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terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto como Pessoa



O título deste texto pode ser enganador.

Herberto Hélder morreu hoje, aos 84 anos, provocando-me um enorme vazio que, a esta altura, ainda não consigo muito bem compreender ou aceitar. Os grandes poetas não deviam morrer. Algum engravatado, com o pouco que percebe da vida, que decrete isso, porra! Não lhe ergam estátuas. Não associem o seu nome a escolas, a ruas ou a praças pouco ou muito frequentadas. Poupem nas homenagens que o próprio sempre rejeitou. Apenas não o deixem morrer, porra!

O título deste texto pode ser enganador, repito. Não pretendo falar da personalidade do Poeta que hoje cessou a metáfora da vida. Não tenho nada para dizer nesse capítulo. Muito pouco é aquilo que se conhece e os seus poemas serão sempre os melhores biógrafos. Um homem valerá sempre mais pela sua obra do que por aquilo que outros poderão dizer a seu respeito.

Dito isto, é à sua obra que me restrinjo. “Herberto como Pessoa”. Fernando Pessoa. Outro grande poeta, sem glória ou fama obtida em vida, mas elevado à condição de ídolo entorpecedor após a sua morte. Porque todos os ídolos entorpecem e sinto-me na necessidade de esclarecer que, para mim, o Herberto não era um ídolo.
Nunca fui um idólatra e rejeito qualquer tipo de vassalagem intelectual. Herberto Hélder sempre significou para mim uma fonte, um ponto de partida. O facto de não o conseguir enquadrar numa corrente – porque um poeta não se acorrenta a nada – sempre me fascinou. Os seus versos provêm do inconsciente, dos precipícios que possuímos dentro do corpo e sobre os quais colocamos grades, com mãos acobardadas, parafraseando Mário de Sá-Carneiro.

Mas voltando a Pessoa, gostaria de esclarecer que contra ele nada tenho. Não menosprezo a sua obra, assim como não coloco em causa a densidade do seu pensamento e do seu carácter. Colocar Herberto no mesmo patamar não constitui nenhum sacrilégio. A obra de Pessoa é mais profunda, mais arquitectada. A de Herberto é mais natural, mais indomável e mágica. Porque as palavras têm magia e Herberto Hélder aprendeu-a sozinho, como um eremita, como Zaratustra.

Tomei contacto com a sua poesia quando tinha 17 anos. Nessa altura achava-me muito burro por não conseguir percebê-lo. Hoje sinto apenas que fui muito ingénuo em ter achado que a poesia é coisa que se deva entregar à percepção. Mas a culpa não foi inteiramente minha!

Desde cedo, na escola tentaram ensinar-me a compreender os grandes poetas. Sem grande sucesso, diga-se. Nunca conseguiram incutir-me o gosto por essa poesia tão bem explicadinha. Descobrir o Herberto foi, portanto, como ter um encontro de terceiro grau com um ser proveniente de uma galáxia distante. Por não conseguir percebê-lo, isso talvez me tenha deixado mais susceptível à hipnose que os seus versos provocam.

Através da sua obra descobri que as palavras são muito mais do que o seu significado. As palavras são teclas de um piano infinito. São tintas, com as quais é possível pintar as paisagens mais estranhas e, por isso, encantadoras. Os poemas de Herberto Hélder são propostas de embarque para viagens sem regresso certo. São Passos em Volta do mundo dos sonhos. São crianças tolas que vislumbram mundos novos e em torno dos quais a razão não gravita.

Herberto é isso e muito mais. Herberto é como Pessoa, repito. Talvez a sua obra nunca chegue a constar nos manuais escolares – e espero, sinceramente, que não! –, porque não é possível sintetiza-la. Os seus poemas são complicados de decorar ou catalogar – e ainda bem que assim é! Não possui heterónimos, porque não há necessidade disso, pois todos nós temos diferentes sujeitos dentro de um só corpo. Também não possui nenhum volume de poesia dedicado à pátria, porque para ele nunca existiram fronteiras.

Herberto não tinha país. Tinha mundos vários. Só dele. Sem pessoas a mais.

Herberto não teve tempo para partilhar a sua solidão, que a todos nos toca, com mais ninguém.

Contudo, neste país, teremos imenso tempo para perceber a real dimensão do seu legado. Talvez um dia, quando esse tempo chegar, alguém me perdoe a ousadia do título deste texto que em breve acabarei de escrever.

Mas nada disso importa! Apenas não deixem que os poetas vos morram na lembrança, porra! Na poesia podemos ser poligâmicos. Pessoa não se importaria. A sério que não. Juntem, sem medo, o Herberto com o Camões, com o Teixeira de Pascoaes, com o Fernando, com o Sá-Carneiro, com o Régio, com o Cesariny, com o António Maria Lisboa, com o Eugénio de Andrade, entre outros. Não se fiquem pelo Pessoa até vos cessar a líbido.

A poesia não se quer fiel, mas transgressora.


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