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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

o relógio e o poema


. acabei agora mesmo de colocar um ponto final neste poema, a que alguns por pudor chamar-lhe-ão outra coisa qualquer. acabei há pouco de o escrever. sinto que deixei algum peso para trás, sinto-me estranho: sinto-me eu. já estou deitado e já passaram alguns minutos desde que o acabei, enquanto isto, lá em cima, no velho escritório, o poema sente o frio provocado pela janela aberta. o vento parece querer levá-lo para outro lugar, mas lá fora é tão escuro e ele não se quer perder no meio de tudo. então resiste firme, fica quieto no meio do nada.

a mesa que o suporta é já cansada. já carregou o peso de muitos outros poemas, que por sua vez suportaram o meu peso. por vezes, ouvem-se pequenos estalidos que irrompem no silêncio, cliente habitual daquele velho escritório. para além deste poema abandonado, da janela baça pelo tempo e da mesa de madeira de carvalho, existem também outras duas personagens: um piano sujo de pó e um relógio parado, há muito tempo atrás.

dias – tão distantes – houveram em que o tempo avançava fielmente ao ritmo de compassos demorados, de melodias hoje esquecidas. o piano ainda as lembra, chora-as no fundo do seu silêncio perpetuado neste tempo parado. existem milhares de palavras evaporadas neste escritório. que nada dizem, que nada são. apenas sílabas mortas, juntas pela antiga razão que nunca conheci, separadas por uma pontuação a que nunca obedeci.

sou um poema,

um desses que já esqueci.

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