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sábado, 31 de outubro de 2015

W 2859i WPM

Será absurdo fazer poesia a partir de expressões retiradas de folhetos informativos? É um bocado. Na medida em que todos somos absurdos e vamos funcionando ainda assim. Ou assim-assim. Basta seguir os passos.

toque na tecla sensora iluminada a verde
e abra a porta da poesia

retire as barras de segurança
e confirme o valor seleccionado
a vida está equipada com um sistema automático de quantidade
um pouco mais do que a metade recomendada.

desenrosque os pés da razão por baixo de um balcão
vigie as crianças que estejam perto dela
não permita que brinquem com utopias
as crianças devem ter capacidade para reconhecer
e compreender os possíveis perigos de uma utilização incorrecta

antes de instalar a poesia
verifique se a vida apresenta algum dano no revestimento exterior
o acesso a dias adolescentes deve estar sempre garantido
mas conte sempre com o auxílio de programas automáticos para efectuar escolhas

se dosear as metáforas adequadamente
não é necessário proceder à descalcificação dos sonhos

instale os significados bem nivelados e correctamente ligados
acerte as horas
mas lembre-se que os tempos podem ser seleccionados em passos




Nota: poema construído através de expressões selecionadas e extraídas do manual de instruções de uma máquina de lavar, tendo sido esses trechos organizados posteriormente e alguns termos substituídos.

domingo, 21 de junho de 2015

Tv por satélite

ontem vieram cá a casa instalar a tv por satélite
o mundo inteiro a encontrar-me no sofá
onde me deito ao final do dia
– 180 CANAIS À SUA DISPOSIÇÃO!
alguns em idiomas que não entendo
duas aulas de alemão foram o suficiente para desistir
Auf Wiedersehen!

lembras-te da velha televisão que tínhamos?
somente quatro canais
e a antena desregulava-se com o mau tempo
como acontece com todos nós
vulneráveis às tempestades que nos fazem perder o sinal

assistimos a tanta coisa nessa velha televisão
nessa altura não me deitava no sofá para cabermos os dois
e assim ficarmos durante mais ou menos hora e meia
entretidos com aqueles filmes de domingo à tarde
que te faziam chorar   sorrir    por vezes tudo junto
e a mim nada   porque eras tu quem me fazias sorrir
e por isso quatro canais bastavam

ao fim-de-semana
acordávamos cedo e ficávamos a ver os desenhos animados
fingindo ser crianças novamente, de olhos muito arregalados
para depois gastarmos no sofá os nossos superpoderes
dos quais ninguém suspeitava excepto os vizinhos do lado.

os blocos noticiosos pareciam respeitar a nossa harmonia
os editores pareciam entender as nossas trocas de olhares
e as nossas conversas sobre o quotidiano.

é preciso ir comprar fruta, dizias tu
enquanto na velha televisão se anunciava uma promoção de kiwis
numa qualquer grande superfície comercial.

às vezes discutíamos e desligávamos a televisão
noutras adormecíamos com ela ligada
com as televendas a sucederem-se
- maquinetas para tonificar o corpo
raspadores de cenoura
batedeiras
aspiradores muitos
mais o raio que os parta!

suponho que ainda hoje continuem a existir televendas
espalhadas por esta lista interminável de canais
só não vendem televisões como aquela que nós tínhamos

só não nos vendem aos dois juntos por um preço incrível
porque já não vemos as mesmas coisas
e já não partilhamos o mesmo sofá nem a mesma casa

a nossa velha televisão avariou
e eu não fui capaz de a arranjar

apesar disso
não queres passar cá por casa um dia destes         
e viajar no tempo até alguma série que tenhamos deixado a meio?

terça-feira, 26 de maio de 2015

Os peregrinos que passam à porta de minha casa

Na rua de minha casa, onde vivo eu, a minha mãe, o meu pai e o meu gato Peixoto, passam todos os dias dezenas de peregrinos. Vão para Santiago e são quase todos estrangeiros. Por vezes passam grupos extensos, constituídos por pessoas que se conhecem ao longo do percurso e que falam idiomas distintos e exóticos. Por vezes passam famílias inteiras, com crianças ainda pequenas, que caminham entusiasmadas. Outras vezes, mais raras, passa alguém solitário, porque cada um define o seu próprio trilho sobre o mundo.
            
