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quinta-feira, 30 de abril de 2015

Misturas

I

não pontues nenhuma frase
que se dane a respiração facilitada
vai por onde o sol não possa iluminar os teus passos
e torná-los mais previsíveis

o universo é aleatório
porque razão hás-de querer ser tu
maior do que esta merda toda

afia a tua faca
não temas os cortes
não os sutures ou escondas
do policiamento do mundo

se estivesses sozinho por um segundo
sem a moral a acompanhar-te
confessa
quantos crimes perfeitos cometerias

acredita
eu assumiria a co-autoria de tudo isso
e provavelmente nem tu escapavas

por que haverias de cá ficar
se o que todos queremos é continentes novos
para colonizar e edificar belas igrejas

rebentem com tudo
queimem as colheitas
menos as do vinho do porto
porque os ingleses gostam muito
e eu gosto muito das canções deles

submarinos amarelos para patrulhar primaveras estéreis

II

sei lá o que digo ou faço
se pelo menos rimasse
podia dedicar isto a uma puta de telenovela
comprometer-me um bocado só para experimentar
e deixar Godot à espera
à porta de um teatro devoluto
onde sobe ao palco um actor sem papel atribuído
a fingir de si mesmo e a chorar muito
como um recém-nascido
como um poeta
e os poetas são todos um bocado maricas

por isso que se foda a rima fixa
que se foda a puta
que se foda o compromisso
e o Godot se quiser que me procure onde eu   estiver
[destino omisso]
ou então que vá para o diabo que o carregue
a ele e a todos nós
pesados de tanta filosofia que trazemos partida

como Fausto
vemos Helena numa qualquer Margarida
até ao dia em que acabarmos cegos
de tanto julgarmos ter visto
e nada termos de realmente nosso
para além da incompreensão
de todos os nossos passos
de todos os textos e poemas
que escrevemos embriagados

bebe a vida até caíres
mistura tudo
e se te perguntarem no hospital
diz que comeste uma ilusão estragada

podia reler este poema amanhã
e talvez até dar-lhe alguma dignidade
mas a poesia quer-se assim
um bocado descomposta
para manter a pose pós-moderna

tenho olheiras permanentes
escrevo uns versos
bebo como gente grande
e ouço música alternativa

olha eu olha eu
sou um poeta avant-garde



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