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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

sanatório de monstros



            o mundo é um lugar de monstros interiores aos corpos, residentes nas carcaças de pensamentos velhos; o Homem é um lugar de gigantes adormecidos, de vozes roucas e gastas, ásperas como o sol do outono, secas e moribundas como as folhas de outubro. para além do céu e da terra, das pedras e dos sonhos, dos homens, dos deuses e de mim, existem essas criaturas moldadas nos pântanos do tempo e das facas açuladas. para lá de todos os lugares conhecidos e imaginados, existe o desconhecido: as nuvens negras libertam uma chuva de sangue que se precipita nas searas e se entranha no trigo, no pão que comem todos os homens; para lá, acima dessas nuvens baixas está o cume desta montanha ladeada por florestas de pinheiros muito altos e sóbrios, que conhecem tanto, que assistiram a tanto. é no cume dessa montanha, na caverna solitária, esquecida por todos em quase todos os momentos, que eu estou. e eles, esses que perdidos procuram um rumo, um alívio fácil, um último prazer de viver, estão quase a chegar, diz-me a aragem vespertina que já passou pela floresta e entra na caverna. o sol fica lá fora, anulado. o sol nada importa no sanatório de monstros. cá dentro, o cheiro a enxofre.
            vêm uns tantos liderados por um apenas. é um rapaz novo, nunca ninguém da sua idade aqui me veio procurar. é o desespero, é peso excessivo que a sua mente carrega que o faz caminhar e sonhar com um regresso a casa, esse lugar impossível. dentro dele, olhando para todos os lados, assustados, vêm vários. esses nunca tiveram casa. tiveram um pai que nunca os soube criar, que sempre os abandonou no seu pensamento depois dos pequenos darem o seu primeiro grito e que, agora, já só anseia por esquecê-los e rumar a casa sozinho.
            André tinha catorze anos e não estava preparado para ser pai pela primeira vez. quando o seu primogénito lhe surgiu na mente e, depois, no papel, ele sentiu um enorme êxtase, um orgasmo mental e espontâneo. a primeira das criaturas que habitam agora a sua mente era uma criança ingénua, que corria junto ao rio, junto aos jardins camarários, segurando um papagaio de papel colorido que se elevava bem alto, como se quisesse ferir, talvez matar as nuvens que nem André nem o pequeno ainda conheciam. ao longo do tempo, o papagaio foi perdendo a cor, a corda foi sendo moída pelos dias, pelas semanas, pelos anos. e o papagaio perdeu-se, voou para longe, para lá das nuvens, para lá do mundo dos homens e deste. por essa altura, a criança já não sabia do seu pai. chamava, chorava, mas ele fingia não ouvir. agora, chama, chora, e ele diz-lhe que estão quase a chegar. eu sei que estão.
            outro dos que segue este caminho, irmão dessa criança perpétua, é um homem que tentou inverter os pólos do seu mundo, seguir o sonho, esquecer a grasnido mortal dos corvos, mas falhou. caiu, partiu-se todo, perdeu a vista esquerda, a mais propícia a fantasias, e perfurou o seu coração. o pai encontrou uma pedra bonita e colocou-a no seu peito. quase se esqueceu da sua demanda, mas nunca morreu. por vezes ainda fala e pensa fazer tudo outra vez. vamos fazer tudo outra vez, pai?, mas não recebe resposta. não corre sangue dentro das veias deste homem, corre um passado que não o foi deixando morrer.
            com eles segue também o que já nada quer, para além de uma garrafa de vinho e o calor de uma lareira onde ordem cartas e promessas; aquele que não deu pelo dia em que Julieta morreu, que caminhou pelas ruas contemplando a ruína do mundo dos homens e que parou para jogar ao pião com uma criança. eles não sabiam que eram irmãos. essa criança odiava o céu e o vento que lhe tinham roubado o brinquedo e a sua única distracção era o pião que fazia girar, que via abrandar e morrer sobre a terra. sem metafísica, sem nada.
            a pesar também a André vem um velho violoncelo que já ninguém quer. ele tem pessoas dentro dele. sim, um violoncelo velho que guarda pessoas dentro dele metido dentro do corpo, real, de uma outra pessoa. talvez eu o aprenda a tocar! se no céu há melodias de harpas, aqui haverá melhor! a pesar também a André vem uma rua inteira, abandonada, esquecida: a rua dos fracassos.
            eles caminham dentro do corpo jovem e da mente envelhecida deste rapaz. os passos são cautelosos sobre o manto de folhas secas e pinhas mortas da floresta. bem perto vislumbram já a montanha, alta. eu não os vejo, mas sei que estão a chegar. estou aqui, no lugar onde o sol fica à porta, a saber o meu nome mas sem chamar por mim.
            com eles vem também o homem que fala com deus, criatura caprichosa, e que nutre por ele um desinteresse educado. fala com ele como fala com os revisores do comboio, bom dia, boa tarde, e mais nada. tem dentro de si todas as dúvidas e todos os silêncios. se alguém o pudesse ver, não diria que era mais um filho, mas sim um irmão gémeo, ligeiramente mais altivo, do seu pai. quando jovem sonhou ser um discípulo de Zaratustra, arrepiar caminho para a chegada do Super-Homem e atravessar, como um equilibrista, a corda suspensa bem alto, como um artista de um circo novo e onírico - «o homem é a queda e a travessia». ah!, como nos iremos dar tão bem!
            além destes vêm também o ciclista e o psicólogo inglês, num pé de guerra constante desde que André se fez ao caminho. o ciclista é um louco, di-lo com orgulho perante a cólera do psicólogo inglês ao ouvir alguém adjectivar-se de tal forma. farto de os ouvir vinha também o limítrofe, criatura fraca e facilmente manipulável
            o sol estava exactamente por cima da montanha, meio-dia solar, quando eles chegaram. André estava nitidamente agastado, mas trazia uma esperança reluzente no olhar que exibiu quando falou comigo. não usou palavras desnecessárias, disse-me tome conta deles, por favor. silêncio. já não aguento mais, tome conta deles, por favor. silêncio. peça-me o que quiser, mas tome conta deles! silêncio. o sol parado, a assistir a tudo. o tempo parado à espera de uma resposta minha. a aragem a entrar na caverna a tentar saber das novidades para levá-las à floresta. de que me serve a tua alma?, perguntei-lhe apenas.


era quase uma da tarde, tinha acordado deste sonho e estava em frente ao espelho, a olhar-me muito, pronto para lavar o rosto, refrescá-lo, e acalmar a ressaca. lavei os dentes e, em seguida procurei uma pastilha para as dores de cabeça. não havia. foi nesse momento que, farto disto tudo, lhes dei duas folhas de papel branco e lhes disponibilizei a minha mão para que pudessem escrever. momentos depois eles começaram a escrever este texto. foram falando de mim e por mim, como o estão a fazer agora. como se me conhecessem, como se pudessem calcular os meus pensamentos, puseram-me a caminhar por uma floresta rumo a uma montanha alta e escondida, ao encontro do demónio.

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