Quase todos param em frente à varanda do meu quarto para tirar algumas fotografias. Acham bonitos os vasos com flores que a minha mãe lá tem e que eu às vezes, quando chego a casa com os copos, uso como cinzeiros e que o Peixoto frequentemente confunde com a caixa da areia.
            
O meu vizinho do lado, que controla diariamente todas as movimentações que se sucedem nesta pacata rua, mete conversa com eles. Dá-lhes algumas indicações em português, intercaladas com muitos gestos. Eles não percebem o meu vizinho, mas sorriem e depois seguem quase sempre pelo caminho errado. A compreensão, por vezes, é um bocado burra.
            
Os que caminham sozinhos não tiram fotografias nem perguntam nada. Seguem simplesmente. Hoje, ao sair de casa, vi caído em frente ao meu portão um maço de tabaco japonês. Pertencia, por certo, a um desses muitos peregrinos que por aqui passam todos os dias. Num século de santos desacreditados, um volume de Marlboro na mochila dá sempre jeito.
            
Nunca gostei muito de plantas nem do meu vizinho. Estão sempre parados no mesmo sítio. São um aborrecimento. As plantas a enfeitar a minha varanda e o meu vizinho a tentar fazer o mesmo ao portão de casa dele.
            
Gosto mais dos peregrinos porque andam pelo mundo. Gosto ainda mais da minha mãe, do meu pai e do Peixoto porque andam dentro de mim. Não lhes tiro muitas fotografias. Não tiro fotografias a quase nada, porque, de certa forma, eu também sou um desses caminhantes que passam sozinhos por casas indiscriminadas.
            
Escrevi este texto deitado, enquanto não descubro continentes novos. Até os mares lunares estão há muito cartografados. A minha mãe está lá fora a tratar dos vasos. O meu pai está em França e liga todos os dias. Falamos sobre o Benfica e sobre outras coisas. O Peixoto está deitado ao meu lado, porque também não vai muito à bola com o meu vizinho e a minha mãe zanga-se com ele quando encontra cócó nos plantas.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Balada para Leopold Bloom


deixei todos os mapas herdados abertos sobre a mesa
onde ainda ontem lá comeram protótipos de cavalos livres
onde em tempos discutimos a infância dos deuses ao serão
em que bebíamos licores e esboçávamos em guardanapos
plantações solares para colher relógios

agora recolho os mapas
vendo a mesa  vendo a casa
e nada meu há-de ficar para além dos segredos
que as paredes sustentam colados ao tecto onde reinam aranhas
que no seu canto reproduzem em quantidades industriais
teorias conceptuais do medo
calafrios que se infiltram nas entranhas da mente
e através das veias correm
como crianças impacientes
brincando solitárias à apanhada

agora recolho os mapas
e finjo não suspeitar da inutilidade dos pontos cardeais
pergunto numa língua estrangeira o paradeiro da fortuna
e um mar vazio de ideais apresenta-me a deriva
onde náufragos numa duna cantam em uníssono
uma balada para Leopold Bloom

a casa foi vendida
e até foi por bom preço
é estranho haver gente que não se importe ou repugne
de viver onde ainda habitam as memórias de outros

para mim isso não dava
eu sei lá se tu tens um passado asseado

é mesmo estranho
tal como é estranho haver gente
dentro e fora de mim

bem vistas as coisas
eu próprio sou uma casa
uma residencial sem gerente e de segunda categoria
onde a contradição sobrevive
em regime de pensão completa



quinta-feira, 30 de abril de 2015

Misturas

I

não pontues nenhuma frase
que se dane a respiração facilitada
vai por onde o sol não possa iluminar os teus passos
e torná-los mais previsíveis

o universo é aleatório
porque razão hás-de querer ser tu
maior do que esta merda toda

afia a tua faca
não temas os cortes
não os sutures ou escondas
do policiamento do mundo

se estivesses sozinho por um segundo
sem a moral a acompanhar-te
confessa
quantos crimes perfeitos cometerias

acredita
eu assumiria a co-autoria de tudo isso
e provavelmente nem tu escapavas

por que haverias de cá ficar
se o que todos queremos é continentes novos
para colonizar e edificar belas igrejas

rebentem com tudo
queimem as colheitas
menos as do vinho do porto
porque os ingleses gostam muito
e eu gosto muito das canções deles

