tinha a cabeça já bastante calva.

Durante esses jantares ríamos bastante. Depois ele falava com orgulho do meu pai. A Elisa despedia-se dele e ia para o seu quarto. Tinha muitos trabalhos da escola. Depois a lareira morria, os temas faltavam-lhes, tanto a ele como à minha mãe. Silêncio. O meu tio olhava para o relógio e dizia:
-Bem, está na minha hora. - a minha mãe acompanhava-o à porta. Demoravam-se um pouco. A porta batia. Depois, eu, com os pés em cima da cadeira bamba pelos anos, ficava a ver pela janela o corpo do meu tio afastar-se na rua. Para lá daquilo que o meu olhar alcançava, o meu tio apanharia o comboio e iria para casa. Vivia longe. Morava na cidade, no Porto. Sozinho.


Eu devia ter mais ou menos cinco anos, quando, num dia de férias, num dia qualquer, o meu pai me começou a ensinar a tocar. Naquele momento fomos filho e pai. Eu sorvia todas as suas palavras. Os meus olhos seguiam as suas mãos que faziam dançar o arco. Ele deslizava, leve, nas cordas puras que liam os seus movimentos e propagavam no ar notas belas que arrepiavam o meu corpo.

Eu era ainda tão pequeno. Mas a minha vontade era grande. Eu queria, um dia, puder tocar para muita gente. Eu queria que um dia o tempo, o mundo, parasse só para me ouvir. Devemos ter cuidado com aquilo que desejamos.

Aos doze anos já tocava perfeitamente. O meu pai tinha orgulho em mim e um dia, em Dezembro, durante as suas férias de Natal, inscreveu-me na escola de música que ficava na cidade. Foi nesse dia, que pela primeira vez a vi.




Lembro-me do dia em que o meu pai nos deixou. Lembro-me bem. Eu fazia cinco anos nesse dia. Naquele dia rimos tanto. O mundo era nosso, o tempo estendia-se para nós. Só para nós. Depois, depois aconteceu.

Algum tempo antes, não sei bem porquê, o meu pai ficou diferente. Creio que ficou assim depois da minha mãe lhe ter falado no meu avô. O meu pai não gostava de falar nesse assunto. Nunca conheci o meu avô, morreu muito antes de eu nascer. Como? Isso não sei. Apenas lhe conheço o nome: José. De cada vez que se tocava no nome do meu avô, o meu pai ficava invariavelmente mal disposto. O dia era estragado subitamente. Como nuvens negras que surgem, repentinas, num dia de verão.




Nesse dia, em que a vi pela primeira vez, nós éramos ainda somente crianças. Almas cheias de sentimentos tão puros, incapazes de saber amar. Naquele dia, ela estava com a mãe, que a puxava pelo braço. Os nossos olhos sorriram abertamente e os segundos estenderam-se mais que o habitual. Depois, depois o meu pai, feliz dizendo-me:
- A partir de hoje serás um músico à séria! – orgulho na sua voz.

Sempre tinha sonhado com aquele dia. Sempre quisera orgulhar o meu pai. Eu julgava que aquele velho violoncelo nos poderia tornar pai e filho. De verdade. Como nas histórias de pais e filhos. Eu estava errado. A história foi tão diferente. Pouco depois, o meu pai regressou definitivamente para nossa casa. Quando soube, a Elisa foi mármore por momentos.


Três anos depois de ter entrado para a escola de música, eu e ela, a Francisca, já namoriscávamos. Não sabíamos bem como se namorava a sério, então brincávamos, namoriscávamos, fingíamos ser grandes. Por vezes dávamos beijinhos. Não gostávamos. Era estranho. Mas de uma coisa ambos sabíamos, os nossos olhos sorriam muito, sempre que estávamos juntos. Sorriam horas. Talvez apenas segundos, estendidos, prolongados pela nossa vontade. Como eu gostava que tivesse sido sempre assim. Não foi.

Por vezes a Francisca, sempre após as aulas na escola de música, vinha para minha casa. De todas as vezes eu pagava o seu bilhete. Eram trinta minutos de viagem até minha casa, naquele velho autocarro. Durante esse tempo, os nossos olhos sorriam sempre, contavam segredos, palavras que ainda não compreendíamos bem. Depois, quando chegávamos a minha casa, a Elisa logo metia conversa com a Francisca. Trocavam risos e palavras sussurradas. A Elisa era mais velha, mas nunca a minha casa conheceu algum amigo, algum namorado seu. Era muito fechada, algo em si foi escuro até aquele dia. O dia em que o meu pai morreu.


O meu pai tinha regressado para Portugal havia dois anos. Desde essa altura que o meu tio não nos visita. Desde esse dia em que o meu pai chegou, que a minha irmã se fecha cada vez mais no seu quarto. A minha mãe, essa, esforça-se para que o meu pai, eu e, também, a minha irmã sejamos felizes. Era frequente ver o meu pai irritado com a minha mãe. Não sabia bem porquê. Era frequente ver a minha mãe a chorar. Não sabia bem porquê.

A Elisa já trabalha. Não para ajudar os meus pais, porque afortunadamente sempre tivemos uma vida boa. Acho que é apenas uma forma que a minha irmã arranjou para passar menos tempo em casa.

Eu tenho agora catorze anos. A Francisca é um pouco mais nova que eu. Gostámo-nos cada vez mais. Os nossos olhos partilham cada vez mais segredos: amor que não conseguimos verbalizar. Já não somos crianças, ainda não somos adultos. Somos dois. Somos um. É como se fossemos perfeitos irmãos. Não de sangue, mas de alma.





