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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Tragédia em dois actos


Acerca dos homens pouco haverá a dizer,
a não ser, claro, o seu declínio.

Os heróis e os deuses morreram de fome
e agora só nos sobram as histórias de guerras passadas
que em noites gélidas contamos ao pormenor
aos ouvidos de crianças assustadiças e frágeis.

Ainda assim, persiste a filosofia  
que já não quer pensar ou ser pensada
e vive como um eremita secular
orgulhosa do seu orgulho de ter pensado um dia.

Ainda assim, persiste a poesia
desprovida de cânones ou de uma métricas rígida,
derrotada pela música
e arrumada em cantos soturnos de bibliotecas públicas.

E o mundo sobe ao palco,
como uma tragédia de apenas dois actos,
com os jornalistas a emitirem em directo para cento e tal nações.

De Alice não há rasto ou fonte próxima
que permita uma reportagem pomposa no país das maravilhas
e na página seguinte encontrar o anúncio de um cruzeiro pelos mares da lua:
APROVEITE JÁ!

Tantas são as coisas que resistem ainda no mundo,
apenas porque temos as mãos entretidas em ecrãs tácteis,
fazendo-nos preservar nos bolsos esses restos de metafísica.

Mergulhados num mundo desprovido de causas,
sobrevivemos sem qualquer efeito aparente.

Fotografias de Helsínquia
















Caminhamos juntos ao longo do pântano do tempo
onde relógios de pulso estendem os dias e as noites
- fotografias de Helsínquia metidas nos bolsos sem uso
onde trazemos dobrados tratados de paz
e desinfectante para cortes mal suturados.

Nas ruas de Helsínquia crianças loiras brincam solitárias
e resistem ao inverno rigoroso do entendimento humano.

Em Helsínquia também pode ser encontrado o amor e o ódio,
como em qualquer outra capital de velho e cansado continente,
sempre servidos frios,

como um aperitivo banal numa mesa cheia
onde gordos homens troçam de um poeta latino,
que barrou todo o amor e todo o ódio no mesmo pão
fazendo desse o seu prato principal.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Esgrimista que ataca e nunca defende

Existe uma palavra com espinhos por dentro,
uma palavra feita de glaciares e tremores de terra
que abalam todos os nossos fundamentos viscerais.

Existe uma palavra que evitamos sempre dizer.
Usamos os mais belos eufemismos para lhe retirar o ímpeto
e dessa forma sonhar ainda uma borboleta
que nos traga o perfume raro de outros dias.

Existe uma palavra que por ser definitiva adiamos sempre,
formulamos com os lábios todas as razões poéticas
e descartamos a lógica classicamente arquitectada.

Existe uma palavra que não quero utilizar agora
nestes versos trémulos, mas que por isso lhe são propícios.
Adeus, eis a palavra, portadora de um veneno secreto
- uma sirene estridente, um ataque à bomba, cidades de esperança desfeitas,

mas lembra-te, existem sempre palavras que sobrevivem
e, essas, tens de as procurar,
tens de as curar da infecção do entorpecimento do teu ser.

Depois de dizeres Adeus, essa palavra esgrimista
que ataca e nunca defende,
serás finalmente capaz de perceber todo o peso da liberdade.

Serão, nesse momento, muitos os lugares para onde podes ir
e poucos aqueles onde sentes que podes ficar.
Mas continua sempre e não olhes tanto para trás,
porque a vida é uma viagem
onde só te é permitido parar para mijar o desencanto.

Mãe, eu estraguei um soneto

tenho nos olhos implantadas raízes antigas
que me prendem aos lugares desertos
e que sorvem as correntes de água subterrâneas
dos teus caminhos indecifráveis e secretos.

tenho no peito enraizadas árvores carbonizadas
pelo fogo extinto das ideias sem dono
que perpetuam esta promessa dum país de cravos
desabrochados e vivos, mas com cores de outono.

tenho numa das mãos um livro de banda desenhada
e na outra um papel dobrado que nunca se fez barco
por não haver oceanos novos para o sucesso dos dias.

tenho nos meus pés acostumados um parco cansaço
comum a todos aqueles que desdenharam a estrada
só porque ela de antemão não promete o regresso.

tinha este soneto como posfácio se não fosse este verso.