submarinos amarelos para patrulhar primaveras estéreis

II

sei lá o que digo ou faço
se pelo menos rimasse
podia dedicar isto a uma puta de telenovela
comprometer-me um bocado só para experimentar
e deixar Godot à espera
à porta de um teatro devoluto
onde sobe ao palco um actor sem papel atribuído
a fingir de si mesmo e a chorar muito
como um recém-nascido
como um poeta
e os poetas são todos um bocado maricas

por isso que se foda a rima fixa
que se foda a puta
que se foda o compromisso
e o Godot se quiser que me procure onde eu   estiver
[destino omisso]
ou então que vá para o diabo que o carregue
a ele e a todos nós
pesados de tanta filosofia que trazemos partida

como Fausto
vemos Helena numa qualquer Margarida
até ao dia em que acabarmos cegos
de tanto julgarmos ter visto
e nada termos de realmente nosso
para além da incompreensão
de todos os nossos passos
de todos os textos e poemas
que escrevemos embriagados

bebe a vida até caíres
mistura tudo
e se te perguntarem no hospital
diz que comeste uma ilusão estragada

podia reler este poema amanhã
e talvez até dar-lhe alguma dignidade
mas a poesia quer-se assim
um bocado descomposta
para manter a pose pós-moderna

tenho olheiras permanentes
escrevo uns versos
bebo como gente grande
e ouço música alternativa

olha eu olha eu
sou um poeta avant-garde



segunda-feira, 27 de abril de 2015

404 Not Found

As palavras nem sempre são a melhor escolha
para explicar as coisas interiores dos seres e do mundo,
aquelas que não vemos,
apenas o pressentimento abstracto da sua existência,
como trovões sem relâmpagos visíveis a rasgarem os céus,
mas que dividem profundamente a lógica
e a acalmia dos tratados assinados sem grande fé.

Entre sujeitos e predicados perdem-se as acções
e os verbos que aprendemos limitam os nossos movimentos
que havíamos delineado e trazíamos na carteira.

Prefiro a música à poesia,
mas a minha voz, afónica por natureza, não é pistola certeira.
Prefiro o teu olhar às tuas palavras,
nas não me ensinaram a lê-lo na escola.
Seria, com toda a certeza, melhor aluno,
se a vida perdesse mais algum tempo comigo
e o tempo não fosse tão impaciente.

Brinco com palavras porque não sei decifrar discursos.
Os meus poemas não me fazem muito sentido,
tal como, de resto, nada mais me faz.

Entre concursos em que homens vaidosos medem pilas,
notícias de guerras longínquas e saques de humanidade,
passo ante passo, prossigo
e pouco ou nada merece o meu interesse.

Repito: prefiro a música à poesia
e agora lembro-me daquela que me mostraste um dia.

Tínhamos o estranho hábito de dizer tanto sem puxarmos das palavras.
Uma simples ligação para o youtube bastava
para te explicar que também há relâmpagos que não produzem trovões.

Tu percebias e eu também,
em inglês quase sempre,
sem necessidade de tradução.

Talvez eu não seja o raio nem o trovão de coisa alguma,
apenas uma manifestação discreta do meu próprio significado,
encriptado e espalhado em dezenas de links
das músicas que um dia te mostrei a partir do youtube.

Acho que nunca te disse isto concretamente,
mas tens um bom e imersivo gosto musical.
Gostava quando o usavas como marcador discursivo,
tudo me parecia mais fluente e coeso nesses momentos
feitos de entrelinhas onde eu pensei caber um soneto.

E talvez coubesse,
fosse a minha métrica mais certa.



quinta-feira, 9 de abril de 2015

Hoppipolla

Não percebo, nãopercebonãoper cebonão
perce bon ãoperce bo nã ope rcebo não.

Espera, já me lembro!
Isto é um poema que escrevi enquanto ouvia Sigur Rós.

Nunca tive curiosidade em perceber o significado das letras.
Não tenho, aliás, o desejo de perceber grande coisa,
para além de que a beleza não se traduz.

Percebes o que quero dizer? Esquece!...
Escuta apenas o ritmo cardíaco das palavras.

Pum-pum, pum-pum, pum-pum, pum- pum
e assim sucessivamente, até rebentares de espanto
ou desencanto.

