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segunda-feira, 30 de março de 2015

O Manifesto – “Aviso a Tempo por Causa do Tempo”, de António Maria Lisboa e a atitude dos surrealistas portugueses

Declara-se para que se saiba:

1.º
 que não apoiamos qualquer partido, grupo, directriz política ou ideologia e que na sua frente apenas nos resta tomar conhecimento: algumas vezes achar bom, outras achar mau. Quanto à nossa própria doutrina, os outros hão-de falar.

2.º
 que não simpatizando com qualquer organização policial ou militar achamo-las no entanto fruto e elemento exacto e necessário da sociedade – com quem não simpatizamos igualmente.

3.º
 que sendo nós indivíduos livres de compromissos políticos permaneceremos em qualquer local com o mesmo à-vontade. Seremos nós os melhores cofres fortes dos segredos do estado: ignoramo-los.

4.º
 que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas convencionais, temos o máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos componentes da sociedade. Assim delas daremos por vezes testemunho e mesmo ensino.

5.º
 que não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes.

6.º
 que a crítica é a forma da nossa permanência.


António Maria Lisboa, Poesia, Assírio & Alvim.

“Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.”


(Abril de 1950, finalizando o “Comunicado dos Surrealistas Portugueses”, assinado por Artur do Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Mário Henriques Leiria)

Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita: Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949.Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita: Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Caderno de contas


















Duas pernas mergulhadas no rio
agitam a calma do sol a morrer a Ocidente.

O amor não é mais do que isso:
duas pernas irrequietas que brincam,
remexem a água e tocam a lama,
o fundo,
onde estilhaços de garrafas quebradas nos cortam os pés,
enquanto as mãos ficam livres para lançarmos pedras ao rio
e os olhos ficam atentos à contagem do número de ricochetes
que anotamos no velho caderno quadriculado
onde multiplicamos todas as divisões que o mundo nos fez.

1          2          3          4          5         
6 saltinhos x 1000, vi eu,
e afundou-se a pedra filosofal à sétima milhena que beijou a água por nós.

Julgo que isso tu também viste…

O amor é infantil.
É uma merda pequena quando cais ao rio
e não és tu a tua própria foz.

Ao chegares a casa encharcado e triste,
nunca sabes muito bem como te deves explicar.

- Ainda na semana passada te pus a razão a secar! – diz-te a tua mãe,
zangada e consciente das tolices que o mundo produz e reproduz.
Porque as mães são assim e aborrecem-se com merdas pequenas.

Em seguida, tomas um chã quente, anoitece e tentas dormir
ainda escutando os rumores das águas.

O rio continuará sempre lá,
tal como as pedras e o teu caderno de contas,
e provavelmente, com sorte, ainda terás pernas e mãos quando acordares,
basta não despenteares a infância toda nestas noites de inverno.

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto como Pessoa



O título deste texto pode ser enganador.

Herberto Hélder morreu hoje, aos 84 anos, provocando-me um enorme vazio que, a esta altura, ainda não consigo muito bem compreender ou aceitar. Os grandes poetas não deviam morrer. Algum engravatado, com o pouco que percebe da vida, que decrete isso, porra! Não lhe ergam estátuas. Não associem o seu nome a escolas, a ruas ou a praças pouco ou muito frequentadas. Poupem nas homenagens que o próprio sempre rejeitou. Apenas não o deixem morrer, porra!

O título deste texto pode ser enganador, repito. Não pretendo falar da personalidade do Poeta que hoje cessou a metáfora da vida. Não tenho nada para dizer nesse capítulo. Muito pouco é aquilo que se conhece e os seus poemas serão sempre os melhores biógrafos. Um homem valerá sempre mais pela sua obra do que por aquilo que outros poderão dizer a seu respeito.

Dito isto, é à sua obra que me restrinjo. “Herberto como Pessoa”. Fernando Pessoa. Outro grande poeta, sem glória ou fama obtida em vida, mas elevado à condição de ídolo entorpecedor após a sua morte. Porque todos os ídolos entorpecem e sinto-me na necessidade de esclarecer que, para mim, o Herberto não era um ídolo.
Nunca fui um idólatra e rejeito qualquer tipo de vassalagem intelectual. Herberto Hélder sempre significou para mim uma fonte, um ponto de partida. O facto de não o conseguir enquadrar numa corrente – porque um poeta não se acorrenta a nada – sempre me fascinou. Os seus versos provêm do inconsciente, dos precipícios que possuímos dentro do corpo e sobre os quais colocamos grades, com mãos acobardadas, parafraseando Mário de Sá-Carneiro.