Hoje saí à rua. É como se fosse invisível. Ninguém parece notar a minha presença. Ninguém parece saber que hoje faço dezoito anos. Mas todos sabem!
Junto à Ribeira as pessoas confundem-se. As cores misturam-se, as caras são dissolvidas em água nos meus olhos. O ruído é constante, suave, é quase morto. Na ponte D. Luís, o metro arrasta-se num movimento quase parado. Do outro lado, o sol pousa-se no rio.

O meu passo é inconstante. Ora é rápido, ora é lento. Afasto-me das pessoas que vêm em direcção a mim. Pareço ser invisível, mas não sou. Vejo-me, apenas eu noto a minha presença.

Enquanto caminho, lembro-me de outros passeios, de outros dias, de outras pessoas: o meu pai. Lembro-me quando passeávamos no parque. Eu era tão pequeno. Hoje sei que não verei o seu rosto, mas a sua sombra caminha a meu lado. Como que me protegendo, como que me sorrindo. Muito.

Passaram-se muitos anos desde que o meu pai partiu. Mas a vida parece ter parado naquele dia. A minha mãe parece não ter envelhecido um só ano. Eu pareço ser a mesma criança, mas não sou. Eu sei que não sou. O tempo muda, leva, traz, passa simplesmente, e hoje, hoje eu faço dezoito anos.

No regresso a casa penso também na minha avó, penso na minha tia Elisa. Há já bastante tempo que não as vejo. Desde que o meu pai partiu que não me lembro de as ver. Morámos tão perto, mas é como se um muro nos separasse. A minha mãe diz que um dia eu entenderei tudo.




Lembro-me de um dia em que o David não apareceu na escola de música. Ele nunca faltava. Nesse dia, a aula pareceu-me mais longa. Pensava no que se teria passado. Olhava para o relógio. Pensava nele. Olhava novamente o relógio. Depois, depois não pensava em nada.

À saída da aula encontrei o meu pai. Perguntou-me como tinha corrido a aula.
- Bem…

Não era frequente o meu pai vir-me buscar. Não passava muito tempo comigo sequer. Trabalhava muito. Era um daqueles vendedores ambulantes. Vendia enciclopédias, edredões, seguros, mil e um tipos de cremes medicinais. Viajava muito. Eu e a minha mãe estávamos sempre sozinhas. Mas foi por vontade do meu pai que entrei para a escola da música. Para ser sincera, nunca achei muita piada às aulas. Achava-as chatas, até ao dia em que o David se matriculou. Hoje a aula foi chata.

Morávamos perto da escola e portanto fazíamos o percurso para casa a pé. Não falávamos muito. Não tínhamos conversa. Gostava de puder contar ao meu pai que tinha um namorado. Mas as palavras não me saíam. De resto, também nunca tinha conhecido o pai do David. Deve ser da natureza das coisas os pais serem os últimos a saber deste tipo de coisas.

Quando chegámos a casa, a minha mãe perguntou-me como tinha corrido a aula.
– Bem…
– E o David? – perguntou sorrindo.
– Não apareceu…

Nesse momento o meu pai apareceu e nós calámo-nos. Disse que estava de saída. Tinha muito trabalho para fazer. Disse que gostava muito de nós, para eu me portar bem e obedecer à minha mãe. Deu-me um beijo na testa, despediu-se da minha mãe com um beijo e saiu. Regressa daqui a uns dias.




Houve um dia que mudou para sempre as nossas vidas. A minha e da Francisca, sem que ela soubesse. Um dia como outro qualquer, tinha guardado para nós algo terrível. Preferia que os deuses tivessem apagado aquele dia dos seus cadernos. Mas ele existiu teimoso. Amargo. Duro. Quase mortal, mas deixando-nos viver.

Nós éramos ainda tão jovens, tão simples. Aquele dia foi tão complicado. Um abismo que se mostrou perante nós. Uma espada que nos cortou, marcando para sempre as nossas existências. Vida e morte marcada por aquele dia.





Quando eu era mais pequeno costumava perguntar muito pelo meu pai. Hoje não pergunto nada. Calculo a dor da minha mãe de cada vez que fala nele. Pego nessa dor e junto-a à minha. Juntas entendem-se e parecem mais pequenas.

Nunca ninguém me culpou de nada, mas naquele dia eu fazia cinco anos. Se não fosse aquele dia talvez o sorriso do meu pai ainda estivesse presente em algo mais do que uma fotografia. No meu íntimo eu sabia que a culpa era minha. Só isso justificava a distância da minha mãe. A ausência da minha avó e da minha tia. Só isso explicava que o tempo tivesse parado para mim.





Capítulos anteriores:

Prólogo: http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/02/casa-do-violoncelo-prologo.html

Capítulo I(Diferentes Manhãs): http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/03/casa-do-violoncelo-capitulo-i.html


Obrigado a todos vocês que me lêm!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

GAVETA




Por vezes tenho palavras tão perfeitas
que chego quase a questionar a sua natureza.
São verdade, são mentira de ocasião
feitas para que o mundo melhor me adormeça.

Tenho o mundo numa mão,
várias dores na minha cabeça.

Restos de realidade marcam feridas de presença.
Deixadas por meus pais,
deixadas por meus ais,
e pela tua boca calada.

Não, eu não serei mais!

Tenho vários poemas numa gaveta fechada
colocados em ângulos sombrios.
São corpos quase mortos numa estrada
roubados de seus sangues frios.

Não, eu não os quero…

mas a minha vontade é tão vaga
perante tão concretas e alinhadas palavras.
Elas são aos milhares e eu?

Sou teu sem o meu apoio…