As palavras são maleáveis, são como uma goma plástica
e dizem que essa merda pode demorar mil anos até desaparecer.
Mesmo quando deixas de usar determinadas palavras,
elas continuarão a existir.
Mesmo quando já não as perceberes,
elas continuarão a existir para além de ti,
sobre o teu mármore onde alguém escreverá palavras bonitas.

Percebes o que quero dizer? As palavras são maiores do que tu.
Existem palavras gigantes
que deixam pegadas colossais na areia dos teus dias.

Se perderes o teu tempo a tentar medi-las,
nunca poderás seguir o trilho melódico
que te conduz ao domínio do idioma dos pássaros.



segunda-feira, 30 de março de 2015

O Manifesto – “Aviso a Tempo por Causa do Tempo”, de António Maria Lisboa e a atitude dos surrealistas portugueses

Declara-se para que se saiba:

1.º
 que não apoiamos qualquer partido, grupo, directriz política ou ideologia e que na sua frente apenas nos resta tomar conhecimento: algumas vezes achar bom, outras achar mau. Quanto à nossa própria doutrina, os outros hão-de falar.

2.º
 que não simpatizando com qualquer organização policial ou militar achamo-las no entanto fruto e elemento exacto e necessário da sociedade – com quem não simpatizamos igualmente.

3.º
 que sendo nós indivíduos livres de compromissos políticos permaneceremos em qualquer local com o mesmo à-vontade. Seremos nós os melhores cofres fortes dos segredos do estado: ignoramo-los.

4.º
 que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas convencionais, temos o máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos componentes da sociedade. Assim delas daremos por vezes testemunho e mesmo ensino.

5.º
 que não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes.

6.º
 que a crítica é a forma da nossa permanência.


António Maria Lisboa, Poesia, Assírio & Alvim.

“Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.”


(Abril de 1950, finalizando o “Comunicado dos Surrealistas Portugueses”, assinado por Artur do Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Mário Henriques Leiria)

Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita: Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949.Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita: Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Caderno de contas


















Duas pernas mergulhadas no rio
agitam a calma do sol a morrer a Ocidente.

O amor não é mais do que isso:
duas pernas irrequietas que brincam,
remexem a água e tocam a lama,
o fundo,
onde estilhaços de garrafas quebradas nos cortam os pés,
enquanto as mãos ficam livres para lançarmos pedras ao rio
e os olhos ficam atentos à contagem do número de ricochetes
que anotamos no velho caderno quadriculado
onde multiplicamos todas as divisões que o mundo nos fez.

1          2          3          4          5         
6 saltinhos x 1000, vi eu,
e afundou-se a pedra filosofal à sétima milhena que beijou a água por nós.

Julgo que isso tu também viste…

O amor é infantil.
É uma merda pequena quando cais ao rio
e não és tu a tua própria foz.

Ao chegares a casa encharcado e triste,
nunca sabes muito bem como te deves explicar.

- Ainda na semana passada te pus a razão a secar! – diz-te a tua mãe,
zangada e consciente das tolices que o mundo produz e reproduz.
Porque as mães são assim e aborrecem-se com merdas pequenas.

Em seguida, tomas um chã quente, anoitece e tentas dormir
ainda escutando os rumores das águas.

O rio continuará sempre lá,
tal como as pedras e o teu caderno de contas,
e provavelmente, com sorte, ainda terás pernas e mãos quando acordares,
basta não despenteares a infância toda nestas noites de inverno.

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto como Pessoa



O título deste texto pode ser enganador.

Herberto Hélder morreu hoje, aos 84 anos, provocando-me um enorme vazio que, a esta altura, ainda não consigo muito bem compreender ou aceitar. Os grandes poetas não deviam morrer. Algum engravatado, com o pouco que percebe da vida, que decrete isso, porra! Não lhe ergam estátuas. Não associem o seu nome a escolas, a ruas ou a praças pouco ou muito frequentadas. Poupem nas homenagens que o próprio sempre rejeitou. Apenas não o deixem morrer, porra!

O título deste texto pode ser enganador, repito. Não pretendo falar da personalidade do Poeta que hoje cessou a metáfora da vida. Não tenho nada para dizer nesse capítulo. Muito pouco é aquilo que se conhece e os seus poemas serão sempre os melhores biógrafos. Um homem valerá sempre mais pela sua obra do que por aquilo que outros poderão dizer a seu respeito.

