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quinta-feira, 2 de junho de 2011

A CASA DO VIOLONCELO - CAPÍTULO III - RESTOS DE REALIDADE




Passaram-se tantos anos desde aquele dia, mas para mim nenhum deixou marca. Nenhum trouxe ar. Nenhum te trouxe de novo. Meu querido David.



Passaram-se tantos anos mas ainda não consegui desprender-me do mundo: da minha casa, deles sobretudo: o meu filho e ela.

Todos os dias observo todos os movimentos que executam. Vejo-os acordar, vejo-os sentados, vejo-os ocupados com nada e depois vêem-me a mim, através de fotografias, mas não me falam. Eu falo com eles. Peço-lhes desculpa e depois choro. Eles não vêem.

Corpos vazios de propósitos vivem,
Comandados por suas células mortas.
Sons esguios, estranhos, me dizem
Velhos ditados que quase nem notas:

“As pessoas sempre seguem o caminho já traçado”

As células estão mortas
e o espírito foi roubado,

por alguém sem culpa sua,
num momento desencontrado.

Por vezes o amor mata,
por vezes o verso é feio,

mas o poema é só um corpo,
por vezes partido ao meio.

Uma vida com falsas razões
movida por linhas confusas:

sensações; palavras obtusas;

células vivas num corpo morto.



Por vezes sinto-me vivo numa realidade morta. É como se tudo aquilo em que toco, fosse vazio. O tempo traiu-me e o espaço encolheu. Vivo preso a esta casa, tal como o violoncelo vive preso ao canto do meu quarto.

A minha mãe por vezes tenta explicar-me mas eu não quero ouvir. Eu quero viver. Eu quero deixar o passado para trás. Eu queria que aquele dia não tivesse existido, mas a nossa vontade é apenas vontade. É algo formado de papel molhado. O meu pai não será amanhã mais do que a fotografia que é hoje.

Há um corpo que se mexe por mim,
uma boca dizente, inventora de palavras,
significados molhados sem fim.

Eu não sei se sou diferente,
se sou igual, ou se um reles animal
domesticado, preso por gente.

Por vezes eu sinto a corda que aperta
e a alma que parece querer explodir,
criar milhares de estilhaços,
pedaços cortantes que atingem o olho cego.

Não nego que gostava de ser um desses bocados,
digo-o com o meu silêncio rouco pelo tempo forjado.
Mas os pedaços eram cobiça,
eram barcos de papel rasgado.

O mundo sabe bem que no fundo eu sou manso,
eu sou mais uma vida comandada pela preguiça.

Ao ser isto assim assim,
em mim quase tenho descanso.

Eu não sou mais do que finjo ser,
sempre tão recto, sempre tão certo.
Por vezes o mundo parece saber
quase que correcto, que eu não estou perto,

que eu não estou perto...



Mas a vida tem de continuar. O meu pai havia de gostar que a nossa vida continuasse. Sei que sim.



A Elisa não costumava falar muito, havia nela algo que era escuro, algo que era só seu. Algo que eu não compreendia. Algo que a minha mãe fingia não compreender. Algo que o meu pai se esforçava por esconder. Durante vários anos foi assim.

Não tinha amigas, apenas a Francisca, sempre se deram muito bem. A minha irmã era mais velha mas gostava de ouvir as histórias da Francisca. Eram histórias em que eu entrava, histórias que nunca a minha irmã tinha vivenciado. Algo lhe foi roubado, algo que eu não compreendia.

- Porque não vens connosco? Vamos passear. A Francisca também gostava que viesses – dizia eu, conhecendo de cor a sua resposta.
- Não posso…
- Porquê? É Domingo! Não trabalhas hoje, se quiseres peço eu ao pai...
-Já disse que não quero!

Nesse momento, algo me fazia desistir, algo que eu não compreendia, talvez fosse o cansaço, talvez fosse a certeza de que o meu esforço nada valia contra a natureza das coisas. Por vezes eu não compreendia a natureza das coisas. Natureza tão pútrida aquela! Mas naquela altura, eu apenas desistia de a perceber.

Antes de sair, pedia dinheiro à minha mãe para um gelado, para uma laranjada, para o que quer que fosse, afinal nada disso era realmente importante. Depois saía, o meu passo era rápido. Tinha todo o tempo do mundo, mas o ritmo da romântica máquina, que em meu peito batia, fazia com que o tempo corresse rápido. Corresse contra a minha vontade, corresse contra mim, corresse contra nós.

Costumávamos passear junto ao rio, depois subíamos, em direcção à Trindade, calmamente, mas num passo acelerado, típico de duas almas jovens. Na rua existia muita gente. Todo um universo de gente: casais idosos passeando naquele Outono, jovens em grupos com rumos quase tão desorientados como as suas palavras, vendedoras de castanhas com as mãos quentes pelo fumo brando, putas encostadas em cada esquina de uma rua duvidosa. Pessoas bem vestidas, pessoas em farrapos, pessoas gordas, pessoas magras, pessoas ricas, pessoas pobres…pessoas.

Nós seguíamos, naquela mancha de gente, coisa de Domingo, olhando as montras, olhando as esplanadas, olhando tudo, olhando nada. Olhávamo-nos mais que tudo.

Tanto tempo depois, ainda não me cansei de a olhar. Parece mais bela todos os dias, mas igual a si mesma em todos eles.



Lembro-me bem do dia em que conheci realmente o meu pai,



Lembro-me bem do dia em que conheci realmente o meu pai,



Sinto falta do meu pai.

Restos de realidade marcam feridas de presença.
Deixadas por meus pais,
deixadas por meus ais,
e pela tua boca calada.

Não, eu não serei mais!

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