Mas voltando a Pessoa, gostaria de esclarecer que contra ele nada tenho. Não menosprezo a sua obra, assim como não coloco em causa a densidade do seu pensamento e do seu carácter. Colocar Herberto no mesmo patamar não constitui nenhum sacrilégio. A obra de Pessoa é mais profunda, mais arquitectada. A de Herberto é mais natural, mais indomável e mágica. Porque as palavras têm magia e Herberto Hélder aprendeu-a sozinho, como um eremita, como Zaratustra.

Tomei contacto com a sua poesia quando tinha 17 anos. Nessa altura achava-me muito burro por não conseguir percebê-lo. Hoje sinto apenas que fui muito ingénuo em ter achado que a poesia é coisa que se deva entregar à percepção. Mas a culpa não foi inteiramente minha!

Desde cedo, na escola tentaram ensinar-me a compreender os grandes poetas. Sem grande sucesso, diga-se. Nunca conseguiram incutir-me o gosto por essa poesia tão bem explicadinha. Descobrir o Herberto foi, portanto, como ter um encontro de terceiro grau com um ser proveniente de uma galáxia distante. Por não conseguir percebê-lo, isso talvez me tenha deixado mais susceptível à hipnose que os seus versos provocam.

Através da sua obra descobri que as palavras são muito mais do que o seu significado. As palavras são teclas de um piano infinito. São tintas, com as quais é possível pintar as paisagens mais estranhas e, por isso, encantadoras. Os poemas de Herberto Hélder são propostas de embarque para viagens sem regresso certo. São Passos em Volta do mundo dos sonhos. São crianças tolas que vislumbram mundos novos e em torno dos quais a razão não gravita.

Herberto é isso e muito mais. Herberto é como Pessoa, repito. Talvez a sua obra nunca chegue a constar nos manuais escolares – e espero, sinceramente, que não! –, porque não é possível sintetiza-la. Os seus poemas são complicados de decorar ou catalogar – e ainda bem que assim é! Não possui heterónimos, porque não há necessidade disso, pois todos nós temos diferentes sujeitos dentro de um só corpo. Também não possui nenhum volume de poesia dedicado à pátria, porque para ele nunca existiram fronteiras.

Herberto não tinha país. Tinha mundos vários. Só dele. Sem pessoas a mais.

Herberto não teve tempo para partilhar a sua solidão, que a todos nos toca, com mais ninguém.

Contudo, neste país, teremos imenso tempo para perceber a real dimensão do seu legado. Talvez um dia, quando esse tempo chegar, alguém me perdoe a ousadia do título deste texto que em breve acabarei de escrever.

Mas nada disso importa! Apenas não deixem que os poetas vos morram na lembrança, porra! Na poesia podemos ser poligâmicos. Pessoa não se importaria. A sério que não. Juntem, sem medo, o Herberto com o Camões, com o Teixeira de Pascoaes, com o Fernando, com o Sá-Carneiro, com o Régio, com o Cesariny, com o António Maria Lisboa, com o Eugénio de Andrade, entre outros. Não se fiquem pelo Pessoa até vos cessar a líbido.

A poesia não se quer fiel, mas transgressora.


sexta-feira, 20 de março de 2015

Expedições homéricas

Deito-me sobre os versos verdes da manhã que anuncias,
e sou capaz de permanecer assim uma noite, um século,
acompanhando a alternância celeste entre o sol e as estrelas,
entre a luz que não agarro e as trevas que trouxe comigo de casa.

Sou mesmo capaz de ficar assim durante muito tempo.
Invernos estalinistas a conjecturar todas as primaveras possíveis,
todas as metáforas novas que se abrem à tua passagem
e em seguida se recolhem,  quando as tento espalhar no rosto
deste poema que eu pedi almofadado e com um escudo de fé.

Mal fadado é o homem que permanece deitado
e espera que a vida lhe traga propostas de veludo.
No final de tudo, a poesia não é um deus
e tão somente concebe através da corrosão.
A poesia é pouco mais do que acordar com dores nas costas
ou ter o osso imaginário da razão carente de cálcio.

E o que importa isso?
Também ninguém imagina um poeta a fazer halterofilia.

A poesia é uma guerra e paz de trazer por dentro do corpo,
onde nas veias
expedições homéricas partem em busca do nome infantil do mundo
e do seu significado.