Dito isto, é à sua obra que me restrinjo. “Herberto como Pessoa”. Fernando Pessoa. Outro grande poeta, sem glória ou fama obtida em vida, mas elevado à condição de ídolo entorpecedor após a sua morte. Porque todos os ídolos entorpecem e sinto-me na necessidade de esclarecer que, para mim, o Herberto não era um ídolo.
Nunca fui um idólatra e rejeito qualquer tipo de vassalagem intelectual. Herberto Hélder sempre significou para mim uma fonte, um ponto de partida. O facto de não o conseguir enquadrar numa corrente – porque um poeta não se acorrenta a nada – sempre me fascinou. Os seus versos provêm do inconsciente, dos precipícios que possuímos dentro do corpo e sobre os quais colocamos grades, com mãos acobardadas, parafraseando Mário de Sá-Carneiro.

Mas voltando a Pessoa, gostaria de esclarecer que contra ele nada tenho. Não menosprezo a sua obra, assim como não coloco em causa a densidade do seu pensamento e do seu carácter. Colocar Herberto no mesmo patamar não constitui nenhum sacrilégio. A obra de Pessoa é mais profunda, mais arquitectada. A de Herberto é mais natural, mais indomável e mágica. Porque as palavras têm magia e Herberto Hélder aprendeu-a sozinho, como um eremita, como Zaratustra.

Tomei contacto com a sua poesia quando tinha 17 anos. Nessa altura achava-me muito burro por não conseguir percebê-lo. Hoje sinto apenas que fui muito ingénuo em ter achado que a poesia é coisa que se deva entregar à percepção. Mas a culpa não foi inteiramente minha!

Desde cedo, na escola tentaram ensinar-me a compreender os grandes poetas. Sem grande sucesso, diga-se. Nunca conseguiram incutir-me o gosto por essa poesia tão bem explicadinha. Descobrir o Herberto foi, portanto, como ter um encontro de terceiro grau com um ser proveniente de uma galáxia distante. Por não conseguir percebê-lo, isso talvez me tenha deixado mais susceptível à hipnose que os seus versos provocam.

Através da sua obra descobri que as palavras são muito mais do que o seu significado. As palavras são teclas de um piano infinito. São tintas, com as quais é possível pintar as paisagens mais estranhas e, por isso, encantadoras. Os poemas de Herberto Hélder são propostas de embarque para viagens sem regresso certo. São Passos em Volta do mundo dos sonhos. São crianças tolas que vislumbram mundos novos e em torno dos quais a razão não gravita.

Herberto é isso e muito mais. Herberto é como Pessoa, repito. Talvez a sua obra nunca chegue a constar nos manuais escolares – e espero, sinceramente, que não! –, porque não é possível sintetiza-la. Os seus poemas são complicados de decorar ou catalogar – e ainda bem que assim é! Não possui heterónimos, porque não há necessidade disso, pois todos nós temos diferentes sujeitos dentro de um só corpo. Também não possui nenhum volume de poesia dedicado à pátria, porque para ele nunca existiram fronteiras.

Herberto não tinha país. Tinha mundos vários. Só dele. Sem pessoas a mais.

Herberto não teve tempo para partilhar a sua solidão, que a todos nos toca, com mais ninguém.

Contudo, neste país, teremos imenso tempo para perceber a real dimensão do seu legado. Talvez um dia, quando esse tempo chegar, alguém me perdoe a ousadia do título deste texto que em breve acabarei de escrever.

Mas nada disso importa! Apenas não deixem que os poetas vos morram na lembrança, porra! Na poesia podemos ser poligâmicos. Pessoa não se importaria. A sério que não. Juntem, sem medo, o Herberto com o Camões, com o Teixeira de Pascoaes, com o Fernando, com o Sá-Carneiro, com o Régio, com o Cesariny, com o António Maria Lisboa, com o Eugénio de Andrade, entre outros. Não se fiquem pelo Pessoa até vos cessar a líbido.

A poesia não se quer fiel, mas transgressora.


sexta-feira, 20 de março de 2015

Expedições homéricas

Deito-me sobre os versos verdes da manhã que anuncias,
e sou capaz de permanecer assim uma noite, um século,
acompanhando a alternância celeste entre o sol e as estrelas,
entre a luz que não agarro e as trevas que trouxe comigo de casa.

Sou mesmo capaz de ficar assim durante muito tempo.
Invernos estalinistas a conjecturar todas as primaveras possíveis,
todas as metáforas novas que se abrem à tua passagem
e em seguida se recolhem,  quando as tento espalhar no rosto
deste poema que eu pedi almofadado e com um escudo de fé.

Mal fadado é o homem que permanece deitado
e espera que a vida lhe traga propostas de veludo.
No final de tudo, a poesia não é um deus
e tão somente concebe através da corrosão.
A poesia é pouco mais do que acordar com dores nas costas
ou ter o osso imaginário da razão carente de cálcio.

E o que importa isso?
Também ninguém imagina um poeta a fazer halterofilia.

A poesia é uma guerra e paz de trazer por dentro do corpo,
onde nas veias
expedições homéricas partem em busca do nome infantil do mundo
e do seu significado.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Tragédia em dois actos


Acerca dos homens pouco haverá a dizer,
a não ser, claro, o seu declínio.

Os heróis e os deuses morreram de fome
e agora só nos sobram as histórias de guerras passadas
que em noites gélidas contamos ao pormenor
aos ouvidos de crianças assustadiças e frágeis.

Ainda assim, persiste a filosofia  
que já não quer pensar ou ser pensada
e vive como um eremita secular
orgulhosa do seu orgulho de ter pensado um dia.

Ainda assim, persiste a poesia
desprovida de cânones ou de uma métricas rígida,
derrotada pela música
e arrumada em cantos soturnos de bibliotecas públicas.

E o mundo sobe ao palco,
como uma tragédia de apenas dois actos,
com os jornalistas a emitirem em directo para cento e tal nações.

De Alice não há rasto ou fonte próxima
que permita uma reportagem pomposa no país das maravilhas
e na página seguinte encontrar o anúncio de um cruzeiro pelos mares da lua:
APROVEITE JÁ!

Tantas são as coisas que resistem ainda no mundo,
apenas porque temos as mãos entretidas em ecrãs tácteis,
fazendo-nos preservar nos bolsos esses restos de metafísica.

Mergulhados num mundo desprovido de causas,
sobrevivemos sem qualquer efeito aparente.

Fotografias de Helsínquia
















Caminhamos juntos ao longo do pântano do tempo
onde relógios de pulso estendem os dias e as noites
- fotografias de Helsínquia metidas nos bolsos sem uso
onde trazemos dobrados tratados de paz
e desinfectante para cortes mal suturados.

Nas ruas de Helsínquia crianças loiras brincam solitárias
e resistem ao inverno rigoroso do entendimento humano.

Em Helsínquia também pode ser encontrado o amor e o ódio,
como em qualquer outra capital de velho e cansado continente,
sempre servidos frios,

como um aperitivo banal numa mesa cheia
onde gordos homens troçam de um poeta latino,
que barrou todo o amor e todo o ódio no mesmo pão
fazendo desse o seu prato principal.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Esgrimista que ataca e nunca defende

Existe uma palavra com espinhos por dentro,
uma palavra feita de glaciares e tremores de terra
que abalam todos os nossos fundamentos viscerais.

Existe uma palavra que evitamos sempre dizer.
Usamos os mais belos eufemismos para lhe retirar o ímpeto
e dessa forma sonhar ainda uma borboleta
que nos traga o perfume raro de outros dias.

Existe uma palavra que por ser definitiva adiamos sempre,
formulamos com os lábios todas as razões poéticas
e descartamos a lógica classicamente arquitectada.

Existe uma palavra que não quero utilizar agora
nestes versos trémulos, mas que por isso lhe são propícios.
Adeus, eis a palavra, portadora de um veneno secreto
- uma sirene estridente, um ataque à bomba, cidades de esperança desfeitas,

mas lembra-te, existem sempre palavras que sobrevivem
e, essas, tens de as procurar,
tens de as curar da infecção do entorpecimento do teu ser.

Depois de dizeres Adeus, essa palavra esgrimista
que ataca e nunca defende,
serás finalmente capaz de perceber todo o peso da liberdade.

Serão, nesse momento, muitos os lugares para onde podes ir
e poucos aqueles onde sentes que podes ficar.
Mas continua sempre e não olhes tanto para trás,
porque a vida é uma viagem
onde só te é permitido parar para mijar o desencanto.